A execução extrajudicial é constitucional? Consolidada a propriedade, nada mais se discute?

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Fora de juízo

A possibilidade da instituição financeira credora de contrato de financiamento imobiliário, diante da inadimplência do mutuário, levar o imóvel a leilão fora de juízo (art. 32 do Decreto-lei 70/66), ou seja, independentemente de execução judicial, foi – e ainda é – questionada, advogando-se a violação das garantias constitucionais do acesso à justiça e do devido processo (art. 5º, XXXV e LIV, da CF/88). Note-se que ao credor é proibido ficar com o bem em pagamento (vedação de pacto comissório).

O entendimento tradicional do STF é no sentido da conformidade da expropriação extrajudicial com a Constituição Federal. Nesse sentido, dentre outros, veja-se o Recurso Extraordinário 223.075. Entretanto, tal orientação não é acolhida sem ressalvas, bastando ver os precedentes locais em sentido contrário, bem como a pendência do Recurso Extraordinário 627.106 que teve sua repercussão geral reconhecida e onde há 4 votos pela inconstitucionalidade e 2 pela constitucionalidade.

Eis o status quaestionis. Agora, passa-se a apreciar criticamente o tema.

Procedimento rápido e danoso

A execução extrajudicial é gravosa ao devedor. Disso não tenho dúvida. O procedimento é rápido e não se estabelece contraditório ou ampla defesa, oportunizando-se tão-somente a purga da mora e eventual ação judicial para obstar o curso da expropriação.

Entretanto, da efetividade do procedimento de execução extrajudicial não advém sua inconstitucionalidade. Pelo contrário, da contundência emerge sua virtude.

O acesso à justiça não é obstado pelo procedimento extrajudicial, ficando as portas do fórum abertos para o devedor irresignado. É do executado o ônus de comprovar o adimplemento contratual. Seria contraproducente obrigar o credor a sempre valer-se do Poder Judiciário para executar a garantia, vez que é sabido que na imensa maioria das vezes o devedor nada tem para alegar em seu favor. Compelir o credor a buscar sempre a força jurisdicional implicaria em entulhar ainda mais o Judiciário de ações que revelam conflitos passíveis de resolução fora de juízo.

A aposição do encargo de demonstração da ilegalidade sobre o devedor, pesando sobre o mesmo o fardo de ir a juízo revelar a ausência de inadimplemento, é técnica salutar e inteligente diante da alta verossimilhança do direito de execução da garantia pelo credor. Assim, somente alguns casos serão submetidos ao crivo judicial, permitindo que nos mesmos realmente haja um debate qualificado sobre a inadimplência. Desse modo, prestigia-se o acesso necessário e qualificado ao Poder Judiciário, excluindo-se da alçada do mesmo a execução não-controvertida.

A ênfase colocada na violação das garantias do contraditório e da ampla defesa, por outro lado, descura do caráter facultativo de seu exercício, da viabilidade de plena promoção por meio de ação ajuizada pelo devedor e da alta verossimilhança da existência do direito de execução da garantia decorrente de um sistema de mora ex persona qualificado, exigindo-se a notificação por meio de Cartório de Títulos e Documentos, bem como permitindo a purga da mora. Veja-se que o legislador não admitiu a mora ex re, recusou a mora ex persona caracterizável pela notificação simplesmente feita pelo credor e expressamente assegurou o direito de pagamento do quanto ainda devido.

O que aqui é sustentado não o é apenas em relação a este tema. A execução fiscal que tem praticamente inviabilizado o Poder Judiciário pode, pelo menos em parte, ser desjudicializada, deixando-se ao contribuinte a porta aberta para a discussão do débito em juízo. Note-se que no caso da alienação fiduciária de bem móvel o credor socorre-se do Poder Judiciário apenas para fins de busca e apreensão – o que pela própria natureza da coisa é desnecessário no caso do bem imóvel -, alienando o bem em leilão extrajudicial. Assim, a eventual inconstitucionalidade existente sequer seria do leilão em si, mas da consolidação sem a vênia jurisdicional.

Questão mais grave

Com cerca de 100 milhões de processos temos de ser realistas e não podemos nos dar ao luxo de para tudo exigir o crivo judicial – e a execução extrajudicial imobiliária e a execução fiscal administrativa revelam-se promissora nesse sentido.

Porém, algo que me impressiona muito consiste na comparação entre a intensa crítica à execução extrajudicial tachada de inconstitucional e a pouca discussão sobre questão muito mais grave relativa à impossibilidade de anulação da consolidação nas mãos do credor da propriedade alienada fiduciariamente ou de revisão do contrato depois da consolidação.

Para negar-se a revisão, dizia-se – e ainda há quem diga – que a consolidação extinguiu o contrato, findando a relação entre as partes e desaparecendo o interesse de agir. Para negar-se a cognição do pleito anulatório/declaratório de nulidade, sustentava-se a ocorrência de ato jurídico perfeito.

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Entretanto, não é difícil ver a insustentabilidade de ambas posições.

A consolidação recoloca a propriedade plena nas mãos do credor. Este movimento de transmissão da parte da propriedade (resolúvel) que estava com o devedor pode ser inválido e a ocorrência do ilícito não o torna lícito, nada obstando sua alegação a posteriori. E o raciocínio não é diverso em relação ao pleito revisional. Do contrário, bastaria o credor consolidar a mora o quanto antes e assim blindaria o contrato de qualquer discussão. Aliás, a revisão contratual pode inclusive revelar que a mora é apenas aparente, tendo o suposto devedor até mesmo crédito em seu favor.

E mesmo que se admita que depois da consolidação da propriedade a questão se revolve em perdas e danos, inadmitindo-se a invalidação da aquisição da plena propriedade pelo credor-fiduciário, ainda assim o pedido de revisão pode justificar-se, pois é do interesse do devedor mostrar a abusividade de alguma cláusula e reduzir o saldo devedor – não se afastando, inclusive, a possibilidade de haver crédito a favor do fiduciante. Dado o teor da súmula 286 do STJ, era inclusive incoerente que não se aceitasse a revisão por ter ocorrido a consolidação da propriedade em favor do credor.

Exemplo envolvendo hipoteca

Em caso envolvendo hipoteca – e não alienação fiduciária em garantia, mas com solução também aplicável a esta – o STJ realizou julgamento louvável nos termos assim ementados:

A Turma, ao rever orientação jurisprudencial desta Corte, assentou o entendimento de que, mesmo após a adjudicação do imóvel pelo credor hipotecário em execução extrajudicial, persiste o interesse de agir do mutuário no ajuizamento da ação revisional das cláusulas do contrato de financiamento vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH). De início, ponderou o Min. Relator sobre a necessidade de uma nova discussão sobre o tema para firmar o posicionamento da Turma. No mérito, sustentou a falta de razoabilidade no tratamento diferenciado entre os mutuários de empréstimo comum dos mutuários do empréstimo habitacional. Segundo o enunciado da Súm. n. 286 desta Corte, não há qualquer óbice à revisão judicial dos contratos bancários extintos pela novação ou pela quitação. Assim, seria desproporcional não admitir a revisão das cláusulas contratuais do mutuário habitacional – em regra, protegido pela legislação disciplinante – apenas sob a alegação de falta de interesse de agir uma vez que extinta a relação obrigacional avençada, após a adjudicação extrajudicial do imóvel e liquidação do débito. Ao contrário, considerou-se ser necessária e útil a ação revisional até mesmo para que se verifique a correta liquidação do saldo devedor, cotejando-o ao valor da avaliação do imóvel – obrigatória no rito de expropriação hipotecária -, concluindo-se pela existência ou não de saldo positivo em favor do executado. Superado o valor do bem excutido ao do débito, o devedor tem direito de receber o que sobejar em observância ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa e pela remarcada função social dos contratos. REsp 1.119.859-PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 28/8/2012.

No mesmo sentido, admitindo a revisão (ainda que não houvesse in casu qualquer abusividade):

1 – É assente na jurisprudência que nos contratos firmados pelo Sistema de Amortização Constante – SAC não se configura a capitalização de juros. Precedentes.

2 – É firme na jurisprudência pátria o entendimento no sentido de que o art. 6º, “e”, da Lei 4.380/64, não fixou limite de juros aplicáveis aos contratos firmados sob a regência das normas do SFH. Posteriormente, o art. 25, da Lei 8.692/93, publicada em 28.07.1993, estabeleceu o limite de 12% para a taxa de juros cobrada nos contratos de financiamento no âmbito do SFH.

3 – No caso dos autos, verifica-se do contrato firmado que a CEF aplica a taxa de juros efetiva fixada em 10,5% ao ano, estando, portanto, dentro dos limites legais, assim como também é respeitado o limite pactuado entre as partes.

4 – Não se discute a aplicação das medidas protetivas ao consumidor previstas no CDC aos contratos de mútuo habitacional vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação, porém tal proteção não é absoluta, e deve ser invocada de forma concreta onde o mutuário efetivamente comprova a existência de abusividade das cláusulas contratuais ou de excessiva onerosidade da obrigação pactuada.

5 – Afasta-se de plano a inconstitucionalidade da execução extrajudicial prevista pela Lei n. 9.514/97, a semelhança do que ocorre com a execução extrajudicial de que trata o Decreto-lei n. 70/66 de há muito declarada constitucional pelo STF.

6 – Os contratos de financiamento foram firmados nos moldes do artigo 38 da Lei n. 9.514/97, com alienação fiduciária em garantia, cujo regime de satisfação da obrigação (artigos 26 e seguintes) diverge dos mútuos firmados com garantia hipotecária.

7 – A impontualidade na obrigação do pagamento das prestações pelo mutuário acarreta o vencimento antecipado da dívida e a imediata consolidação da propriedade em nome da instituição financeira. Não consta, nos autos, evidências de que a instituição financeira não tenha tomado as devidas providências para tanto, nos termos do art. 26, da Lei 9.514/97.

8 – Apelação não provida. (TRF3, APELAÇÃO CÍVEL – 2185781, Rel. Des. Fed. Hélio Nogueira, julgado em 11.10.2016)

Igualmente admitindo a revisão e rejeitando a ocorrência de abusividade:

1 – Não há inconstitucionalidade na execução extrajudicial, prevista pela Lei n. 9.514/97, a qual não ofende a ordem a constitucional, a semelhança do que ocorre com a execução extrajudicial de que trata o Decreto-lei 70/66, nada impedindo que o fiduciante submeta a apreciação do Poder Judiciário o descumprimento de cláusulas contratuais.

2 – Não se verifica abusividade no reajuste das prestações, bem como não há irregularidades no procedimento de execução. A pontualidade do pagamento das prestações enseja o vencimento antecipado da dívida e a consolidação da propriedade em nome da instituição financeira, podendo ser a mora purgada até a data de arrematação do último leilão, mediante depósito da parte controvertida e incontroversa, acompanhada de juros, encargos e demais penalidades, à luz do disposto no Decreto-Lei 70/66, não obstando a execução o depósito tão somente do valor que se entende por devido, situação dos autos.

3 – Não há onerosidade excessiva no contrato em questão pela adoção do sistema SAC – Sistema de Amortização Constante de amortização, o qual, igual ao SACRE consiste num método em que as prestações tendem a reduzir ou, pelo menos se manterem.

4 – Agravo de instrumento desprovido. (TRF3, AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0007892-76.2016.4.03.0000/SP, Rel. Des. Fed. Souza Ribeiro, julgado em 23.08.2016)

Assim, esperamos ter exposto certas nuances sobre a execução imobiliária extrajudicial e as possibilidades de defesa dos interesses do devedor.

 

Tiago Bitencourt de David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL.

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  1. Alex

    Faltou incluir na legislação comentada, a ciência inequívoca do devedor, quanto a perda do imóvel, após qualquer inadimplência. Estamos falando aqui em compradores, que pagaram o imóvel durante anos e perdem seu imóvel sem o devido processo legal ao atrasar um ou dois meses…
    Na verdade é um excelente negócio para o Banco retomar o imóvel, podendo isso acontecer, mesmo que para isso faltem algumas prestações, ou ainda que a maior parte do financiamento tenha sido pago.
    Vejo que muitos são os defensores da constitucionalidade da lei 9.514/97 que somente favorecem aos bancos, mas será que algum dia teremos um defensor do povo deste pais? Certamente, são os menos abastados que fazem o financiamento para adquirir o primeiro imóvel ou sair do aluguel, porém, em seus escritórios luxuosos ninguém alerta esse ingênuo comprador, que a inadimplência de uma única parcela será sua sentença final para a perda do imóvel e na maioria das vezes tudo que pagou…

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