Proteção internacional aos refugiados: o contexto brasileiro e o estado do MS (Parte 2)

Coluna Direito dos Refugiados

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Foto: ACNUR/Mathias Depardon

Foto: ACNUR/Mathias Depardon

Proteção  internacional e regional aos refugiados e o contexto histórico brasileiro

A América Latina recebeu grande contingente de refugiados da época da Primeira e Segundas Guerras Mundiais, provenientes do continente europeu. Conforme Shephard (2012, p. 416), os países da América Central e do Sul raramente eram a primeira escolha para os deslocados de guerra naquele momento. No entanto, o desespero foi grande o suficiente para que quase cem mil deles se instalassem nos 17 países da região, sendo que 80 mil somente na Venezuela, Brasil e Argentina.

E no contexto da Guerra Fria, o tema das migrações forçadas ficou intimamente ligado à questão ideológica, pois os EUA e o bloco de países capitalistas recebiam refugiados dos Estados do Leste europeu, como argumento de superioridade do capitalismo em relação ao socialismo implantado naquela região da Europa, enquanto plataforma de política externa. Enquanto os países do Leste Europeu e do mundo socialista também utilizavam o instituto do refúgio com o mesmo argumento, quando fosse necessário.

Em 1950, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de sua Assembleia Geral criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, ACNUR, órgão específico para estabelecer proteção internacional aos refugiados, vítimas de perseguição, violência e intolerância em seus países de origem. Tendo um objetivo otimista de completar sua missão em um prazo de três anos. Mas, na prática, seu mandato foi sendo progressivamente estendido não somente para refugiados, como também para deslocados internos, apátridas e outros grupos de pessoas em circunstâncias semelhantes (OPESKIN, BERRACHOUD, REDPATH-CROSS, 2012, p.2).

E em 1951, em Genebra, foi realizada a Conferência Internacional das Nações Unidas, com a participação de 26 países, entre eles Venezuela, Colômbia e Brasil (os países que atualmente estão no vórtice central da questão do refúgio na região), durante a qual foi definido o conceito internacional de refugiado, que seria praticado:

Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar (ACNUR, 2011, p. 6).

A definição traz uma limitação geográfica e temporal, pois se refere aos “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951”, o que possibilita dupla interpretação: eventos ocorridos somente na Europa, ou aqueles ocorridos na Europa e em outros lugares[1]. Conforme a primeira interpretação seria considerada refugiada somente as pessoas europeias. E fora isso, a Convenção estabeleceu que os refugiados acolhidos não poderiam ser devolvidos para territórios onde corressem o risco de perseguição política, étnica ou religiosa.  Tal definição receberia um adendo em 1967, com o Protocolo Adicional de Nova York, no sentido da queda das cláusulas temporais e geográficas.

Foto: Pixabay

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Nas décadas de 1970 e 1980, com a implantação de regimes ditatoriais em várias nações da América Latina, com destaque para El Salvador, Chile, Nicarágua e Guatemala, os Estados latinos americanos deixaram sua posição de acolhedores e se tornaram produtores de refugiados. Neste período foi gerado um fluxo de dois milhões de refugiados na América Latina, os quais buscaram refúgio nos países vizinhos e nos Estados Unidos. Entretanto, neste último, muitos pedidos de refúgio foram negados, tendo em vista que o governo norte americano da época apoiava os regimes extremistas dos países de origem dos imigrantes. Já os países da América Central e o México, reconheceram 150 mil refugiados (ACNUR, 2000, p. 132).

É neste contexto de instabilidade política que é realizado uma reunião na cidade de Cartagena, na Colômbia, em 1984, com o intuito de oferecer proteção regional aos refugiados. Como resultado foi assinado por vários países latinos americanos a Declaração de Cartagena, uma normativa que inaugurava um sistema regional de proteção. Esta Declaração ampliaria o conceito de refugiado, pois até então, a definição vigente, não reconhecia como refugiado os indivíduos que abandonassem seus países no período de 1970 a 1980 no contexto da violação de direitos humanos como política de Estado.

A Declaração de Cartagena, além de definir como refugiados os indivíduos que saíssem de seus Estados devido à ameaça e violação de seus direitos humanos, também incluía aqueles que deixassem o país por causa da desordem pública e dos conflitos armados, inspirados na Declaração Africana da Organização da Unidade Africana de 1969. Em outros termos referia-se também aos direitos humanos dos refugiados, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais, conclamando os Estados que também aplicassem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos para os asilados e refugiados que se encontrassem em seus países. (TRINDADE, 1997, p. 329).

Com isso, os refugiados não seriam apenas pessoas que sofressem perseguições individualizadas de religião, nacionalidade, opinião política; mas igualmente aqueles que sofressem violações de direitos humanos em seus países de origem, lugares onde prevalecesse a violação maciça de direitos, além da desordem pública.

Apesar desta diretriz não ter caráter obrigatório, visto que uma declaração de princípios, o mesmo foi assinado por diversos países da América Latina, como Venezuela, Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Belize, Honduras, Costa Rica, El Salvador e Panamá. Mesmo os Estados que não assinaram vêm adotando o conceito ampliado de refugiado. Além disso, há países que adotaram a definição da Declaração em suas próprias constituições nacionais e o incorporaram no seu texto infraconstitucional, tal como é o caso do Brasil.

Todos estes movimentos de proteção aos refugiados na região possibilitou a criação de mecanismos normativos, em diversos países latinos americanos, os quais são reconhecidos como Estados acolhedores de indivíduos em busca de refúgio, entretanto, a população de refugiados ainda enfrenta grandes dificuldades, principalmente no âmbito da integração com a comunidade nacional[2]. Fato que mostra a constante necessidade de inovar as políticas públicas, para que sejam promovidos avanços na recepção e integração dos mesmos.

Abertura da Reunião de Alto Nível sobre Grandes Movimentos de Refugiados e Migrantes. Foto: Agência Brasil

Abertura da Reunião de Alto Nível sobre Grandes Movimentos de Refugiados e Migrantes.
Foto: Agência Brasil

Ultimamente, a proteção dos refugiados teve um rápido avanço em toda a região latino americana. Em 2006, na Argentina, foi criada a Lei 26.165, considerada como ponto de partida positivo que ainda deve ser complementado com a elaboração de políticas públicas que incluam a sociedade civil e reforcem a capacidade de resposta das instituições locais e nacionais. Na Bolívia, o projeto de lei ratificado em 2011 estabeleceu um sistema de proteção aos refugiados nos termos das normas internacionais e do Art. 29 da Constituição do Estado em conjunto com outros instrumentos internacionais de direitos humanos.

O governo do Chile demonstrou ao longo dos anos, em especial desde a década de 1990, seu compromisso com os direitos humanos e a proteção internacional dos refugiados ao aderir plenamente as regulamentações internacionais no ano de 1972. No Paraguai, a Lei nº 1.938/02 abrange representantes de diversas áreas do Estado, da sociedade civil, da Comissão Nacional para os Refugiados (CONARE) e as Nações Unidas. No Peru, a Convenção de 1951 entrou em vigor em 1964, contudo, o Protocolo de 67 foi aderido somente em 1983 – quase duas décadas para ter uma regulação interna detalhada que permitiu a implementação efetiva desses tratados. O Uruguai, embora faça parte da Convenção de 51 e do Protocolo de 67 desde 1970, somente em 2003 começou criar diretrizes internas através do Decreto 414/2003 e criou a primeira Comissão Interministerial para satisfazer os pedidos de status de refugiado (LETTIERI, 2012, p. 349-481).

A Colômbia é um destaque evidente, enquanto único país com deslocados internos, cerca de 3,6 milhões de pessoas, além de muitos que viviam na região “entre fronteiras”, ora ou outra adentrando as fronteiras brasileiras na região Norte do país (REDIN, 2013, p. 144). E agora, com a recente crise de deslocamento de venezuelanos, que também adentram o Brasil por aquela região.

De forma geral, o ACNUR considera que toda a América Latina apresenta uma sólida estrutura normativa de proteção aos refugiados, deslocados internos e de solicitantes de refúgio, o que deve ser matizado. A maioria dos Estados incorporou em suas legislações nacionais os institutos de proteção consistentes com os instrumentos interamericanos de direitos humanos, incluindo aspectos específicos de proteção baseados em gênero, época e diversidade.

No entanto, a agência internacional considera que há áreas em que os países podem avançar muito mais e desenvolver processos de boas práticas, tais quais na área do duplo processo de jurisdição e nos mecanismos institucionais de políticas públicas. (ACNUR, 2015, p. 64-65). Além de melhorar suas estruturas de recebimento e reconhecimento quanto às fronteiras nacionais e na integração legislativa entre os países.

Neste ínterim, o Brasil passou a ganhar certo destaque quanto à criação de políticas para ampliar sua proteção aos refugiados e promover soluções duradouras, tendo como ponto culminante a aprovação da lei 9.474/97, o Estatuto dos Refugiados, ao permitir a influência da sociedade civil nas decisões governamentais. O procedimento de reconhecimento da condição de refugiado no Brasil é garantido pela legislação, e segundo a mesma, os solicitantes de refúgio têm direito à documentação provisória, incluindo a carteira de trabalho, até que as solicitações sejam analisadas definitivamente pelo órgão competente (CONARE). Em caso de indeferimento, ainda é possível ao solicitante apresentar recurso junto ao Ministro da Justiça. O refugiado reconhecido no Brasil tem os mesmos direitos e deveres que qualquer estrangeiro em situação regular no país.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Já que cada Estado precisa instituir procedimentos internos para a proteção dos refugiados de acordo com suas normas constitucionais, a lei 9.474 foi criada em 22 de julho de 1997 com o objetivo de executar políticas de proteção a esses grupos de pessoas conforme sua norma interna. Segundo o 1o artigo do estatuto “será reconhecido como refugiado todo o indivíduo que devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupos sociais ou opinião políticas encontram-se fora de seu país de origem e não possa e não queira acolher-se a proteção de tal país”.

Ou seja, de acordo com a legislação nacional as solicitações de refúgio no país serão examinadas pelo Comitê Nacional para Refugiados, um organismo tripartite ligado ao Ministério da Justiça e ao atual Departamento de Migrações. Constituído por representantes do governo, da sociedade civil organizada e da comunidade internacional, no caso o ACNUR, que não possui poder de voto. Além da participação da Defensoria Pública da União, conforme convênio firmado entre a Secretaria Nacional de Justiça, submetida o Departamento de Migrações.

A representação da sociedade civil tem sido desde a fundação do Comitê a Cáritas Arquidiocesana Brasileira, uma organização não governamental ligada à Igreja Católica que vem lidando com o tema do refúgio desde a década de 1970 (BARRETO, 2010, p. 62-69). Ou seja, uma entidade que presta serviços de acolhida e de integração de refugiados no Brasil, fora a atuação das Pastorais do Imigrante e as organizações não governamentais em várias cidades brasileiras.

O ACNUR conta com uma sede em Brasília e unidades em São Paulo, recentemente abertas, e que são responsáveis pela proteção e integração de refugiados além de arrecadações de fundos privados. Precisa trabalhar em parceria com o governo nos âmbitos federal, estadual e municipal, com o setor privado e organizações civis em regiões estratégicas no país para executar políticas de proteção aos refugiados.

O reconhecimento internacional do Brasil como um líder regional na temática de proteção aos refugiados é fundamentalmente explicado por essa relação triparte construída historicamente entre o governo, a sociedade civil e o ACNUR no que tange às políticas nacionais para refugiados e que levou ao fortalecimento e ao engajamento do país na última década.

Por outro lado, as diversas dificuldades para a legalização e inserção do refugiado na sociedade brasileira, como a garantia da educação, trabalho e saúde assegurados pela Constituição Federal vão muito além de questões meramente burocráticas. Para se inserir na sociedade, o refugiado precisará trabalhar e nessa etapa da integração encontram muitas barreiras, principalmente pelos “mitos” criados pela própria população por conta do desconhecimento do tema: o medo de que esses “migrantes” tomem seus postos de trabalho, receios baseados na xenofobia e na falta de informação sobre o que sejam refugiados e a verdadeira condição destas pessoas.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Porém, não conseguem inserção laboral passando pelas mesmas dificuldades que a maioria dos brasileiros, e esse fato faz com que o ingresso desses indivíduos no mercado de trabalho aconteça principalmente por meio da economia informal, ficando mais vulneráveis às organizações criminosas. São geralmente prejudicados no que se refere ao microcrédito e ao exercício dos direitos trabalhistas. Geralmente precisam de atendimento médico específico com psicólogos, que não são facilmente conseguidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), existindo ainda resistência da sociedade civil em aceita-los sem preconceitos ou discriminação.

As normativas específicas para os refugiados apresentam normalmente interpretações restritivas e securitárias por parte das autoridades migratórias[3] quanto ao que se refere às migrações internacionais. O que consta na lei brasileira para proteção a esse grupo em específico, não condiz com a realidade enfrentada pelos mesmos. Ora o tratamento aos refugiados é encarado como uma questão de direitos humanos, ora é vislumbrado como de segurança pública ou de segurança nacional, de forma divorciada de princípios como “em dúvida pró-refugiado” ou “non-refoulement” (SILVA, 2015, p. 238). Os primeiros passos para execução das medidas protetoras é lutar contra a falta de informação da sociedade quanto a esses conceitos e principalmente melhor treinamento e engajamento dos órgãos competentes quanto à desconstrução de que imigrantes internacionais são sempre potenciais criminosos.

Políticas públicas no âmbito da saúde, educação e trabalho, por exemplo, além do conjunto de suas ações que também incluem a sociedade civil organizada têm o dever de garantir os benefícios a quais estão propostas, com os instrumentos, procedimentos e recursos coerentes ás atuais necessidades dos refugiados, independentemente da localidade desses indivíduos dentro do território nacional.

Sendo assim mesmo que essa localidade não represente o destino final do possível refugiado, os locais de passagem, também precisam estar incluídos no que se refere a tais políticas, principalmente por se tratar de cidades fronteiriças, e muitas vezes já nessas cidades iniciam o processo de solicitação de refúgio. Assistir á essas cidades com as políticas para refugiados, pode significar um grande avanço estratégico para a eficiência, desburocratização e melhorias na assistência aos mesmos.

Referências

[1] Disponível em: http://www.geocities.ws/politicausp/relacoesinternacionais/soc_global/Moreira.pdf .  Acesso em 20.05. 2016.
[2] Neste sentido o evento do VII Seminário Nacional da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, a ser realizado na UFABC, em novembro de 2016, em  torno das dificuldades de integração de refugiados no Brasil.
[3] O termo se refere à criminalização dos imigrantes como um problema de segurança nacional e de utilitarismo econômico, o que os impossibilita de usufruírem plenamente dos direitos presentes na legislação.

 

Cesar Augusto Silva da Silva é Articulista do Jornal Estado de Direito – Doutor em Ciência Política pela UFRGS, Mestre em Direito pela UFSC. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e Coordenador do Mestrado Interdisciplinar Fronteiras e Direitos Humanos (PPG-FDH) e da especialização em direitos humanos e cidadania da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da UFGD.
Paola Nicolau é mestranda em Fronteiras e Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação strictu sensu Interdisciplinar da FADIR –  Faculdade de Direito e Relações Internacionais da UFGD.

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