Coluna Lido para Você: Direito no Cinema Brasileiro

Coluna Lido para Você

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DIREITO NO CINEMA BRASILEIRO. Carmela Grüne (org). São Paulo: Saraiva, 2017, 367 pp.

Recebi com muito gosto e motivação, o pedido de Carmela Grüne, a inquieta e diligente presidenta do Instituto Cultural Estado de Direito, também Diretora do já consolidado Jornal Estado de Direito, editado em Porto Alegre, sede de vários e destacados projetos culturais que têm contribuído para estreitar as relações entre arte, cidadania e Direito, para prefaciar o novo livro que ela organiza e apresenta. Este texto, portanto, além de ter servido de prefácio para a obra, é um exercício de leitura, feito para sugerir leitura, o que equivale a dizer, compartilhar um texto que foi lido para você.

Tédney Moreira, Carmela Grüne e José Geraldo de Sousa Junior no lançamento da obra Direito no Cinema Brasileiro. Foto: AP

Tédney Moreira, Carmela Grüne e José Geraldo de Sousa Junior no lançamento da obra Direito no Cinema Brasileiro. Foto: AP

Trata-se do livro “Direito no Cinema Brasileiro”. Na ocasião Carmela me pediu que fizesse o prefácio da obra, sugerindo que “O Direito Achado na Rua”, projeto que coordeno há trinta anos, “tem tudo a ver diz ela – com a ideia do livro, – ou seja – demonstrar formas de sensibilizar o conhecimento – o encontro do direito com a sétima arte – para o aumento do protagonismo e do empoderamento social”.

Localiza-se já aqui uma nota de singularidade. Com efeito, a obra não inaugura uma vertente de interesse para o conhecimento do Direito e suas formas de difusão, incluindo o ensino e a educação jurídicas. As relações entre Direito, Arte, Literatura, Teatro e Cinema formam uma Paidéia em alcance clássico e dispõem de um catálogo expressivo para o confirmar.

No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.

Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade”.

Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a formação da mais-valia, e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário: “Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas)”.

No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.

Aplicadas aos operadores do Direito, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília): “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.

O antropólogo Pierre Clastres, em seu livro “A Sociedade Contra o Estado – Investigações de Antropologia Política” (Porto: Afrontamento, 1984), mostra que a lei encontra espaços inesperados para se inscrever, indicando uma relação entre lei, escrita e corpo como eixo essencial relativamente ao qual se ordena, na sua totalidade, a vida social e comunitária.

É certo que Clastres transporta a sua percepção para a dimensão antropológica em cuja análise se deteve, ou seja, o estudo das sociedades antigas e os ritos de iniciação que nelas, fazem do corpo o espaço que a sociedade designa “como único espaço propício a transportar o sinal de um tempo, a marca de uma passagem, o cumprimento de um destino”, transformando o corpo do indivíduo em veículo de uma operação social de aprendizado, de identidade e de norma cultural.

Para Clastres, o ritual iniciático é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens e por meio dele “a sociedade dita a sua lei aos seus membros, ela inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos porque a ninguém é permitido esquecer a lei que funda a vida social da tribo”.

Em suas considerações, Clastres evoca a passagem de Kafka em “A Colônia Penal”, na qual o oficial explica ao viajante o funcionamento da “máquina de escrever a lei”: “a nossa sentença não é severa. Gravamos simplesmente com a ajuda do ferro o parágrafo violado sobre a pele do culpado”.

Aliás, trazendo essas considerações para o campo da imagem e do cinema, vale pontuar o belo vídeo produzido pelo Centro de Produção Cultural e Educativa – CPCE, da Universidade de Brasília, a UnB: “Pintura Corporal“, interessante trabalho de pesquisa e de direção de Devair Montagner.  Em seu roteiro traz grafismos, desenhos, cores, pinturas corporais das culturas Yanomami de Demini (AM), Kayapó de Kriketum (PA) e Marubo (AM), revelando significados sociais e simbólicos, que justificam o sobretítulo do vídeo – “Uma Pele  Social“.

Penso, pois, tomando como referência a metáfora da “pele social”, ser possível conceber a constituição de discursos sociais de normatividade para além dos lugares usuais e obrigatórios da jurisdição: o Estado, as classes sociais, os grupos de poder, revelando-se em seus significados rebeldes ao “discurso da arrogância” de que fala Barthes, sempre que de um lugar “autorizado” se reivindique o monopólio do dizer o direito.

Tenho em mente, ao assinalar a necessidade deste deslocamento de percepção, a advertência de Carlos Cárcova de que o direito, enquanto dimensão ontológica da normatividade social, deve ser pensado como “uma prática social específica que expressa e condensa os níveis de conflito social em uma formação histórica determinada”. Mas esta prática, ele completa, “é uma prática discursiva no sentido que a língua atribui a esta expressão , isto é, no sentido de um processo social de produção de sentidos”, processo conforme indica Enrique Marí, de “formação, decomposição e recomposição no qual intervém outros discursos que, diferentes por sua origem e função se entrecruzam”.

Do que se cuida é fecundar a inquietação enquanto atitude capaz de operar sínteses de esclarecimento que rejeitem o monólogo da razão sobre as formas possíveis de conhecer e de compreender o mundo: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica: o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; crer, da atitude mística; o divertir-se, da atitude lúdica; lembrando aqui estas expressões indicadas por Roberto Lyra Filho.

Não é a Justiça a resultante de um diálogo que liga os Atos dos Apóstolos ao Manifesto Comunista de 1848? Entre nós, no Brasil, quem disso se apercebeu, em síntese político-jurídica evidente foi o político e jurista João Mangabeira: “a fórmula da Justiça não deve ser mais a que se resume em ‘dar a cada um o que é seu’. Aplicada em toda a sua inteireza, a velha norma é o símbolo da descaridade, num mundo de espoliadores e de espoliados. Porque se a Justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria e ao desgraçado a desgraça, que isso é o que é deles. A regra da Justiça deve ser: a cada qual segundo o seu trabalho, enquanto não se atinge o princípio de ‘a cada um segundo a sua necessidade”‘.

De outro modo, não podendo às vezes ultrapassar o disciplinado esforço de fundamentação próprio dos estudos lógicos sobre o enunciado dialético da contradição, pode o discurso artístico suprir o labor filosófico e num delírio declamatório dizer o indizível: “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”, na música de Gilberto Gil; ou no poema de Alberto Caieiro: ” O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia./”.

Quase 50 anos após a conferência de Sutherland lançando a tese do white collar crime o debate chega a nossa consideração criminológica sob o impulso de uma delinquência político-institucional. Todavia, a declamação antecipadora dos versos inquietos de Chico Buarque e Francis Hime, cantava os desvarios de nossas elites entreguistas e predadoras: “Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações.“.

Em seu livro “Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis” (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações: “As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas” (pág. 23).

Essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a “Crítica da Razão Pura de Kant”, recebeu a resposta imediata, “não, mas assisti o filme”.

Anoto aqui, o cuidado editorial, por exemplo, do Ministério de Justicia y Derechos Humanos, da Argentina, no sentido de preservar esse imaginário e procurar inculcar na cultura jurídica dos operadores do direito e da justiça portenhos a exigência do enlace entre direito e literatura. Indico a importância da leitura do livro organizado por Alicia E. C. Ruiz, Jorge E. Douglas Price e Carlos María Cárcova, “La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura” (Buenos Aires: Infojus, 2014). Na Introdução ao livro, coincidente com as tendências marcadas por Eliane Junqueira, Carlos Cárcova para além de reafirmá-las, ainda acresce: “outro tipo de articulación, una articulación ‘interna’…que permite descubrir notables analogias en el proceso de produción discursiva del derecho, por una parte y en el de la literatura en sentido amplio, por otra” (pág. IX).

Volto ao livro de Eliane, para dizer que nele, uma nota de precedência é encontrada, quando ela acentua que a inspiração para a edição que preparou, decorreu dos “ciclos sobre Direito e Teatro e Direito e Cinema organizados por Nilo Batista na Seccional Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro, em 1986” (pág. 17).

Portanto, ao interesse que o teatro sempre proporcionou para o conhecimento do direito e para a pedagogia da vida pública e da cidadania e que aparece de forma expressa e razão de fundo nas obras de Hegel (valendo-se da Antígona), de Jhering (utilizando o Mercador de Veneza) e que se transforma em método no trabalho político de Augusto Boal (Teatro do Oprimido, Teatro Forum), hoje registro didático difundido no ensino jurídico, ganhou o cinema esse lugar destacado, que a filosofia soube tão bem utilizar. No ensino jurídico aludo às excelentes estratégias encontráveis um pouco nos melhores cursos.

Na UnB, que melhor conheço, distingo os projetos combinando ensino, extensão e pesquisa desenvolvidos pelos professores e professoras Gloreni Machado (teatro), Bistra Apostolova (teatro), Alexandre Bernardino Costa (cinema) e Cristiano Paixão (cinema). E, notadamente, o trabalho que está sendo atualmente desenvolvido pela professora de origem argentina Alejandra Leonor Pascual: Produção cinematográfica para direitos humanos, para estudantes de Graduação e de Pós-Graduação em Direito e outros cursos da UnB.

Conforme nota que fez a meu pedido, a professora Alejandra salienta que a rica experiência de ensino e implementação do uso de produção cinematográfica em disciplinas de Graduação e de Pós-Graduação começou durante o primeiro semestre de 2011, na Faculdade de Direito da UnB, quando ministrava disciplinas que abordam temáticas de direitos humanos.

Em suas palavras, “com essa metodologia os/as alunos/as aprendem a realizar filmes de forma profissional para a realização de seus trabalhos acadêmico-científicos, em cada uma das etapas de produção de um filme; aprendem a trabalhar em equipe já que o produto final dessa metodologia será a realização de um filme, pensado, elaborado, discutido, ambientado, protagonizado, musicalizado e editado pelos próprios estudantes. A ideia de incorporar o ensino e uso de produção cinematográfica no ensino começou em 2010 quando estava realizando um Pós-Doutorado em Filosofia Política na cidade de México. Durante a minha permanência naquela cidade comecei a frequentar cursos sobre produção cinematográfica, que incluíam o domínio de técnicas de pré-edição de filmes (linguagem cinematográfica, elaboração dos personagens, história e argumento cinematográficos, elaboração de roteiro, story-bord, planilhas e plantas de filme), edição de filmes (uso de cores e sons, uso das câmeras e iluminação, como filmar, realização de diálogos, etc.) e pós-edição de filmes. Depois de ter realizado vários cursos naquela cidade ainda realizei um último, sobre metodologia de auto-conhecimento para produção cinematográfica, com a cineasta mexicana Carolina Rivas, que foi de fundamental importância para possibilitar a sistematização de uma metodologia apropriada para organizar e incorporar o conhecimento obtido nos cursos sobre produção cinematográfica no intuito de aplica-la como proposta didático-metodológica no Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB”.

A experiência foi objeto de comunicação no “I Encuentro Internacional de estudios visuales latinoamericanos 2014”, organizado pela Universidad Nacional de Hidalgo e realizado em Pachuca, Hidalgo, México, em julho de 2014 sob o título “Enseñanza de producción cinematográfica para la realización de trabajos académico-científicos sobre derechos humanos en América Latina”.

Além disso, em 2015 a professora recebeu Menção Honrosa na primeira Edição do Prêmio Esdras Borges de Ensino do Direito, sobre qualidade da dinâmica de ensino do Direito, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, pelo trabalho que desenvolve com o ensino de produção cinematográfica em direitos humanos na Universidade de Brasília –UnB.

Chamo a atenção, entretanto, para a vertente filosófica de conhecer pelo cinema por meio do precioso livro de meu colega de UnB, o também argentino Julio Cabrera “Cine: 100 años de filosofia. Uma introducción a la filosofia a través del análisis de películas. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999). Pelo que sei há uma edição brasileira recente desse livro, embora eu não saiba indicar a fonte editorial.

Na obra Cabrera faz uma advertência para a qual sinalizei antes: “Decir que el sentido del mundo debe abrirse para uma racionalidad exclusivamente intelectual, sin ningún tipo de elemento emocional y sensible, es, por lo menos, una tesis metafilosófica que necesita de justificación. Tal vez el sentido del mundo solo sea captable a través de uma combinación – estratégica y amorosa – de sense y sensibility, como diria la profesora Emma Thompson. En este sentido, se habla aqui de una ‘razón logopática’, de uma racionalidad que es lógica y afectiva al mismo tiempo, y que se encontraria  presente en la literatura, en la filosofia de los mencionados ‘rebeldes’, y, ciertamente, em el Cine”  (pág. 9).

Também no ensino do Direito, desde há muito, percebe-se a preocupação didático-pedagógica e também epistemológica, de abrir o conhecimento do jurídico para outros modos de apreensão de seu objeto, em diálogos estético-expressivos mediados por diferentes racionalidades.

Essa preocupação transparece dos esforços indutores que a Comissão de Educação Jurídica, na origem (1991), Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, do Conselho Federal da OAB, procurou imprimir em seu protagonismo para o aperfeiçoamento dos cursos de Direito, sua atualização curricular e sua avaliação. Em balanço crítico de um de seus mais destacados presidentes, influente no estabelecimento de padrões para a implementação desses objetivos (MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Ensino Jurídico, Literatura e Ética. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2014), com experiência docente “enriquecida com o trabalho que o autor desenvolveu, ao longo de seis anos, na presidência da Comissão Nacional de Ensino Jurídico da OAB” (pág. 9), constata-se o tempero que a literatura proporciona para a formação jurídica. De fato, ele procura mostrar (pág. 9), “como algumas obras essencialmente literárias podem ser úteis no ensino do direito”. Ele acrescenta: “À guisa de motivação para as aulas ou, até mesmo, como método destinado a ilustrar o estudo de determinados institutos, o professor de direito pode valer-se, com proveito, da literatura. Isso já não constitui novidade, nas Faculdades de Direito, de tal forma esse enfoque vem sendo difundido em trabalhos teóricos e adotado na prática docente. Livros e revistas especializadas têm contribuído significativamente para despertar o interesse pela literatura, servindo como elementos auxiliares do ensino jurídico. Além do que o gosto literário amplia a formação humanística e esta é indispensável ao profissional do direito. O senso jurídico, que Ferrara dizia ser tão importante para o jurista quanto o ouvido musical para o músico, só pode ser apurado pelas boas leituras e pela experiência da vida. Até mesmo a poesia tem papel de relevo na formação do senso jurídico. Não é por outra razão que Couture salientava que sentença deriva de sentir. O juiz que conhece apenas o direito tende a isolar-se numa torre de marfim. Ele necessita obter isso que as escrituras chamam de sal da terra, como forma de prevenir-se contra as impurezas do espírito humano e os vícios de interpretação que podem causar. Da mesma forma o advogado não deve adstringir-se às leis. Carlos Drummond nos advertia, em belo poema, que as leis não bastam / os lírios não nascem das leis. Daí o lugar de destaque conferido à literatura no ensino jurídico” (págs. 9-10).

Em seu instigante livro “El aprendizaje del aprendizage. Fruta Prohibida. Una introducción al estúdio del Derecho”, Madrid: Editorial Trotta, 1995), Juan Ramón Capella mostra a preocupação de que o estudo do Direito não se torne uma tarefa fatigante, “desligado dos temas que andavam pelas ruas”, para assinalar o desalento, lembra Roberto Lyra Filho, do estudante de direito Castro Alves (“Pego o compêndio – inspiração sublime/ P’ra adormecer inquietações tamanhas./ Violei à noite o domicílio – ó crime!/ Onde dormia uma nação de aranhas”.) e sugere metodologias alternativas de modo a “aprender de material no jurídico: de los relatos cinematográficos, de la pintura, de cursos o conferencias de otras facultades. Sobre todo, de la lectura; y del saber estar en soledad” (pág. 97).

Ao final de seu livro cuida de oferecer a título de bibliografia um elenco amplíssimo incluindo discografia e um catálogo de “cines”, registrando, que “no puedes perderte…” (págs. 110-111). São filmes que envolvem a prática e a performance jurídicas, as dimensões da pedagogia (método e didática) e o próprio conhecimento, inclusive do Direito.

Com esse mesmo intuito vale mencionar os trabalhos de Luis Carlos Cancellier de Olivo e Renato de Oliveira Martinez (http://bit.ly/2Hnergd e http://bit.ly/2HqpKV3 – acesso em 12/01/2016). Vale à pena consultar esses dois registros, para localizar alguns trabalhos que contribuem para o tema e usufruir de um excelente levantamento bibliográfico, dentro de um campo de estudo, assinalam os autores, que corresponde a uma área de investigação que compartilha o interesse por um mesmo tema, e que se desenvolve por meio de um conjunto interrelacionado de práticas, técnicas, informações e experiências”.

Próximo ao desenho elaborado por Cabrera para a Filosofia, mas com pretensão focalizada em relacionar “filmes para discutir conceitos, teorias e métodos”, localiza-se o livro “Direito e Cinema”, (Salvador: Edufba, 2004), organizado por Verônica Teixeira Martins Marques, Ilzver de Matos Oliveira e Waldimeiry Corrêa da Silva. Tomo alentado de 543 páginas se presta aos objetivos dos organizadores com o apoio dos seus colaboradores autores e autoras de oferecer à didática do ensino jurídico, a abordagem de “relações instigantes entre filmes e conceitos – dos filmes hollywoodianos à poesia de metáforas sensíveis – onde o cinema registra a condição de nossa existência com o poder de imagens, sonhos e ideais, de maneira que uma teoria árida ou o caráter de neutralidade dos métodos científicos se tornem acessíveis a partir do poder de imaginação provocado pelo cinema” (pág. 10).

Foto: AP

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Reconheço no livro que ora prefacio – DIREITO NO CINEMA BRASILEIROa força de todas as intencionalidades que procurei demarcar, em consonância com as aproximações narrativas que colecionei em meu texto.

Recorto as ricas e plurais contribuições coligidas no livro, com temas que trazem ainda a vinculação em algumas abordagens, também da questão política, por exemplo, a vivida sob a sombra do autoritarismo obscurantista, que resultou em censura, em tortura, em exílio, em assassinato político. No recém-lançado volume, o nº 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et allli (orgs). Brasília: Centro de Educação a Distância – CEAD/NEP/UnB- MJ/Comissão de Anistia, 2015), inclui um texto do cineasta, expoente do documentarismo brasileiro, meu colega de UnB, Vladimir Carvalho (“A Resistência em Brasília – um breve testemunho”), exemplar a esse propósito (págs. 69-70):

“Neste mesmo ano de 1971, por mais que tentasse evitar,  confrontei-me com o esquema de repressão do Estado discricionário: meu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi liminarmente proibido pela Censura e mais do que proibido, interditado em todo o território nacional. O veredito dos censores, como está no Diário Oficial da União, incluía uma justificativa afirmando que o documentário, imaginem, ‘feria a dignidade e os interesses nacionais’. Decidi, então, que não iria desistir e inscrevi o filme na competição do Festival de Brasília; para minha surpresa, ele foi selecionado. Entretanto, para purgar os meus pecados, a direção da Fundação Cultural, que tinha como presidente do seu Conselho José Pereira Lira, ex-chefe de polícia no Governo do general Eurico Dutra, foi taxativa, e, dias depois, recusou a decisão da Comissão de Seleção. Ficava o dito por não dito. … apelei e fui sozinho e contrafeito ao velho Pereira Lira, homem tosco, servil aos poderosos, herdeiro dos coronéis do Piancó, na Paraíba. Disse-me, seco como uma múmia, despachando-me: ‘Se esse seu filme fosse boa coisa, não teria sido preso na Censura’. Ainda insisti, indo bater na porta do gabinete de Rogério Nunes, manhoso e sibilino chefe da Censura Federal. E aí foi a vez da mais descarada farsa. Apanhou o meu processo e foi despachar com o general Canepa, o temível chefão da Polícia Federal; duas horas depois, voltou dizendo que o Ministro Alfredo Buzaid estava muito preocupado com o que lera na imprensa e, temendo pelo festival, desaconselhara qualquer liberação. Resumo da ópera: o O País de São Saruê foi substituído por uma xaropada esportiva chamada Brasil Bom de Bola, para adular o ditador Médici, que havia recebido em praça pública os vencedores da Copa de 70, objeto do documentário”.

Sugiro a leitura completa do texto de Vladimir Carvalho, conforme a referência indicada, em tudo ilustrativo do quadro hostil que o autoritarismo esboça para escapar ao modo artístico de fazer a leitura simbólica do social, do político e do jurídico. E, no ambiente universitário, também afetado por essas interferências, de que modo o conhecimento crítico, nas suas múltiplas expressões, se preserva gerando formas sutis de resistência. Assim também em relação ao cinema. De fato, conforme ele conclui o seu texto (pág. 71): “Foi no clima dessa reconstrução (da Universidade de Brasília) e como pedagogia para a superação do período autoritário, que realizei ‘Barra 68 – Sem perder a ternura’”.

Realço o rol dessas contribuições que o livro “Direito no Cinema Brasileiro” reúne: “Esta noite encarnarei no seu cadáver: a arte sub judice nos filmes de Zé do Caixão” de Gisele Mascarelli Salgado; “O filme Doméstica e a problemática regulamentação do trabalho doméstico no Brasil”, de Synara Veras de Araújo;  “Você nunca disse “eu te amo””, de Tatiana Ribeiro de Souza; ““Levanta os braços, olha pra mim e não faz porra nenhuma”: a guerra particular de Tropa de Elite como um dispositivo do Estado de Exceção” de Marcus V. A. B De Matos; “Cidade de Deus – Um retrato do Preconceito”, de Álvaro de Azevedo Gonzaga e Maria Fernanda Borio; “Terra Vermelha: a realidade dos Guarani-Kaiowá”, de Tédney Moreira da Silva; “O prisioneiro da grade de ferro”, de Stéfanis Caiaffo; “O Alienista – Literatura, cinema, poder e ideologia”, de José Luiz Quadros de Magalhães; “A cortina de fumaça do proibicionismo”, de Marcelo Semer; e, ““Bendito fruto” : Minorias, ética dialógica e dignidade da pessoa humana”, de Afonso Soares de Oliveira Sobrinho.

Synara Veras de Araújo em sessão de autórgrafos no 12ª Fest Aruanda. Foto: AP

Synara Veras de Araújo em sessão de autórgrafos no 12ª Fest Aruanda.
Foto: AP

Descubro em algumas delas, para além das dimensões a que já me referi, ainda uma outra influência que talvez possa ser considerada a mais notável difundida no Brasil. Refiro-me a que deu origem, sob a baliza do dois manifestos “do Surrealismo Jurídico” e da “Ecologia dos Desejos”, ao movimento da Cinesofia, criado por Luís Alberto Warat.

Remeto aqui aos anais da 3ª Semana Nacional de Cinesofia, coordenada pelo grande pensador e que aconteceu na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, em novembro de 2000 (Cuiabá: Unirondon/Almed, 2000), para indicar a existência de um achado memorial dessa rica experiência pedagógica. Mas, pra esclarecê-la trago as palavras do próprio Warat, in La Cinesofia y Su Lado Oscuro. La infinita posibilidad surrealista de pensar com la cinesofia” (“Territórios Desconhecidos. A Procura Surrealista do Abandono do Sentido e da Reconstrução da Subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, vol. I, 2004):

Siempre pense que los sueños libertadores se expresan en un lenguage esencialmente poético. Esa es mi proximidad com el surrealismo. Eso me lleva a pensar em el sueño-poesía como antídoto para una sociedad finisecular que solo conserva el desencanto como valor. Bajo estas condiciones, la poesia reabre la posibilidad de una fuerza creadora, nos devuelve la capacidad mágica de ilusionarmos. La poesia funcionando, em situación de transferência, como disparador.

Lo que finalmente me quedo como saldo: Para la cinesofia, el cine es una experiência poética, ética, política y psicoanaliticamente orientada: uma poesia para descifrar. También es una cartografia de la subjetividad y de las relaciones intersubjetivas em la condición trasmoderna. La Idea de una metafísica constitutiva que enfrente, poéticamente, los abismos de la existência. La cartografia que busca outro niveles de subjetivación. La cartografia que busca a constitución del mundo y sus saberes com la misma disponibilidad que puede tener el analista com su paciente, tan diferente a la postura rígida para com el otro que presenta la academia iluminada (la falsa metafísica de los que sienten la necesidad de ser sábios). Una forma de tirarnos a uma pileta de aguas explosivas, para que nos ayude a viabilizar la construcción del futuro. La fuga hacia los lugares que no hacen sentido, para la composición del nuevo…” (págs. 561-562, assim mesmo, em “portunhol”, no original).

Reafirmo o sentido libertário em Warat porque ele é o autor que mais intensamente interpelou o novo pela imaginação e até pelo sonho e ofereceu condições para construir mediações acessíveis para o futuro. E porque, entre essas mediações, sugeriu estratégias dialógicas, entre elas o cinema, aptas, lembrei em um trabalho meu (“Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua”, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011), “a constituir um trabalho de reconstrução simbólica, imaginária e sensível, com o outro do conflito e de produção com o outro, das diferenças que permitam superar as divergências e formar identidades culturais” (pág. 60).

Conforme o próprio Warat nos legou, tal como ficou registrado em sua entrevista concedida a Marta Gama para o Observatório da Constituição e da Democracia (C & D), nº 8, outubro de 2006, UnB/FD, Brasília, págs. 12-13 (aliás, a última entrevista, antes de aposentar-se na UnB instalar-se na UFRJ, até o momento de regressar a Buenos Aires e logo falecer):

“A arte me mostra que é o melhor caminho para a inclusão social dos excluídos. A recuperação da autonomia, a descoberta de um sentido para a vida é sempre através da arte, porque não pode haver outro modo de fazê-lo que através da poesia. Evidentemente, uma nova concepção do Direito deve ser transdisciplinar, porém de uma transdisciplinariedade que seja mais que uma simples interseção, que habilidades oriundas de diferentes lugares de saber. Precisamos falar de um lugar ‘trans’ que agregue uma nova dimensão no espaço pedagógico: o espaço da sensibilidade e das artes. Assim, a arte nos abre uma infinidade de mundos e ajuda a encontrarmos nosso sentido de vida. Nosso lugar na vida como sentido. A arte nos ajuda a construir um caminho pessoal e único. Creio que a arte também tem um papel muito importante no processo de construção da emancipação individual e coletiva. Na verdade, penso que a única forma de fazermos uma revolução existencial é através da arte. A única forma de fazermos as revoluções moleculares no século XXI”.

Detive-me um pouco mais no esquadrinhamento do pensar waratiano porque, de alguma forma encontro a sua influência numa das mais fecundas abordagens atuais sobre as intersecções epistemológicas, pedagógicas e políticas que se desenvolvem, institucionalmente, no Brasil e que é assumida num dos trabalhos que integram o livro. Aliás, retiro desse texto, integralmente, uma nota de filiação, que transcrevo e que me confirma a localização dessa identidade. Transcrevo a nota:

 Possivelmente, a pesquisa mais detalhada realizada no Brasil sobre as diversas intersecções e possibilidades de abordagens investigativas entre Direito e Cinema seja a desenvolvida pelo ‘Grupo de Pesquisa em Direito e Cinema’, que atualmente integra o Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ – LADIH. Nesse sentido, ver: MAGALHÃES, J. N.; PIRES, N.; MENDES, G. et al (org.). Construindo memória: seminários direito e cinema. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009. E também: DE MATOS, Marcus V. A. B.. “Direito e cinema: os limites da técnica e da estética nas teorias jurídicas contemporâneas”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 231 a 267, jan./jun. 2012”.

Trata-se, salienta o autor, – Warat certamente é uma referência para a coordenação desse projeto, referindo-me a Juliana N. Magalhães – de percorrer o caminho no qual, a senda mais promissora continua a ser a que permite “falar da relação entre “cinema e direito” – num modo que – requer, de antemão, rever a “concepção tradicional, normativista de direito”, e abrir espaço para outras formas simbólicas de manifestação do Direito”.

Esse parece o modo que orienta, de fato, a melhor abordagem nesse tema e que, a meu ver, preside o enfoque qualificado e instigante que se apresenta neste livro DIREITO NO CINEMA BRASILEIRO.

Carmela Grüne, que inspira e organiza a obra, havia me pedido, eu disse no início, que não deixasse de considerar O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, distanciado do reconhecimento que as contribuições do livro pretendem oferecer, ela acentuou, para o “aumento do protagonismo e do empoderamento social”. Creio que sua expectativa se refere aos desafios e às tarefas atuais que se colocam para esse modo de conhecer e de realizar o Direito, tal como procurei acentuar em livro também recentemente lançado (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (coord.). O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015). Cuida-se, nessa obra que conta com um coletivo de pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação, de por em relevo, pensamento e ação de operadores que sabem exercitar a compreensão plena do ato de realizar o Direito, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. É aí que reside o protagonismo dos provedores de uma justiça poética, capazes de apreender o Direito a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”, como já se disse certa feita em homenagem a essa estirpe de juristas.

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil , Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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