Qual a norma mais importante do ordenamento jurídico brasileiro?

O presente artigo é daqueles referentes ao que chamo de grandes temas do Direito em nosso tempo. E, justamente, é relativo àquele que talvez seja o maior dentre esses temas. Pois estou convencido de que muitas das questões mais pungentes enfrentadas pelos juristas contemporaneamente têm em sua base uma disputa entre duas normas (que correspondem também a dois valores): a norma do respeito à dignidade da pessoa humana (art. 3º, III da Constituição Federal) e a norma do direito fundamental à vida (art. 5º, caput CF).

Trata-se de um verdadeiro embate pelo papel central no palco do ordenamento jurídico brasileiro, embate esse que hoje (e já há algum tempo) vem sendo vencido pelo princípio da dignidade. Com efeito, é largamente predominante na doutrina brasileira do início do século XXI – seja a doutrina constitucionalista, seja a doutrina privatista – que a norma mais importante do sistema é aquela que determina o respeito à dignidade da pessoa humana. Essa percepção remonta à corrente ético-jurídica do personalismo ético, triunfante na Alemanha e nos demais países do Civil Law após a Segunda Guerra Mundial, e que incorporou conceitos da filosofia kantiana ao pensamento jurídico para enunciar que os seres racionais (as pessoas) são sempre fins em si mesmos, e nunca meios para a realização de outros fins, nisso residindo a sua especial dignidade, base e filtro de todas as demais normas do ordenamento (cf., acerca do personalismo ético na Alemanha, Karl Larenz, Derecho civil: Parte general, Madrid, Revista de Derecho Privado, 1978, §2º, pp. 44-46).

Foi assim que o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana acabou erigido em alicerce do sistema de direitos humanos fundamentais (e também da expressão destes no sistema privado, os chamados direitos da personalidade). Mas se há uma norma (e um correspectivo direito) capaz de rivalizar com a dignidade humana em importância no sistema jurídico, essa norma é a relativa à proteção da vida (talvez seja a única dotada de envergadura para tal competição). Afinal, o que é mais importante: proteger a dignidade da pessoa ou proteger a vida (sem a qual não existe a possibilidade mesma de nenhum direito)? E quando a vida não for digna? Existirá, aliás, vida que não seja digna? O conflito aqui detectado é real ou aparente?

A respeito dessa última indagação, muitos irão se lembrar de que é normal a colisão (conflito) entre direitos fundamentais, bem como entre princípios jurídicos, existindo um método proposto para a sua resolução (sopesamento). Nessa ordem de ideias, poder-se-ia também questionar o sentido (ou mesmo a necessidade) de um embate entre dignidade e vida, se haveria a necessidade de algum tipo de hierarquização entre essas normas, haja vista que se impõe a sua convivência. Mas o ponto aqui não é esse. Estou me referindo, antes de mais nada, ao uso que se faz dessa específica disputa de normas e valores no campo da retórica, no campo do discurso argumentativo jurídico. Pois o fato é que as respostas a alguns problemas jurídicos mudam, conforme se priorize uma ou outra dessas normas: a perspectiva da dignidade ou a perspectiva da vida, como norma-base e valor-base.

Podemos demonstrar essa dualidade de perspectivas fazendo menção a três discussões jurídicas agudas da contemporaneidade: a discussão acerca do aborto, a discussão acerca da eutanásia e a discussão acerca da qualificação jurídica dos animais não humanos. No que tange a qualquer dessas questões, o output que advirá da reflexão dos juristas (seja sobre as normas vigentes, seja reflexão de lege feranda) irá variar de acordo com a perspectiva predominante eleita.

No tema do aborto, por exemplo, é evidente que a adoção da norma de proteção à vida como norma máxima e (preferencialmente) prevalente conduz a um cenário de restrição maior (ou mesmo de inexistência) de hipóteses juridicamente admissíveis de aborto. Se a ótica adotada, por outro lado, privilegiar a norma do respeito à dignidade da pessoa humana (considerada tanta a pessoa da gestante, como a do nascituro – pessoa em formação), o tipo de resposta muda, podendo-se (em tese) pensar numa gama maior de hipóteses lícitas de interrupção da gravidez.

Em suma, por trás desses e de outros temas polêmicos da atualidade, há uma tensão permanente entre o valor (e a norma) da proteção à vida e o valor (e a norma) da proteção à dignidade humana, tensão essa cujo equacionamento talvez passe, em primeiro lugar, pela melhor construção e concretização do conceito jurídico de dignidade, bem como pelos subsídios oriundos de outras áreas do saber sobre a natureza da vida em geral. Por ora, porém, remanescem mais dúvidas do que respostas nessa caminhada.

Marcel Edvar Simões

Procurador Federal, Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA em São Paulo. Bacharel e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil na Universidade Paulista – UNIP. Membro do IDP, do IBDCivil e da ADFAS.

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