O significado da violência do governo estadual

Coluna Democracia e Política

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Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Instrumento da repressão

Criadas na Irlanda na década de 70 pelo exército britânico para serem atiradas no chão e assim rebaterem nas pernas de manifestantes ou agitadores, as balas de borracha são constituídas por uma esfera de borracha ou de metal coberta por borracha que produz ferimentos graves. Por isso devem ser disparadas em direção aos pés e nunca em direção as vítimas, como as que atingiram os servidores  públicos do estado do Rio Grande do Sul em protesto no segundo dia de votações do pacotaço de José Ivo Sartori na Assembleia Legislativa do Estado porque em alguns casos pode ser fatal, razão pela qual a denominação non–lethal ammunition (munição não letal) é equivalente a less lethal ammunition (munição menos letal, mas ainda assim, letal).

Justificativa ideológica

A justificativa para o uso das balas de borracha tem-se revelado extremamente ideológica pelo Estado. Os comandantes das operações tem-se referido às vítimas como “danos colaterais” (a expressão é militar) da necessidade de manutenção da ordem. Com a justificativa de que “não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos”, o Estado reconhece que tais casos são efeitos não pretendidos ou “imprevistos” das ações de repressão. Mas o aspecto ideológico do problema é justamente que é o Estado que define tais efeitos como “colaterais” quando não o são. Com a definição, o Estado quer dizer duas coisas: ou a possibilidade de vítimas inocentes não foi levada em consideração quando as tropas foram postas em ação ou, o que é pior, que a possibilidade de feridos graves foi considerada “um risco válido” para a ação. A observação, de Zygmund Bauman, contida na obra “Danos Colaterais” (Zahar, 2013), se aplica como uma luva aos tempos que passam porque revela a visão do Estado “essa visão é muito mais fácil porque as pessoas que se decidiram pela validade de assumir o risco não são as mesmas que sofreriam suas conseqüências”(p.11).

Assim, a justificativa do Estado para o uso de balas de borracha encobre sua disposição de colocar em risco outras vidas, poder de decidir dado somente ao Estado e que significa seu reconhecimento de uma desigualdade de direitos e oportunidades entre os manifestantes na Praça da Matriz. Não há justificativa técnica possível – não intencionalidade, etc, etc – quando o Estado aponta sua arma diretamente para a cabeça de servidores públicos que estavam lutando por suas instituições e por seus empregos porque a munição pode ser sim fatal se atingir determinados pontos da nuca, ou, se for disparada a uma distância menor do que vinte metros, pode até afundar o crânio. O que não é dito é que o Estado decidiu submeter ao mesmo risco manifestantes pacíficos e “desordeiros”, pois balas de borracha não fazem distinção das intenções de suas vítimas.

O Estado diz que apenas os violentos estão em perigo mas a verdade é que todos da massa pacífica na Praça da Matriz está em risco. Agora, estar na massa pacífica é perigoso e ser vítima colateral na luta social, outra dimensão da desigualdade social. Ao aceitar vítimas colaterais, ao considerar tais “baixas” (outro  termo militar) como não importantes o suficiente para abandonar o seu uso, José Ivo Sartori reconhece que elas são dignas de serem incluídas na preparação da ação: de agora em diante, o Estado reconhece o direito de submeter a população civil a mesma regra que adota nas operações contra traficantes de drogas em células criminosas. Ao deixarem os espaços do crime para serem adotadas nas ruas, as balas de borracha no corpo dos servidores públicos passam a ser nosso sinal de batismo na era da Criminalização do Social. Por esta razão, a todo instante, a revolta dos policiais civis com os colegas de farda que empenhando armas, a Brigada Militar, dirigiam-se contra os servidores. Muitos saíram feridos. Outros ajoelharam-se na Praça da Matriz e levaram gás de pimenta nos olhos. A Praça da Matriz transformou-se em cenário de guerra.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Baderneiros

Quando os conflitos começaram, fiz questão de ir até a Praça da Matriz para ver o movimento dos servidores públicos.  Vi ali dezenas de professores e o caminhão do CPERGS. Para o Estado, aqueles professores eram baderneiros. Como? A unica forma de imaginá-los baderneiros é imagina-los invadindo não o Palácio Piratini, mas as….livrarias! Ali estão as principiais livrarias da cidade e não é a toa que é chamada também de “Rua do Livro”. Claro que sou contra a violência etc, etc, e esta fantasia irônica permite imaginar o contransenso de pensa-los como baderneiros: aqueles professores, se baderneiros, atacariam as livrarias. Isso era óbvio. Nada de loja de celulares, de televisores, de roupa adolescente como se viu nas invasões durante o movimento de 2013. Livros.

Entende porque não faz sentido a imagem de baderneiros que o governo quer colocar sobre os servidores públicos?A ligação com os livros de dá, na verdade, de outra forma. A maioria que está ali, não apenas os professores, mas também os técnicos da FZB e tantos outros é que são servidores que gostam de estudar, pesquisadores que terminaram suas vidas nas instituições como a FEE atrás deles, dos livros. Para cada um deles, o parcelamento de salário não impede apenas a vida cotidiana, impede o investimento que faziam em sua qualificação, em seu aprimoramento.  Você sabe, os livros andam cada vez mais caros, principalmente os importados e há inúmeras obras fundamentais que não são traduzidas. Esses profissionais que fizeram a ocupaçaõ da Praça da Matriz, nossa  revolução como foi das ruas de Maio de 68, tomou a Praça e vai entrar para o rol dos grandes temas da história contemporânea da cidade.  Não vi ao longo de todas as manifestações nenhum cartaz com os dizeres “Quero livros” ou “Baixem os preços dos livros já”, etc, aquelas pessoas queriam apenas garantias quanto a sua existência, algo básico que foi desrespeitado. Esses profissionais estavam sendo tratados com balas de borracha, e isso é revoltante.

Intolerância e violência

É claro que há inúmeras questões envolvidas no processo de conflito dos servidores com seu estado, mas não se admite tratar com desrespeito a vida de qualquer representante presente nas manifestações. A posição contrária a manifestação dos servidores é apenas uma faceta da tendência do mainstream direitista do governo José Ivo Sartori que defende junto aos meios de comunicação ser um governo democrático enquanto pratica uma política anti-servidor público, autoritária e violenta. Basta ver a semelhança do discurso do governador com o discurso amplamente divulgado na internet da presidente Ângela Merkel defendendo o fracasso do multiculturalismo “Dizer simplesmente que podemos viver felizes lado a lado simplesmente acabou”: para Sartori, é a mesma coisa, tanto no que se refere a manutenção das instituições culturais do estado, como da relação pacifica com os servidores; diante das balas e do esmagamento político feito por Sartori sobre os servidores na Assembleia, isto também “acabou”, disposição notável por mostrar a face da guinada à direita. Acreditar que a iniciativa privada irá ocupar com qualidade a produção dos serviços oferecidos por instituições como a FEPPS é uma fantasia de direita tanto quanto acreditar, como Merkel fazia, que a Alemanha será dominada pelos imigrantes. Por isso a reação da comunidade cientifica, que fez manifestos, e das instituições, que mostraram o seu valor, precisava ser ouvida. Essa intolerância do governador a justificativa de seus servidores e profissionais é a faceta gaúcha das diversas formas de intolerância que se espalham pelo país.

Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

A razão é que não é possível aceitar tamanha intolerância contra instituições, serviços e pessoas  que o governador mal conhece. Sofrimento por sofrimento, os servidores das diversas fundações sofrem tanto quanto os médicos cubanos que vieram para Brasil, os pobres que nas periferias são discriminados pelo uso da violência, etc, etc. Quer dizer, enquanto que a intolerância faz seu caminho transformando a cultura local de tolerantes em intolerantes, o caminho à intolerância feito pelo governador José Ivo Sartori é bem mais circunscrito politicamente a atores sociais e instituições: o governador não tolera que seus servidores contrariem seu projeto, não tolera manifestações democráticas de desagravo em frente  ao Palácio Piratini ou a Assembleia Legislativa. Mas é preciso lembrar que nossas instituições políticas tem limites, não toleramos desrespeitar a história de instituições culturais e servidores públicos com anos de serviço prestado a comunidade, é aí que termina  o direito à privacidade de nossos políticos e do governador – por isso a cena em que o governador José Ivo Sartori foi hostilizado em um restaurante da capital.  Diz o filosofo esloveno Slavoj Zizek “democracia significa que você não pode dizer (e fazer) certas coisas impunemente”. O problema é que coisas que eram inaceitáveis há cerca de dez, quinze anos atrás pelos governantes agora são hoje aceitas sem discussão, como extinguir grandes instituições. Quer dizer, a agenda da extrema direita neoliberal tornou-se realidade emergindo no projeto de reforma de estado de José Ivo Sartori: não é surpreendente o que fizeram em apenas um dia, com a extinção de uma dezena de instituições? Não é surpreendente a violência assumida pelo estado, que ordenou a violência contra os servidores? Não é surpreendente que, em plena democracia, a casa do povo tenha fechado suas portas a população?

Para Zizek, não nos damos conta do truque que o Estado faz de assumir-se como democrático com uma prática de direita, autoritária, quer dizer, em nome de nossas idéias, o Estado assume direito de controlar a situação dos manifestantes e por isso, exercer a violência. As ações contra os servidores públicos representam um recuo da política democrática no RS. Obcecado pela ideia de não parecer reacionário, autoritário, o governo usa dos instrumentos democráticos legais e ilegais para exercer o projeto autoritário da extinção das fundações: autoritário porque não permitiu ouvir seus servidores e a comunidade, que foi raptada do debate de conteúdos, retirada do espaço de discussão de alternativas. A extinção das fundações não se trata, portanto de um golpe na organização administrativa do estado: se trata de um golpe na democracia gaúcha, porque foi retirado dos cidadãos o direito de se manifestarem.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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