Reflexões foucaultianas sobre o político (Parte 1)

Coluna Democracia e Política

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Fonte: Thierry Ehrmann/Flickr

Fonte: Thierry Ehrmann/Flickr

Análise do campo político

Na aula de 7 de janeiro de 1976 de “Em Defesa da Sociedade” (Martins Fontes, 1999) Michel Foucault  apresenta suas ideias metodológicas para a análise do campo político como “pistas de pesquisa, ideias, esquemas, pontilhados, instrumentos; façam com isso o que quiserem”, diz reiteradamente sobre seu método de trabalho (FOUCAULT, 1999, p. 4). Por uma série de razões, Foucault deteve-se não somente na análise da constituição de discursos mas também de aparelhos como o judicial e fez a crítica dos efeitos das teorias explicativas da sociedade e do homem no seu interior, como o marxismo e a psicanálise, que chama de teorias totalitárias. Este diagnóstico do pensamento como força totalitária pode ser aplicado a todos os campos que querem dar conta de maneira unívoca de um espaço e talvez por isso, a primeira aula de “Em defesa da sociedade” sirva bem para um posicionamento metodológico quanto às formas de abordagem da política.

Foucault identifica a “insurreição de saberes sujeitados” (FOUCAULT, 1999, p. 11) que servem para compreender a situação do saberes no entendimento da política na atualidade. Sabemos que a prática política é objeto da ciência política mas não é a toa que muitas disciplinas tem a tomado como objeto, notadamente a antropologia, através de seus instrumentos teóricos como a análise ritual, a análise das formas de sociabilidades, entre outras. Do ponto de vista do autor de Vigiar e Punir, tais saberes são inovadores em relação as interpretações tradicionais da ciência política  mas tem sido tratados como “saberes sujeitados” (idem), com sua importância explicativa diminuída em relação as demais formas de abordagem do político. Foucault dá como exemplo que da mesma forma que conteúdos históricos permitiram construir a moderna noção de hospício, a ciência política construiu a realidade do parlamento mas não pode ser considerada sua única abordagem válida. Sobre as razões deste procedimento, diz Foucault: “simplesmente porque apenas os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar. Portanto, “saberes sujeitados” são blocos de saberes históricos que estavam prestes e disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a critica pôde fazer reaparecer pelos meios, é claro, da erudição” (FOUCAULT, 1999,p.11).

Outro saber

Mas há um outro saber aqui a considerar que é não apenas o saber de ciências subalternas, mas também aquilo que o autor chama de “saber das pessoas”. Por exemplo, nesse sentido, a experiência da vereança, e com ela, o saber que a prática parlamentar fomenta, não é de modo algum, como sugere Foucault, o abuso do senso comum, mas algo mais elaborado, um “saber diferencial”(p.12). Este saber é básico para a crítica foucautiana e significa, em termos metodológicos, a valorização da representação da ação política para os atores envolvidos, sejam eles administradores, vereadores, chefias de seção enfim. Foucault sabe que querer juntar saberes técnicos com os das pessoas tem seu risco “Tratava-se do saber histórico das lutas. No domínio especializado da erudição tanto como no saber desqualificado das pessoas, jazia a memória dos combates, aquela, principalmente, que até então tinha sido mantida sob tutela” (FOUCAULT, 1999, p. 13).

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Eis um argumento original para tratar a vida politica: não apenas pela tramitação da elaboração legal, mas no fundo, buscando o testemunho dos atores na reconstrução das lutas sociais é que encontraremos a verdade da politica. Mas Foucault alerta que tal procedimento tem um preço: revogar a tirania dos discursos englobadores com sua hierarquia e privilégios. Esse discurso englobador pode ser visto quando observamos a justificativa dada pelo Prefeito Nelson Marchezan Jr para a extinção dos cobradores de ônibus: em nome do discurso econômico, de fazer mais economia, propõe o fim de uma categoria histórica do transporte coletivo da capital. Mas isto não é fazer politica de transporte, é ceder ao argumento dissuasório da ciência econômica que diz que menores gastos implicam em menores custos. Nada mais enganoso: somente quem acredita em papai noel é capaz de acreditar que com as demissões o preço da passagem de ônibus irá baixar. É claro que não: o interesse é justamente reduzir os custos e ampliar os lucros, o ciclo da mercadoria e do valor!

Tomando-se o caso do parlamento, que conheço melhor, pode-se entende-lo como o lugar de um discurso cientifico organizado – o da ciência política – de que Foucault ressente-se. São atores, acordos, ideologias, etc, sempre em conflito. Aliás, fazer genealogia do parlamento seria, ao menos em tese, permitir a emergência de outros discursos. Boa parte da originalidade de Foucault está na centralidade que dá a questão “O que é o poder” , pois para além de uma definição institucional e política, ele lhe dá uma definição arqueo-genealógica que passa por apontar “o que está em jogo é determinar quais são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, esses diferentes dispositivos de poder que se exercem, em níveis diferentes da sociedade, em campos e com extensões variadas” (FOUCAULT, 1999, p. 19).

Economia e poder

Mas há um problema ainda aí. Se nos termos de Foucault, a pergunta agora para o parlamento seria sobre a forma em que se efetuam em seu interior, entre os diferentes atores, relações de poder que tem como um de seus efeitos, determinar a natureza da produção legislativa, não seria aí o momento de se colocar a questão da economia política que busca o autor?  Porque Foucault identifica certo “economismo” na teoria do poder, que permeia a concepção jurídica e liberal de poder político desde o século XVIII. Vale a pena retomar suas definições:

“No caso da teoria jurídica clássica do poder, o poder é considerado um direito do qual se seria possuidor como de um bem, e que se poderia, em consequência, transferir ou alienar, de uma forma total ou parcial, mediante um ato jurídico ou um ato fundador de direito – pouco importa, por ora – que seria da ordem da cessão ou do contrato. O poder é aquele, concreto, que todo individuo detém e que viria a ceder, total ou parcialmente, para constituir um poder, uma soberania política (…) Mas vocês tem nessa concepção marxista algo diferente, que se poderia chamar de “funcionalidade econômica” do poder. “Funcionalidade econômica, na media em que o papel essencial do poder seria manter relações e produção e, ao mesmo tempo, reconduzir uma dominação de classe que o desenvolvimento e as modalidades próprias da apropriação das forças produtivas tornaram possível”..(FOUCAULT, 1999, p.19-20).

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Tais concepções são úteis para localizar as origens do poder político local. A ideia de troca contratual é constantemente reiterada pelos vereadores em seus discursos, afinal, são representantes do povo eleitos e com, portanto, representação. A ideia de que um bem que foi repassado aos políticos locais faz parte desse imaginário de legitimação que fundamenta a ação parlamentar. Mas sua definição materialista de que poder é economia já que também é troca e circulação de determinados bens. Tal concepção sobrevive nas mais diversas praticas, entre elas, a dos favores pessoais em troca de votos. A recusa de Foucault é a aplicação de uma lógica econômica ao funcionamento do poder. Ele não rejeita a relação intima da política com a economia, mas acredita que em algum lugar há uma distinção”poder não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas que ele se exerce e só existe em ato(…)em si mesmo, primariamente, é uma relação de força”(p.21). Isto transforma em parte a abordagem do trabalho legislativo, já que a partir de agora, o espaço do plenário passa a ser o lugar de confronto entre forças políticas distintas. Foucault recusa a idéia de que o poder existe para reprimir, porque prefere a idéia que diz que o poder existe para guerrear “o poder é a guerra, é a guerra continuada por outros meios”(p.22).

Confronto psicológico

Impor a lógica da guerra como dinâmica do poder é útil para nossa abordagem do parlamento. Não se trata do confronto físico, mas psicológico; não se trata de fazer vitimas reais, mas de projetos. Ela dá foco a duas abordagens distintas, por um lado, o plenário e as comissões como espaços de guerra, o segundo, entre os próprios atores nesse processo. Foucault diz que as relações de poder tem em sua base relações de guerra. São relações de força que determinam a política. A vida no plenário seria, nessa concepção, um espaço de “guerra silenciosa” (p.23) integrada na instituição legislativa e assumida, como Foucault aponta, nos próprios corpos dos vereadores. Daí os embates de plenário, a fleuma que não cessa de jorrar, os ímpetos levantados e até o confronto físico. Esse processo, como Foucault descreve, teria acentuações, reviravoltas, fragmentações, tudo enfim página de uma mesma guerra cuja decisão final – e esta é a terceira característica para Foucault, estaria no voto como decisão final advinda de uma guerra, prova de que a força politica se submete ao consenso, a maioria que perde  para  a minoria que vence pelos argumentos, que a arma para resolver os conflitos é a submissão as decisões coletivas.

Que a visão econômica e a visão baseada nas forças e na guerra sejam vinculadas, esse espaço foi deixado por Foucault. Dois esquemas de interpretação são propostos por Foucault, o esquema jurídico, baseado no binômio contrato-opressão e o esquema  dominação repressão, baseada na oposição luta e submissão. E é na defesa desta política como arte da guerra que Foucault tem a maior contribuição para a análise do funcionamento da vida parlamentar. Ela carrega valor a expressões cotidianas da política como “tática”, “estratégia”, “relação de força”.

*Este artigo será publicado em partes, semanalmente, no site do Jornal Estado de Direito

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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