A crise da democracia no Brasil (parte final)

Coluna Democracia e Política

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Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A impossibilidade de se enfrentar os mais poderosos

Para Luis Felipe Miguel, não existe crime de responsabilidade que justificasse a interrupção do mandato de Dilma, foi somente a imposição de um veto sobre a vontade popular. Mesmo limitada, afirma Miguel, a democracia incomoda aos grupos dominantes porque coloca a estes grupos a exigência do consentimento das classes dominantes que eles temem não conseguir. O que tínhamos até agora, mas as elites sempre tiveram uma posição menor, não se: as elites sabiam que não se tratava de colocar a pirâmide social de cabeça para baixo, que era possível acomodar interesse, o que levou a incorporação pelo PT, de interesses da elite e por esta razão, o capital financeiro não teve limites no governo Lula e Dilma “bancos estatais contribuíram com os capitalistas”. O governo petista sofreu por isso um amplo processo de corrosão, o PT mostrava um governo adequado as elites.

Para adequar seu programa aos interesses das classes dominantes, o partido no governo teve de moderar os desejos dos demais movimentos sociais, “era uma proposta de acomodação (do governo Lula), o governo fez uma opção por um caminho diferente e contraditório com seu programa mais radical do passado, o PT fez uma opção pensada de conciliação, que no final não se realizou, e se capitulou por uma percepção de que não havia brecha para um projeto mais radical“, afirma o cientista político. Para Miguel, o que se colocavam eram pequenas mudanças para atender as necessidades da população brasileira, um tributo ao realismo da impossibilidade de enfrentar os mais poderosos.

Para Miguel, é trágico que as elites brasileiras precisem de um padrão elevado de miséria social para existir, “isso é funcional, elas precisam disso” afirma. O governo que nasce do golpe e leva Michel Temer ao poder promove a rápida expansão do desemprego e a redução dos salários, pauperizando a população, o que é, para Miguel, a maior prova das vitórias desse projeto de governo. A proposta que se considerou falida é de que a democracia é um risco que vale apena correr, e agora é preciso saber como fazer para ouvir as propostas de baixo silenciadas por propostas que vem de cima e que impõe a desigualdade.

Fora do lugar

Miguel afirma que antes dos governos petistas e durante parte deles foram conquistadas vitória contra hierarquias seculares, com avanços graças a mobilização das mulheres, periferias e movimento LGBT, o que para a direita dava a sensação de que as hierarquias estavam desabando e “estava tudo fora do lugar. A democracia é um risco, reverter a democracia é uma tarefa ambiciosa”, afirma Miguel. Por isso, afirma o cientista político, o golpe foi preparado por muito tempo antes para romper com a legitimação democrática e a institucionalidade dos direitos sociais. “Pelo lado de quem deseja uma democracia reduzida, existia o risco vinculado à democracia liberal de que as eleições, mesmo quando se mostram menos efetivas, parecem funcionar como um obstáculo. ”

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Miguel, que já havia estudado em Mito e Política as condições da disputa eleitoral das eleições de FHC, mostra que hoje também são adversas para os partidos que defendem a causa popular as campanhas por causa do dinheiro e do poder e do uso do aparelho de estado que resiste a mudanças “as conquistas das maiorias ameaçam os direitos dos privilegiados, mas o processo eleitoral reúne todas as forças como símbolo de um único espaço para a esperança”, afirma.  Para Miguel, o problema da disputa eleitoral é que ela termina por reconstruir e relegitimar sistemas que haviam sido deslegitimados e transferir energias de outras formas de participação política para o processo eleitoral. Quer dizer, para Miguel, como expressão política, as eleições concentram muita energia e dão muito pouco em troca. Miguel pergunta: o que significaram as eleições de 2016? Para ele, o aprofundamento da divisão das forças progressistas que foram derrotadas com o golpe, significando um insuficiente avanço das energias de combate, basta ver as esquerdas debatendo-se nas eleições municipais na busca do segundo lugar.

Panorama atual

O que temos hoje é por um lado, o crescimento de certa resistência insuficiente da esquerda ao projeto em andamento. Agora, o foco nas eleições presidenciais de 2018, afirma Miguel, é como eleger um candidato progressista seja ele qual for, mas isso, pergunta, ajudará a resolver todos os problemas? Esse é o drama da esquerda. Vivemos um retrocesso em todas as instituições, inclusive no Supremo Tribunal Federal, e quem assumir, mesmo da esquerda, afirma Miguel, vai saber que terá essa limitação. Mesmo na ditadura, lembra o cientista político, os militares mantiveram as eleições e o Congresso aberto, tutelado, “e nesses últimos 20 anos reproduziu-se uma elite política nova acostumada com a tutela das instituições democráticas. Não adianta eleger alguém que já sabe que há limites que não podem ser ultrapassados, pois há interesses“, afirma. Como se resolve isso, Miguel afirma que não sabe, mas acredita que temos de entender que as “instituições políticas não funcionam no vácuo, ao mesmo tempo em que organizam as disputas, elas estão repletas dessas disputas. Se queremos dar um passo para a reconstrução do regime democrático, é preciso lastro do movimento social organizado, pois não dá para esperar que as instituições funcionem por si mesmas porque está provado que nos momentos de crise elas tem lado, elas são sensíveis as pressões dos mais fortes. ” Miguel deseja que no caminho para uma sociedade mais justa os grupos sejam capazes de se organizarem e exercer pressão, pois as instituições sempre terminam por fazer parte de um ambiente de disputa “que não se esgota nelas e temos de organizar nossa capacidade de pressão para a reconstrução da democracia, ela não se dará com um governo eleito somente, mas pela construção de mecanismo de construção popular que garantam mesmo que isso represente ameaça aso poderosos”, diz Miguel.

Referências de Miguel

É interessante investigar quais as fontes de inspiração de Miguel para tal análise. Para mim, é preciso um retrospecto breve da produção do autor desde obras como Mito e Discurso Político, sua tese de doutorado publicada pela editora da Unicamp (2000) orientada por Evelina Dagnino. Lá, Miguel já mostrava sua preocupação e/ou influência das ideias de grupos ao qual se aproximou, especialmente o grupo de Mídia e política, da UNB: não é à toa que Miguel dedica especial atenção ao uso dos meios de comunicação pelos candidatos como instrumento fundamental de conquista das consciências.

Foto: Pixabay

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É claro que entre as influências de Miguel também estão as ideias de sua orientadora que tem na bagagem uma vasta produção cientifica cuja principal característica é associar a análise da evolução econômica à evolução política brasileira. Dagnino é conhecida por sua análise dos progressos da sociedade civil pós-constituição de 1988 naquilo que autora define como trânsito da sociedade civil ao estado, processo representado pela eleição de Lula, numa linha de herança gramsciana, onde a evolução política é pensada ao mesmo tempo dos atores sociais, este é o motor da análise de Miguel durante toda a conferência. Não é necessário lembrar que Dagnino também foi uma das primeiras a acusar as mudanças introduzidas pela orientação neoliberal no projeto e no governo petista.

Mito e discurso político tem um elemento notável de síntese dos temas que perseguiram o autor em suas obras posteriores. Pois não se trata apenas de retomar a atualidade do mito como estruturador da vida política, se trata de recuperar a política construída como espetáculo – não é necessário lembrar, como aponta Suely Rolnik, que o fato de nossas sociedades desenvolverem uma notável indústria cultural e o papel que dá Miguel à mídia, encontrem-se nesse tema da representação. A obra, que trata da eleição de 1994, é por essa razão, uma caixa de ferramentas (Deleuze e Guatari) do autor, e por isso, no governo Fernando Henrique, aponta o autor o papel que tem o discurso político conservador na ideia de defesa da ordem.

Teoria política da desigualdade

Em Democracia e Representação (Unesp, 2014), Miguel desenvolve sua teoria política da desigualdade. Da representação nascem as desigualdades que serão o centro do livro e da palestra, bem como a contradição básica da democracia representativa, a de ser incapaz de representar realmente uma vontade democrática. Ali está a busca do autor pelos filósofos e pensadores mais antigos da política pelo conceito de representação e uma leitura rara de Pierre Ronsavalon, um autor que merecia estar mais presente em nossos cursos, que o auxilia a encontrar os limites dos princípios representativos “é preciso ter em mente que a representação remete a um objeto ausente – e que ela não supre essa ausência”, afirma, notável perspectiva que também é central, por exemplo, no pensamento do filósofo esloveno Slavoj Zizek, para quem a uma “coisa” sempre insatisfeita é o motor da economia.

A coletânea Desigualdades e democracia, Unesp, 2016) aprofunda tema presente em Democracia e representação, mas ao invés de uma obra individual, Miguel preferiu dividir o mérito com outros autores, mas é sensível que a primeira parte sejam apenas estudos seus sobre, novamente, os temas que o perseguem, a desigualdade e sua origem no pensamento clássico e moderno. Miguel chega a análise do elitismo que permite situar a desigualdade como algo natural, ao menos na visão elitista.  Sua preocupação com as concepções de democracia em Pareto, Mosca, Michels e Sartori o levou a reconhecer os problemas dessa tradição, qual seja, a aceitação natural de que se possa pensar democracia sem a discussão da igualdade, porque desigualdades são…naturais. Por esta razão, a crise da ideia de representação só terá solução quando reintroduzirmos no debate político, as condições para a emergência da igualdade, da redução da desigualdade, hoje em pleno vapor.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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