As calçadas e o direito à cidade

Coluna Direito à Cidade

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Foto: Pixabay

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O caminhar

A reflexão sobre as calçadas é fundamental para o debate sobre o “direito à cidade”. Afinal, enquanto outros modais deslocam a cidade para o papel de mero espaço de passagem, o caminhar é permite a apropriação do espaço público, favorecendo a construção de um novo sentido de pertencimento.

Caminhar traz a rua para a escala do pedestre e, de acordo com Jan Gehl, está na raiz da ideia de cidade para as pessoas. A afirmação parece intangível, mas os números mostram o contrário: na cidade de São Paulo, por exemplo, 7% dos habitantes fazem seus deslocamentos diários a pé, segundo dados do Datafolha de 2014.

Natural imaginar que o assunto ocupasse lugar prioritário na regulação jurídica por parte do Município, mas a experiência paulistana revela o contrário. As calçadas são objeto de um compilado de normas que, longe de ajudar, são em parte responsáveis pela sua péssima qualidade.

Leis e normas

Para aprovação de projeto de edificação em áreas onde a Prefeitura pretende promover o adensamento em virtude da oferta de transporte público, a largura da calçada deve ser feita de modo que a sua dimensão final seja de, no mínimo, 5 metros, conforme dispõe o artigo 67 da Lei Municipal nº 16.402/16.

Da mesma forma, a Lei da Operação Urbana Água Espraiada (Lei Municipal nº 13.260/10) estipula a obrigatoriedade de doação de área destinada ao alargamento de calçada, que varia de 2 a 4 metros a depender do setor.

Ambos dispositivos oferecem contrapartidas ao proprietário como o acréscimo do dobro da porção doada à área remanescente imóvel e o cômputo dos potenciais construtivos básico e máximo do remanescente do lote em função de sua área original. O estímulo é importante, mas se aplica apenas às regiões objeto de intervenção pública e privada, sem um sentido sistêmico.

Para além delas, São Paulo conta com uma lei de conservação das calçadas (Lei Municipal nº 15.442/11 com alterações da Lei Municipal nº 15.733/13).

Referida norma prevê que a responsabilidade pela conservação da calçada é do proprietário ou possuidor do imóvel na extensão da testada e, subsidiariamente e a seu critério, do Poder Público. A faixa mínima é de 1,20m para livre circulação de pedestres, e deverá ser conservada para não apresentar buracos, ondulações ou obstáculos.

Questão mais profunda

Entregar essa incumbência ao particular numa nação que se urbanizou sem romper com os traços de uma modernização conservadora, com elementos coloniais enraizados, trouxe consequências nefastas. Passear pelas ruas dos bairros traz uma experiência próxima a uma etnografia a céu aberto, mostrando como o particular encara a “sua” calçada: ora com desdém, ora convertendo-a num bibelô urbano, mais contemplativo do que funcional.

No fundo, o que está em jogo é a percepção do sentido de esfera pública, e nisso a leitura de Raquel Rolnik é certeira: a rua, sua expressão concreta, sempre foi vista, no Brasil, como escura, suja, promíscua e perigosa. A sua recusa equivale a negar a própria experiência democrática: afinal, a rua é a casa da democracia, e talvez a saída para esse assunto esteja justamente aí, no debate democrático, capaz de conduzir a novos consensos sobre o assunto.

Uma tentativa de superação desse quadro pela lei ocorreu com a aprovação pela Câmara Municipal de São Paulo o Projeto de Lei nº 79/13 que propõe a transferência da responsabilidade pela conservação das calçadas integralmente ao Poder Público. O fundamento é que o conceito de “calçada”, trazido pelo Código de Trânsito Brasileiro, a define como via pública e, como tal, deveria ser conservada pelo Poder Público.

Visão limitada, proposta vetada

No entanto, a proposta foi vetada pelo então prefeito Fernando Haddad, pelo fato de que tal medida acarretar imenso dispêndio de recursos públicos sem previsão orçamentária correspondente, dentre outros motivos (razões do veto: http://documentacao.camara.sp.gov.br/iah/fulltext/veto/VEPL0079-2013.pdf).

O tema é polêmico e merece reflexão. Por um lado, em que pese o inciso I do artigo 23 da Constituição Federal dispor sobre a competência comum entre os entes federativos na conservação do patrimônio público, de nada adiantaria transferir a responsabilidade ao Poder Público caso não haja capacidade financeira para a conservação de todas as calçadas da cidade. Por outro, levá-la adiante é indispensável para compreender e concretizar o direito à cidade.

 

Marcella Corrêa Martins é advogada do Escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados, membro-convidada da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/SP, especialista em Direito Constitucional e pós graduanda em Direito Imobiliário na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.
Wilson LevyWilson Levy é Articulista do Estado de Direito – doutor em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SP e do Núcleo de Estudos em Direito Urbanístico da Escola Paulista da Magistratura. Professor permanente do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE.

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