A crise da democracia no Brasil (Parte 1)

Coluna Democracia e Política

Se você deseja se tornar um colunista do site Estado de Direito, entre em contato através do e-mail contato@estadodedireito.com.br
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Pesquisador de destaque

A palestra “A crise da democracia representativa no Brasil” foi realizada pelo professor Luis Felipe Miguel (UNB) como aula inaugural do curso de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul na Sala 2 da Reitoria no último dia 31 de março. A atividade não reuniu mais do que cinquenta pessoas mas revelou as ideias notáveis de um pesquisador que tem assumido destaque na Ciência Política brasileira com sua postura proativa no debate público e defesa do Estado de Direito que o levam da ciência à esfera do debate político, e desta, às razões da crise da democracia representativa, como salientou seu apresentador, o prof. do PPG em Ciência Política, Dr. Paulo Peres, na apresentação do palestrante. Por essa razão, vale a pena reconstituir a linha argumentativa de Miguel como forma de preservar sua fala, e por essa razão, tudo o que se segue são, literalmente, nossas anotações de palestra, o cerne do pensamento político miguelino na minha interpretação pessoal e portanto, com eventuais problemas decorrentes de uma leitura especifica que não passou pela revisão do autor e sob a qual sou o único responsável.

Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq, tendo publicado os livros Mito e discurso politico (Editora Unicamp, 2000), Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014) e O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Editora UnB, 2015).

O paradoxo da discussão democrática

Miguel começou sua palestra chamando a atenção para o paradoxo da discussão democrática no Brasil, essa espécie de “missa de corpo presente”, onde a questão principal é saber se o Brasil está numa pós-democracia ou uma pós-ditadura. Em nosso regime democrático, afirma Miguel, a democracia foi fraturada, o que significa que os dois pilares de compreensão consensual do significado da democracia foram alterados “a ideia de que os governantes devem conquistar a autorização dos cidadãos para governar e a ideia de regras fixas que valem para todos”, as duas mais toscas definições de democracia, estão em crise.

Para Miguel, a razão disto é que houve uma aposta demasiado confiante nas instituições de democracia liberal. O autor lembra que a expressão “democracia representativa”, é sempre uma contradição de termos “A democracia é, no sentido de sua definição inicial como o governo do povo. A contradição é que o povo não governa, quem governa são representantes eleitos. É, portanto, o governo do povo em que o povo não governa porque delega a tarefa de governar para outros. Ela é em si mesma uma forma de assimetria”, afirma. Por esta razão, segundo o cientista político, é importante explicar como desigualdades presentes nas sociedades democráticas conseguem se reproduzir, seja porque o poder é monopolizado por alguns grupos sociais em detrimento de outros, seja porque os poderosos são sensíveis a alguns interesses mais do que outros “os sistemas representativos são vulneráveis a desigualdade presente na sociedade”, sentencia. E Miguel acrescenta o fato mais importante, de que a representação acrescenta uma nova desigualdade, entre aqueles que decidem e aqueles que são submetidos a ela “E a forma de desigualdade política, entre tomadores de decisão e governados”. Este é o tema de seu mais recente livro, Desigualdades e democracia, publicado pela Editora da Unesp onde o autor mostra como na Grécia Antiga imperavam múltiplas exclusões e como nos regimes contemporâneos, a extensão da cidadania convive com o alcance reduzido da vontade popular.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A questão passa a ser então como superamos esta nova desigualdade, a desigualdade política, e como damos poder na sociedade aos governados, discussão que o autor denomina de “qualidade democrática da representação”. A eleição nada mais é do que a produção de processos competitivos eleitorais que tem como efeito a produção de governantes ”As regras eleitorais são as que permitem, legitimamente, escolher, quem pode decidir em nome das outras”. É claro, este é um princípio circular, afirma o pesquisador, já que é legitimo, quem é eleito pelas regras e as regras é que garantem governantes legítimos. O golpe que tirou Dilma do poder não respeitou estas regras, afirma o autor.

Democracia e problematização

A legitimidade necessita de um mínimo conteúdo para sobreviver. Para o senso comum a democracia é sempre boa e um voto vale tanto quanto outro, o que implica “que um governo legitimo precisa remeter, de alguma maneira, a uma vontade popular”. Idealmente, as eleições são a expressão dessa vontade, destaca Miguel, e apesar dos vários elementos presentes de manipulação e invesamento, as eleições são consideradas legitimas porque se supõem que sejam expressão de uma vontade popular. É a narrativa básica da democracia, que pode ser encontrada desde a obra de Dworkin a Habermas, defende Miguel.

A teoria da democracia, no entanto, pode ser problematizada. Primeiro porque a vontade ou expressão do eleitor “é construída em meio a debates e preferências e a produção da preferência é um dos alvos principais dos agentes políticos”. Isto é problemático para Miguel porque significa que as candidaturas são sensíveis aos recursos disponíveis no processo de formação social das preferências “diferentes grupos sociais tem diferentes capacidades de influenciar as eleições pelo controle dos meios de comunicação, pelo controle dos meios cognitivos, pelo controle dos recursos materiais para difusão de suas próprias representações”, afirma.

Quer dizer, para Miguel, o que temos é um grande mercado político onde se fazem ofertas para consumo, daí a produção de ruídos e manipulações “o eleitor pode identificar de maneira equivocada entre as ofertas do mercado político aquela que é a sua preferência. Ele pode votar iludido no que é aquele partido ou candidato simplesmente porque o voto é um mecanismo muito rudimentar para expressão das vontades políticas”, sentencia.

O que quer dizer Miguel quando diz que o voto é um instrumento rudimentar de expressão? Para o cientista politico há muito a dizer quando se vota: são inúmeras preferências econômicas, políticas e culturais que o cidadão deve entender como expressas por programas de governo. O voto precisa expressar o desejo por um candidato que encarne a vontade do cidadão em inúmeros campos mas  “não diz nada dos motivos da escolha do cidadão”. O cidadão que vota num candidato o faz porque concorda com os programas, concorda com parte deles ou vota por exclusão de outro candidato? pergunta. Afirma Miguel que “o voto é muito pouco expressivo”, quer dizer, é muito pouco para exprimir seus interesses, suas razões, é pouco significativo “quer eu vote, quer eu não vote, o resultado tende a ser o mesmo”, afirma Miguel. O pior é que, como o sistema eleitoral é um sistema pouco estimulante, pouco exigente de qualificação, a tendência é que o eleitor mediano, pouco qualificado, seja dominante e seja susceptível à manipulação. Quer dizer, a pretensa igualdade no interior do mercado eleitoral, entre candidaturas, inexiste.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Conclusões

Ainda há uma distância entre o prometido e o real. Mesmo em candidaturas honestas, a realidade se impõe e modifica o prometido. Há novas barganhas, novas negociações que se impõe quando assume o poder, que as vezes impede que o eleitor que o elegeu consiga controlá-lo. Além disso, o fato de governantes serem eleitos com origem social diversa dos governados afeta o exercício democrático: transformados em governantes, eles tendam a desenvolver interesses distintos da sua base, como observou Robert Michells, afirma Miguel. Produz-se a distância entre vontades e preferências “não é possível uma representação política totalmente isenta de ruídos, que se agravam pelas diferentes capacidades de expressão dos diferentes grupos. Toda representação política é imperfeita”, diz Miguel. E completa “ela é diferenciadamente incompleta, é mais pior para os grupos subalternos”, quer dizer, sempre os filtros beneficiam os mesmos grupos dominantes de sempre. O que fazer?

Primeiro, é preciso dar-se conta dos “processos de homogeneização” relacionados aos mecanismos de funcionamento do campo político. Quando se forma um grupo de governantes entra-se num espaço homogeneizador, o que acontece, inclusive, quando se elege um trabalhador para o Congresso Nacional, já que esta instituição tem códigos, modos de funcionamento, que exigem uma adaptação para capacitá-lo para dialogar com seus colegas, ao mesmo tempo que se afasta de sua base. São assim os “filtros” do mundo político, que fazem com que os originados das classes populares tenham dificuldade de apresentar sua experiência, suas ideias de classe, pela barreira da linguagem ou para ser apropriado pelo grupo dominante, ou ela é calada, ou é “falada por outra língua”, afirma Miguel “sempre há um grau de afastamento entre representantes e representados, mas ele é maior para trabalhadores, negros, mulheres”, diz.

Segundo, é preciso reconhecer que o regime é igualitário, mas a sociedade é desigual “As democracias representativas tem elementos valiosos de civilização pela capacidade de afirmar a igualdade, que terminam por terem seu efeito reduzido pois criam uma camada de tomadores de decisão que se afastam das bases e freiam as reivindicações“, afirma. Ainda assim, para Miguel, a democracia é o espaço de possibilidade para uma ação diferente, para uma desorganização do jogo político das elites “o fato de que o acesso a posições de poder depende de uma deliberação da maioria, obriga ao menos que as elites finjam que levam em consideração o desejo da massa – a hipocrisia é uma homenagem que o vício prega a virtude”. E finaliza o cientista político: “mesmo na visão mais minimalista, a democracia implica na concessão dos governados por meio do voto”.

O que foi abandonado no Brasil? Questiona Miguel. Para o cientista político, a partir do segundo turno das eleições de 2014, grupos poderosos vinculados a interesses poderosos derrotados naquela eleição, decidiram que os vitoriosos não poderiam governar. É uma decisão tomada a partir de jornadas de 2013, que mostrou a fissura entre o PT e a sua base social, e para uma parte da população, as políticas compensatórias não eram mais suficientes, o que tornou a expectativa de uma vitória eleitoral para as elites, com a lava-jato, a campanha contra a presidente e seu partido, etc. A reeleição de Dilma produz o desânimo na direita, afirma Miguel: se Aécio foi derrotado no momento máximo de crise de Dilma, e ela ainda é eleita, a direita se vê no limite. Por esta razão, lembra o cientista político, José Aníbal, senador da República, tuitou, faltando uma semana do segundo turno, a frase de Lacerda contra Dilma “este homem não pode ser candidato, se for candidato não pode ser eleito, se for eleito não pode tomar posse, se tomar posse não pode governar”. O processo de derrubada do governo tem relação com o sentimento de grupos dominantes de que a democracia estava demais, que depender do voto não dá mais para tolerar, afirma Miguel, pois o resultado estava sendo desagrado dos grupos no poder, mas nesse momento, é violado  o princípio básico da democracia liberal, o princípio da intercambialidade: o resultado da eleição deve ser respeitado, independente se corresponde a vontade da maioria ou da minoria, o que significa, para o cientista político, que nenhum grupo tem poder de veto, exatamente o contrário do que  vimos no Brasil, que foi a imposição de veto (continua).

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe