Coluna Lido para Você
ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007, 288 p.
VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL, de Fábio de Sá e Silva. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016, p. 24-53.
Quando fui convidado pelo autor a elaborar o prefácio do livro, ainda denominado antes de sua publicação ENSINO JURÍDICO – Alternativas Pedagógicas para a Construção de Saberes Democráticos, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva, deparei-me como uma dificuldade inicial raras vezes encontrada neste meu ofício, em uma centena de prefácios, posfácios, introduções e apresentações já produzidos ao longo de quarenta anos, muitos deles para o prestigioso selo de Sergio Antonio Fabris Editor, responsável pela edição deste trabalho. Refiro-me à dificuldade de encontrar um fio condutor para situar a obra, sob a alta complexidade e sofisticação de sua elaboração que combina compromissos subjetivos do autor configurados em sua biografia e uma abrangência temática que o título não revela à primeira vista.
Conheci Fábio Sá e Silva ainda estudante, no Largo de São Francisco, dirigente do Centro Acadêmico XI de Agosto, na vetusta Faculdade de Direito da USP. Em atividade do programa cultural anual organizado pelo XI, participei de evento na Sala dos Estudantes, quando os universitários se mobilizavam e desafiavam a direção da Escola para assumir os desafios da reforma do ensino jurídico desencadeada num movimento altamente consensual que resultou nas diretrizes inscritas na Portaria MEC nº. 1886/94.
O foco destas diretrizes refletia uma visão de crise do Direito e procurava iluminar reflexões sobre suas determinações. Em perspectiva epistemológica esta reflexão articulou elementos: 1) de representação social relativa aos problemas identificados, 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção, 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e o imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. Ao fim e ao cabo, condições para superar a distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro através das quais pudessem transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico. Tratava-se, como se vê, de empreender um trabalho crítico e consciente, apto a afastar o jurista das determinações das ideologias, quebrar a aparente unidade ou homogeneidade da visão de mundo constitutiva de um pensamento jurídico hegemônico produzido por essas ideologias e romper, em suma, com a estrutura do modo abstrato de pensar o direito, inapto para captar a complexidade e as mutações das realidades sociais e políticas.
Este trabalho representou, pode dizer-se, uma espécie de superação do mal-estar de uma cultura jurídica convertida em caleidoscópio de ilusões e de crenças responsáveis pelo estiolamento de modelos e paradigmas de racionalidades fundantes de certeza e segurança, adquiridas ao preço do imobilismo científico e da eliminação do espírito crítico na formação intelectual do jurista e do profissional do Direito. Propunha-se, então, articular o ensino jurídico com a exigência científica de identificação de parâmetros para a legitimidade epistemológica de conceitos permanentemente reelaboráveis e de ampliação crítica para a apreensão de categorias aptas a organizar uma prática de ensino na qual a disponibilidade de artefatos científicos operacionais e de hipóteses relevantes de conhecimento não viessem a funcionar como substitutivos de visões globais acerca dos fenômenos estudados, ao risco de condicionar todo o procedimento, a produção de seus resultados e a própria transmissão dos conhecimentos desse modo gerados.
O Direito ensinado “errado”
Lembrei por isso, em estudo anterior (Movimentos Sociais e Práticas Instituintes de Direito: Perspectivas para a Pesquisa Sócio-Jurídica no Brasil in OAB Ensino Jurídico – 170 Anos de Cursos Jurídicos no Brasil. Brasília: Comissão de Ensino Jurídico e Conselho Federal da OAB, 1997), a advertência de Roberto Lyra Filho quando este identificava “o Direito que se ensina errado”. Segundo ele, essa acepção “pode entender-se, é claro, em pelo menos dois sentidos: como o ensino do direito em forma errada e como errada concepção do direito que se ensina”. Se o primeiro aspecto “se refere a um vício de metodologia; o segundo à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar”, ambos permanecem vinculados, “uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distinção, os defeitos da pedagogia” (O Direito que se Ensina Errado. Brasília: Editora Obreira, 1980).. Por isso recomendava o mesmo Roberto Lyra Filho a necessidade, tanto no ensino quanto na pesquisa, de se estar atento a que eles visam a uma definição de posicionamento: “o simples recorte do objeto de estudo pressupõe, queira ou não o cientista (o professor ou o estudante), um tipo de ontologia furtiva. Assim é que, por exemplo, quem parte com a persuasão de que o Direito é um sistema de normas estatais, destinadas a garantir a paz social ou a reforçar o interesse e a conveniência da classe dominante, nunca vai reconhecer, no trabalho de campo, um Direito praeter, supra ou contra legem e muito menos descobrir um verdadeiro e próprio Direito dos espoliados e oprimidos. Isto porque, de plano, já deu por ‘não-jurídico’ o que Ehrlich e outros, após ele, denominaram o ‘direito social’” (Pesquisa em que Direito? Brasília: Edições Nair Ltda, 1984). Este mesmo autor pôde, assim, falar em “Direito Achado na Rua”, apreendendo-o “não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento”, onde o Direito se constitui como enunciação dos princípios de uma “legítima organização social da liberdade” (O Que é Direito. Coleção “Primeiros Passos”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1ª edição, 1982).
Nestas condições, o conhecimento do Direito opera exatamente na consciência das interações que toda atividade intelectual e prática constitui historicamente, articulando condições sociais e teóricas (SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1ª edição, 1994). O mundo jurídico não pode, com efeito, ser propriamente conhecido, senão, diz Michel Miaille, “em relação a tudo o que permitiu a sua existência e o seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do Direito do seu isolamento, projeta-o no mundo real onde encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social” (Uma Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Livros de Direito Moraes Editores, 1a edição, 1979).
Nos seus antecedentes e nos seus pressupostos, os caminhos percorridos visando à reforma do ensino do Direito no Brasil tiveram como leito as condições sociais e as condições teóricas que sustentam ainda agora o debate acerca da função, do sentido e dos modos de produção do próprio conhecimento, no contexto das múltiplas transições que determinaram e determinam ainda o seu valor para as práticas sociais. Enquanto reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada nessas práticas sociais, este debate remonta à consideração, mesmo quando se cuide de designar o que é aí propriamente jurídico, destacada por Boaventura de Sousa Santos, de que “nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas” (Um Discurso sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987).
Tratava-se, pois, de abrir uma perspectiva de futuro acerca da função do Direito e do papel do jurista na sociedade, buscando condições para ultrapassar a fase de estagnação burocratizante e medíocre a que chegara o ensino do Direito. Para Álvaro Melo Filho, estas eram as condições para: “a) romper com o positivismo normativista; b) superar a concepção que só é profissional do Direito aquele que exerce atividade forense; c) negar a auto-suficiência disciplinar do Direito; d) superar a concepção de educação como sala de aula; e) formar um profissional com perfil interdisciplinar, teórico, crítico, dogmático e prático”(Inovações no Ensino Jurídico e no Exame de Ordem. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1996). E era também nesta direção que se encontrava a mobilização do jovem líder estudantil, orientado para a superação, no discurso e na ação, da situação de crise que imobilizava a organização da formação jurídica em nosso país; o que também vai forjar o pesquisador comprometido que pode se apresentar, assim, na sua experiência de amadurecida no processo de pós-graduação a se refletir no seu trabalho final, consubstanciado neste livro.
A formação do jurista
Mas há ainda um outro traço desta trajetória que vai do jovem estudante ao profissional traduzido nestas páginas e que deve ser exibido. Refiro-me à sua interpelação dirigida ao processo de formação do jurista, reivindicando, desde o momento de iniciação na Faculdade de Direito, um engajamento que refletisse a exigência de articulação, nesta formação, de uma prática-teórica que lhe fosse determinante e que tivesse na extensão universitária o seu chão estruturante. Fábio Sá e Silva incorporou em sua trajetória o que bem recebeu em sua ação política universitária, vale dizer, o influxo da mobilização dos estudantes para imprimir à sua formação a dimensão de realidade que, num primeiro momento motivada pela capacidade de intervenção dos antigos escritórios modelos de advocacia, logo se qualificou com a condição política do processo de assessoria jurídica universitária vivenciado pelos serviços de assessoria jurídica (SAJUs) que as organizações estudantis procuravam imprimir ao modelo de prática reivindicado curricularmente (SANTOS, Boaventura de Sousa. Da Idéia de Universidade à Universidade de Idéias in Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1994).
Nas Faculdades de Direito, esse processo surgiu dentro do movimento que procurava integrar a extensão comunitária com a reivindicação de responsabilidade social para as universidades, com nuances e intencionalidades diversas, mas em cujo âmbito pode se aferir, lembra Boaventura de Sousa Santos, “outras formas de conhecimento surgidas da prática de pensar e de agir de inúmeros segmentos da sociedade ao longo de gerações”, entre elas, de salientar, tomando como exemplo a Universidade de Brasília, “o projeto do Direito Achado na Rua, que visa recolher e valorizar todos os direitos comunitários, locais, populares, e mobilizá-los em favor das lutas das classes populares, confrontadas, tanto no meio rural como no meio urbano, com um direito oficial hostil ou ineficaz” (op. cit.).
A referência provinda de Boaventura de Sousa Santos a um projeto que dirijo e que tem por objetivo a capacitação de assessorias jurídicas de movimentos populares não é trazida aqui com o propósito de abrir relevo para uma articulação que me envolve pessoal e diretamente mas, antes, porque ela permite refletir sobre uma ação que procura exatamente conjugar a dupla face da prática jurídica na sua dimensão de orientação política para o exercício profissional e de formação acadêmica preparatória para esse exercício. Com efeito, as assessorias jurídicas dos movimentos sociais surgiram no Brasil a partir dos anos 1960, em parte como decorrência dos limites contidos num sistema político autoritário e, em parte, como reação a uma formação jurídica centrada num positivismo estiolante, que impedia a percepção do direito como estratégia de superação de uma realidade injusta e de exclusão social, fazendo do formalismo legal um obstáculo à emergência de novos direitos. Em todo caso, elas foram ajustando o seu perfil de atuação para concretizar objetivos emancipatórios e de realização de Direitos Humanos mediante, salientam Adriana Andrade Miranda e Luciana Silva Garcia, “a co-relação entre educação, auto-organização, mobilização social e ocupação dos espaços para criação e implementação de políticas públicas”(Assessoria Jurídica em Tempos de AIDS in MENDES, Soraia da Rosa (org). Aids e Direitos Fundamentais. Estratégias Jurídicas de Efetivação dos Direitos Fundamentais das Pessoas que (con)vivem com HIV, Porto Alegre: GAPA/RS, 2005).
Em estudo mais analítico, mais precisamente em sua dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Direito da UnB, Adriana Andrade Miranda convoca a um repensar o direito num trânsito entre o que foi, em conjuntura de autoritarismo, a sua negação, e a conjuntura atual, de lutas por reconhecimentos, que levam à afirmação da cidadania (Movimentos Sociais, Aids e Cidadania: o direito à saúde no Brasil a partir das lutas sociais. Brasília, 2007). Como tarefa que especializou a atuação das assessorias jurídicas populares, a autora põe em relevo a prática de ações educativas por elas desenvolvidas, tomando como exemplo a assessoria jurídica do GAPA/BA, forte no enfrentamento a obstáculos que tornam difícil a concretização de expectativas de aquisição de direitos e de afirmação da cidadania. Em seu trabalho, a autora apresenta uma caracterização destas ações no seu duplo sentido: o de “afirmar a cidadania dessas pessoas e encorajá-las na reivindicação da efetivação e garantia de seus direitos e torná-las capazes de identificar e reagir de forma pró-ativa diante de uma situação de violação de direitos”; e o de agir junto a “profissionais do direito, com o intuito de prevenir situações de violações de direito”.
As esferas da assessoria jurídica popular
O que considero importante a partir da contribuição da autora é identificar, como ela o faz, o elemento pedagógico do trabalho de assessoria jurídica popular, que se centra na atribuição de “intermediar o diálogo entre diferentes atores: a academia, os operadores do direito, os ativistas da própria luta”. É nesta dimensão pedagógica que se inscreve o desafio de adensar “os elementos da construção social do direito” e as suas “formas de reconhecimento e efetivação”. Trata-se, então, de arrostar uma tarefa que não se realiza isoladamente nem de modo subordinado, pois como lembra Marx na 3º tese contra Feuerbach, já não está em causa transformar os homens a partir de outras circunstâncias e de uma educação nova, mas compreender que “são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador tem necessidade de ser educado”, nas condições de uma prática social emancipatória. Assim é que novos projetos de intervenção, numa contínua re-conceituação da assessoria jurídica na perspectiva “do uso emancipatório do Direito” são elaborados, deles transparecendo a percepção de que “a emancipação das pessoas envolvidas no trabalho (de assessoria jurídica), promovendo o acesso à informação e reflexão sobre o Direito”, leva a que as comunidades “possam, se assim quiserem, desenvolver ações políticas e jurídicas necessárias à satisfação dos anseios por um novo direito”( ROCHA, José Cláudio. Projeto de Assessoria Jurídica Popular às Organizações e Movimentos Populares na Bahia – AATR – 2004 a 2007 in Revista da AATR – Associação de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, ano III, nº 3 – dezembro de 2005).
Por tudo isso, como lembra Eduardo Guimarães de Carvalho (Cidadania em Horário Integral in Ciência Hoje, vol. 12, nº 71, março de 1991), as assessorias jurídicas dos movimentos sociais tiveram muita importância na construção de uma prática que sustentou a crítica ao autoritarismo, devendo ser consideradas sobretudo porque atuaram, em primeiro lugar, na esfera da defesa dos direitos civis e políticos – envolvendo-se, então, com a arbitrariedade das prisões políticas e dos inquéritos militares; em segundo lugar, porque estenderam sua atuação para o campo dos direitos sociais e econômicos – abrindo, assim, o ensejo para a difusão de um direito verdadeiramente insurgente (PRESSBURGER, Miguel. Direito Insurgente. Rio de Janeiro: Instituto de Apoio Jurídico Popular, IAJUP, 1988). O mesmo autor, na linha traçada por outros estudiosos (LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito, Justiça e Utopia. Rio de Janeiro: IAJUP, 1988; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e Realidade Social: apontamentos para uma tipologia dos serviços legais. Rio de Janeiro, IAJUP – Coleção Seminários, v. 15,1991; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Acesso à Justiça e Formas Alternativas de Resolução de Conflitos em São Bernardo do Campo in Revista Forense, vol. 315, 1991; ALFONSIN, Jacques Távora. Assessoria Jurídica Popular. Breves Apontamentos sobre sua Necessidade, Limites e Perspectivas in Revista do SAJU – Para uma Visão Crítica e Interdisciplinar do Direito, vol. 1. Porto Alegre: UFRGS, Faculdade de Direito, dez-1998), sem embargo das contradições que identifica, acaba propondo algumas características que designam a sua atuação: criatividade, advento de novas relações entre advogados e clientes, descrença no Judiciário, respeito às práticas populares, conscientização, participação e crítica às práticas paternalistas (Cf. também OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. Serviço de Apoio Jurídico – SAJU: A Práxis de um Direito Crítico, Monografia Final de Curso, Faculdade de Direito da UFBA, Salvador, 2003).
Não cabe aqui o exame em pormenor desse modelo de atuação profissional senão para indicar que, na mesma conjuntura e num contexto de crítica teórica à formação jurídica (LYRA FILHO, Roberto. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1980; O Direito que se ensina errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980; O que é Direito. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982), o próprio movimento estudantil de Direito, inspirado no processo de assessoria jurídica popular, abriu em seus encontros nacionais de estudantes de Direito um espaço problematizador das práticas jurídicas estudantis, criando um fórum (ENAJU) para “colocar a questão da participação do estudante, futuro profissional do Direito, em trabalhos comunitários de assessoria no sentido da realização da práxis social dos novos juristas”( Relatório do Núcleo de Assessoria Jurídica em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília, Decanato de Extensão – Cadernos de Extensão, 2º semestre de 1993).
O Relatório supra, resultado de um projeto de extensão desenvolvido por estudantes de Direito da UnB, registra o acompanhamento que deram a uma comunidade de moradores de área não regulamentada do Distrito Federal para assegurar o seu direito de morar e o modo pelo qual, nessa experiência, institucionalizaram como trabalho de parceria que envolveu a Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, um núcleo de prática jurídica e escritório de direitos humanos e cidadania, antecipando um modelo que somente depois, no final de 1994, seria universalizado em diretrizes curriculares para os cursos de Direito com a já aludida Portaria 1.886.
Núcleos de Prática Jurídica
Por mais desiguais que sejam as formas de implementação dos Núcleos de Prática Jurídica nas Faculdades de Direito, a expansão dos cursos, atualmente superando a casa de 1.000, acabou proporcionando um número significativo de experiências exemplares que vêm balizando uma nova cultura de responsabilidade social nas Faculdades de Direito. O próprio MEC deu-se conta do potencial emancipatório latente na prática jurídica das Instituições de Ensino Superior e tratou de organizar um seminário em Brasília para mapear e conhecer as experiências existentes, identificar formas de atuação, as possibilidades de ação em redes interinstitucionais e as aberturas epistemológicas para exercitar a interdisciplinaridade.
O projeto Reconhecer, lançado pelo MEC após a realização do seminário, teve exatamente a finalidade de estimular Núcleos de Prática Jurídica nos cursos de Direito, com a preocupação de incentivar essa nova cultura e de fomentar e promover ações que venham a estabelecer caminhos para a formação cidadã dos estudantes, orientada pelos Direitos Humanos. Não por coincidência, nessa implementação de uma política que havia sido fruto de forte mobilização estudantil, da qual o jovem estudante Fábio tomara parte, vai ter papel decisivo, como co-autor de uma política pública de educação e de realização de justiça, o gestor Fábio Sá e Silva, feito agora dirigente do órgão do Ministério da Justiça incumbido da capacitação do setor penitenciário, como garante das diretrizes e dos recursos que a asseguraram. Por isso, pode-se ver aí esforço considerável para inserir indicadores de qualidade no desenvolvimento de cursos jurídicos, ajustando-os à exigência de compromisso social contidas na proposta atualmente em curso de reforma da educação superior segundo a qual, além de se prever que a educação é bem público, também se estabelece que ela cumpre função social, concretizada por meio daqueles compromissos.
Claro que abrir-se ao sentido inovador da experiência dos cursos jurídicos neste campo para poder resignificá-la, implica propor e superar desafios que o próprio Fábio Sá e Silva bem soube identificar, na avaliação que fez do modelo de Assessoria Jurídica Universitária implementado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (A extensão universitária nos cursos jurídicos e as possíveis significações da experiência até agora acumulada pelo SAJU/SP, in Revista do SAJU – Serviço de Assessoria Jurídica Universitária, Ano I, Edição 01 – Janeiro de 2006, págs. 6-12). Alude o autor a três desafios a serem assumidos nos cursos jurídicos, “por todos nós que, nos limites do papel social que desempenhamos” nos confrontamos com “um direito que não é libertação”. Trata-se, diz ele, de pugnar pela reforma no ensino do Direito que se abra ao reconhecimento da extensão (primeiro desafio); que leve à institucionalização de instrumentos e mecanismos de produção de conhecimento inscritos no real, como os SAJUs, por exemplo (segundo desafio); e, finalmente, ter em conta o sentido qualitativo do conhecimento inovador e democrático que esta experiência (a assessoria jurídica universitária) agrega ao processo de conhecimento próprio ao afazer universitário (terceiro desafio).
Em sua dissertação de Mestrado, transformada em livro, ele aprofunda e completa as indicações pedagógicas e metodológicas com que busca responder a esses e outros desafios. Mas o faz, agora, na posição de autoreflexividade: ele incorpora o sentido da ação de gestor que experimentou, na implementação de políticas públicas, uma orientação que atualmente se projeta em campos que pareciam alienados das exigências dessas mediações.
Com efeito, analisando as recentes mudanças no comando do Ministério da Justiça, o lócus no qual exercitou a sua prática de gestor, Fábio mostra como elas trazem à tona […] este que é um dos maiores desafios à construção de uma verdadeira ordem democrática no país: a necessidade de concebermos estratégias responsáveis para mediar a nossa relação com a violência; uma tarefa que está longe de ser […] das mais fáceis, quando crescem clamores por soluções simplistas, como a redução da maioridade penal ou a adoção da pena de morte (Cidadania nas prisões e prevenção da violência in Folha de São Paulo: Opinião, Tendências e Debates, pág. A3, 18/07/2007).
Tributando essa tendência ao discurso do novo titular da pasta da Justiça, ele sustenta ser isso “o que tem feito em sucessivas oportunidades o […] Ministro Tarso Genro, com a reivindicação de uma maior interface entre políticas sociais e políticas de segurança pública”. Mas ao salientar que “a proposta do Ministro está em sintonia com o que de mais atualizado existe no assunto: a ênfase na prevenção, entendida como a conjugação de esforços entre Poder Público e Sociedade para reduzir os fatores de riscos e aumentar os fatores de proteção dos indivíduos e grupos sociais em relação aos crimes e à violência”, ele ressalva: isto “sugere uma revisão crítica do que até agora vimos concebendo como segurança pública”, na qual “para além da mera aplicação da lei, trata-se de firmar um compromisso com a produção de novos e mais solidários sentidos para a vida em comunidade”, conforme Cidadania nas Prisões e Prevenção da Violência (Versão estendida in Observatório da Constituição e da Democracia, nº 14. Faculdade de Direito da UnB: Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito. Brasília, julho de 2007).
Como formar juristas aptos à condução desta e de outras passagens que as energias emancipatórias de nossa sociedade estão a demandar?
Esta é a indagação que está na base das reflexões com as quais o leitor haverá de se defrontar, dentro em breve.
Uma dificuldade adicional para prefaciar o livro de Fábio Sá e Silva esteve do fato de que, tendo sido o seu orientador da dissertação e por isto, tendo presidido a Banca Examinadora para a sua defesa, acabei perdendo para o autor os elementos de referência para situar o seu trabalho, a partir, inclusive, dos pontos relevantes suscitados na interlocução proporcionada pelos debates que nela se desenvolveram graças à alta qualificação de seus membros: Professores José Eduardo Faria (USP), Roberto A. R de Aguiar (UnB) e Alexandre Bernardino Costa (UnB). É que estes pontos foram todos retomados pelo autor na densa “nota prévia a esta edição” (pp. 17-24), sobressaindo-se esse texto como se fora um prefácio que eu próprio gostaria de ver abrindo o livro.
E foram efetivamente retomados em arranque que se projeta desde o trabalho, inscrito em sua dissertação, para seus estudos posteriores, notadamente aqueles que derivam de sua inserção no processo da pesquisa empírica em Direito. Sempre de modo interpelante, jamais condescendente, que a mim mesmo me alcançou. Chamei a atenção para esse aspecto nessa Coluna Lido para Você – http://bit.ly/2Pv81yO. Em passagem que revela esse ponto, mostro a disposição, ainda que pedagógica para instigar os autores – no caso eu próprio em co-autoria com Antonio Escrivão Filho – com que Fábio de Sá e Silva, atualmente professor da Universidade de Oklahoma, em Organizando as Incertezas (São Leopoldo: IHU On-Line – Revista do Instituto Humanitas Unisinos. N. 494/ano XV, 3/10/2016, pp. 81-82), provoca também os seus colegas pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, em leitura que faz de nosso livro (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016). Diz ele:
Há, evidentemente, vários aspectos nos quais o livro poderia ser enriquecido ou expandido e eu estou, historicamente, entre os que sempre costumam estimular os integrantes de O Direito Achado na Rua a que adensem o componente de “ciências sociais” que é intrínseco ao movimento (“o verdadeiro jurista há de ser também um cientista social, sob pena de não ser nada, cientificamente; e assim deve procurar a colaboração mais fecunda com o sociólogo”, disse certa vez Lyra Filho).
Por exemplo, ao transpor a análise da “dialética social” para a formação de documentos e sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, o livro poderia ter se indagado sobre os limites (inclusive financeiros) colocados para a conformação de uma “sociedade civil internacional”, em geral muito mais profissionalizada e elitizada que os movimentos sociais locais e, por isso mesmo, muitas vezes incapaz, ainda, de ecoar a radicalidade das lutas por direitos que operam no interior dos Estados nacionais. Da mesma forma, no capítulo em que discute a reforma do ensino jurídico, o livro (o país como um todo, diga-se de passagem) carece de um balanço empírico mais sólido acerca da implementação das Novas Diretrizes Curriculares e do efetivo aproveitamento de inovações como Núcleos de Prática Jurídica, Atividades Complementares, etc., para a organização de projetos pedagógicos fundados nos ou orientados aos direitos humanos.
Mas se os autores não respondem a essas questões, nem por isso fecham as portas para que elas sejam entabuladas. E pela capacidade de articular abordagem nova, robusta e, sobretudo, apta a dar conta dos desafios colocados aos direitos humanos na atualidade, o livro traz, inegavelmente, uma grande contribuição para a nossa reflexão e prática rumo à reconstrução da democracia, do Estado de Direito e de uma ordem jurídico-política na qual, talvez, possamos regressar ao que hoje pode ser visto como o lugar confortável de que Bobbio escreveu sobre o mesmo tema na longínqua Turim de 1990.
Se então Fábio anota a exigência do que denomina um balanço empírico mais sólido acerca da implementação das Novas Diretrizes Curriculares e do efetivo aproveitamento de inovações como Núcleos de Prática Jurídica, Atividades Complementares, etc., para a organização de projetos pedagógicos fundados nos ou orientados aos direitos humanos, tal atitude ganha ainda mais urgência quanto, nesse exato instante, o Conselho Nacional de Educação acaba de expedir uma Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (Parecer CNE/CES n. 635/2018, aprovado em 04/10/2018), embora ainda sujeito a homologação do Ministro da Educação. Se essa homologação se dará é algo ainda em aberto na conjuntura, politicamente tensa, como radical mudança no modelo político de governança.
Conquanto os sinais já lançados exibam tremendos retrocessos epistemológicos, pedagógicos e políticos, com movimentos de clara intervenção (até aqui contidos, com as salvaguardas constitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, em face a ataques à autonomia das universidades e à liberdade de ensinar), e também em operações hostis à vocação crítica e livre da educação em geral (leis de mordaças, escola sem partido), que já feriram gravemente a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no tocante a fundamentos como flexibilidade curricular, interdisciplinaridade e redução dos elementos reflexivos do manejo pedagógico, é certo que na Revisão (Parecer n. 635/2018), apreende-se um vínculo não rompido como o movimento crítico e plural instaurado em 1994, com a Portaria n. 1886, conferido em 2004, com a Resolução n.9, guardando fidelidade a esses elementos estruturantes de uma orientação curricular, ainda que acessíveis a indicações de mais detida qualificação (conferir, nessa direção, o artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues, ainda inédito mas que circula restritamente, em seu esboço inicial – que vai integrar o volume 8 da Coleção Caminhos Metodológicos do Direito, coordenada pelos Professores Fabrício Veiga Costa, Ivan Dias da Motta e Sérgio Henriques Zandona Freitas -, Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito: Análise do Parecer CNE/ N. 635/2018.
Anoto, entre as indicações derivadas de balanços empíricos para o aprofundamento das promessas ainda não realizadas das diretrizes curriculares inauguradas com a Portaria 1186/94, a instigante pesquisa conduzida por Luciana Lombas Belmonte Amaral e que resultou em sua dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Direitos Humanos da UnB (CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), com a orientação da Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Desafios à Educação em Direitos Humanos no Ensino Jurídico: um estudo a partir das representações sociais do estudante de direito. Brasília, UnB/PPGDH, 2017), dando conta de um percurso formativo no qual se deve semear reflexões críticas dos estudantes de direito para que possam identificar, nas naturalizações que se imbricam aos discursos do ‘mundo do direito’, o abismo que nos separam de nossas missões como cidadãos e profissionais das carreiras jurídicas para a transformação social (pp. 307-308)
De minha parte, anoto também, como já o fiz em minha participação, como homenageado e como conferencista da sessão inaugural do XXV Encontro Nacional do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Brasília de 6 a 9 de julho de 2016), feri o tema da pesquisa, do ensino crítico e extensão popular como práticas instauradoras de diálogos libertários entre a universidade e a sociedade (conhecimnto e função social). Tal como Fábio, recorrendo à metáfora da “rua” para invocar o sentido de espaço público constituinte em que são instituídas novas formas de sociabilidades e reconhecimentos recíprocos chamei à reflexão sobre os desafios hoje postos ao campo, indicando que O Direito Achado na Rua pode dar novas contribuições ao ensino, à pesquisa e à extensão em Direito e Direitos Humanos, com objetivos sociais mobilizadores.
Na expressão “diálogos libertários” inferi o contexto de abertura da Universidade ao diálogo e à promoção do debate, atendendo à sua vocação orientada pelo princípio da indissociabilidade do tripé pesquisa, ensino e extensão e ao (re)conhecimento de práticas insurgentes, de sujeitos coletivos e novos direitos e juridicidades. A qualificação de “libertário” ao diálogo proposto, por sua vez, perpassa a dimensão constitutiva da liberdade, compreendida aqui como uma construção, “uma possibilidade de ser” (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. O Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2011, p. 27). A liberdade no agir que é realizada historicamente e de forma conjunta, a liberdade como possibilidade de ser que é, necessariamente, atrelada à emancipação.
Em seu artigo Vetores, Desafios e Apostas Possíveis na Pesquisa Empírica em Direito no Brasil, se apresenta comprometido com O Direito Achado na Rua, que para ele continua sendo um dos mais emblemáticos projetos nesta linha – integrar como objeto irrecusável do conhecimento jurídico as práticas sociais que estabelecem a tensão entre o instituinte e o instituído – na medida em que entende o direito como o produto das práticas de movimentos sociais e nas tensões que estas estabelecem com a ordem normativa estatal (p. 42).
Conquanto articule sua leitura pelo triplo enlace epistemológico (esgotamento do positivismo jurídico como conforto racional, alcance do pluralismo jurídico enquanto categoria de análise), metodológico (pesquisa-ação) e político (teorias de sociedade e fundamentos éticos enquanto base para estabelecer modos de determinação do jurídico), Fábio e dos poucos empiricistas (law in action),embora ele não seja de modo algum rotulável nessa designação, conforme se vê já no resumo de seu artigo (Eventual interesse em celebrar ou promover essa condição não deve ocultar os obstáculos históricos e estruturais contra os quais ela foi erigida, tampouco arrefecer o exercício da nossa consciência crítica sobre os desafios com os quais a PED se defronta, p. 24) que escapam a auto-contenção das fronteiras que o odo de conhecer sociológico impõe ao campo. Com efeito, não se deixa enredar no limite de obejtos empíricos possíveis de descrição segura (Engels: a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicaçã), para aceitar os riscos da cognição de objetos fluidos reivindicados pela hipótese do pluralismo jurídico. Para Fábio, como em Lyra Filho, o Direito é, enquanto vai sendo e o desafio é designá-lo, ontologicamente, no movimento de sua contínua transição.
Com Fábio Sá e Silva, de modo concreto, esses esforços puderam ser transformados em práticas emancipatórias de Justiça e de Direito (conferir, neste sentido,
http://bit.ly/2vtdV8c), o que para nós, desde que Roberto Lyra Filho originalmente o enunciou, só pode ser direito achado na rua, a partir do qual, sustenta Fábio, dá-se a articulação entre direito e emancipação social. O importante é que nisto estejamos de acordo. Para nós, de fato, é “O Direito Achado na Rua”, esta concepção de Direito que emerge, transformadora, dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania, de participação democrática e de acesso qualificado à justiça e à realização de direitos.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |
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