Posições jurídicas subjetivas titularizadas por animais não humanos (Parte II)

mão humana e pata de cachorro

Direitos dos animais não humanos

Com a sedimentação de bases filosóficas e axiológicas a dar sustentação a diversas teorias jurídicas sobre a titularidade de direitos (rectius, poderes) por animais não humanos, começaram a surgir, no Direito comparado, diversas previsões legislativas mais ou menos expressivas a apontar o novo status jurídico dos referidos seres vivos.

Com efeito, um dos mais significativos e conhecidos comandos de Direito positivo nesse sentido é aquele atualmente constante do § 90a do Código Civil Alemão (BGB), introduzido por reforma legislativa em 1990, e que prescreve:

Animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. A eles se aplicam as normas vigentes para as coisas, no que couber, salvo disposição em contrário.

Percebe-se que o fundamento subjacente a esse parágrafo está no reconhecimento aos animas de uma parcela de dignidade (= impossibilidade de total instrumentalização pelo homem) com base no valor da vida (não apenas humana, mas animal em geral).

patas e mãos

Tal dispositivo, que já foi taxado por alguns como meramente enunciativo, como pouco mais do que um recurso de retórica, é, na realidade, de extrema importância. Em primeiro lugar, por força da influência que o Direito alemão sempre exerceu e continua a exercer sobre outros sistemas jurídicos (dentre eles o brasileiro).

Em segundo lugar, pelo fato de que o referido comando se mostra coerente, harmônico, com o atual estágio da percepção social geral no tema e com os valores sociais (o que, vale lembrar, é sempre desejável ante o caráter tridimensional do direito). Um passo firme na evolução do pensamento representa muito mais do que tentativas de se forçar mudanças jurídicas radicais baseadas em posições extremistas descoladas da vontade social democraticamente apurada.

 

Código Civil Austríaco é o pioneiro

Mas o BGB não foi o pioneiro nesse processo de requalificação juscivilística dos animais não humanos. A primazia pertence ao Código Civil austríaco, que em 1988 assistiu à introdução do §285a, com redação semelhante à do já transcrito § 90a do Código Civil alemão. A partir desses dois diplomas-chave, as previsões se espalharam pelo Direito Privado comparado, devendo ser citados o art. 641a do Código Civil suíço, o art. 2.2 da Lei de Proteção Animal da Catalunha (que prescreve que “os animais são seres vivos dotados de sensibilidade física e psíquica”), o art. 287 do Código Civil da Moldávia, o art. 1º da Lei de Proteção Animal da Polônia, de 1997, e o § 494 do Código Civil da República Tcheca.

Merecem especial destaque as inovações mais recentes havidas no Direito francês e no Direito neozelandês, ambas em 2015. Na França, o Code Civil foi alterado pela Lei n. 2015-177, de 16 de fevereiro de 2015, recebendo o novo artigo 515-14, que assim dispõe:

“Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade. Sob a reserva das leis que os protegem, os animais estão submetidos ao regime dos bens.”

Chimpanzé e tigre

Na Nova Zelândia, o “Animal Welfare Amendment Bill”, de 09 de maio de 2015, seguiu a mesma linha, de reconhecimento dos animais não humanos como seres sencientes (seres capazes de ter sentimentos), veiculando minudente proteção jurídica e chegando ao ponto de proibir a utilização de animais na pesquisa e teste de cosméticos.

 

Congresso Nacional

No Brasil, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado n. 351/2015, que tem por escopo alterar o art. 83 do Código Civil, a fim de determinar que os animais não serão considerados coisas, mas serão tidos como bens móveis para os efeitos legais, ressalvado o disposto em legislação especial.

cachorro com martelo de juizEntendo que, se realmente prosperar referida alteração legislativa, a despeito do ganhosimbólico, com a elevação do Direito brasileiro ao patamar já alcançado por outros países, perde-se a chance de avançar mais na matéria, e com maior precisão técnica – resta claro que a proposta desconhece a distinção operativa entre os conceitos de “coisa” (bem corpóreo) e de “bem” (objeto de relação jurídica), sendo que o que verdadeiramente importaria no tema seria a retirada dos animais (ainda que parcial) da abrangência de ambos os conceitos.

Por outro lado, se passarmos ao exame do Direito Constitucional dos países acima mencionados, bem como de outros países, encontraremos, igualmente, diversas previsões voltadas à proteção dos animais não humanos sob uma perspectiva que visa a ultrapassar sua qualificação como meras coisas (ainda que, na maioria dos casos, tais previsões ainda estejam apoiadas em alicerces antropocêntricos, vale dizer, pugnam pela proteção diferenciada aos animais a partir do que estes representam para os seres humanos, e não em função do atendimento a interesses dos próprios animais, em si mesmos considerados).

 

Marcel Edvar SimõesMarcel Edvar Simões é Articulista do Estado de Direito – Procurador Federal, Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA em São Paulo. Bacharel e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil na Universidade Paulista – UNIP. Membro do IDP, do IBDCivil e da ADFAS.

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