O Tribunal de Contas e a Educação Municipal

Coluna Democracia e Política

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Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

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A crítica ao Ideb

O Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul lançou recentemente o estudo “Avaliação da eficiência e da eficácia da rede municipal de ensino de Porto Alegre”. Antecipamos aos leitores do Estado de Direito, a seção “A crítica ao Ideb”,  subcapítulo de nosso estudo “O Tribunal de Contas e a Educação Municipal”, a ser lançado em julho próximo, onde apresentamos nossas reflexões sobre o estudo do Tribunal.  Nesta  seção apresentamos a posição que questiona o Ideb como indicador de avaliação da qualidade da educação municipal como pretendido pelo TCE/RS.

O cientista social Rudá Ricci é um dos críticos da utilização do Ideb como única forma de avaliação educação “O Brasil precisa dizer o que acredita, porque o MEC está querendo jogar goela abaixo que só existe um jeito de avaliar e quem é especialista nessa área sabe que não é verdade”, diz. Essa não é exatamente a posição do Tribunal de Contas do Estado? Para Ricci, e também para o Prefeito José Fortunati, em sua obra Gestão da Educação Pública: Caminhos e Desafios (Porto Alegre, ArtMed, 2009), a educação infantil de Porto Alegre é a mais bem qualificada do ponto de vista pedagógico. Porquê? Porque ela se baseia autores clássicos como Piaget,  Wallon e Paulo Freire, que focaram no desenvolvimento da criança. O problema é, segundo Ricci, o ensino médio, por causa do vestibular que focaliza o aluno na memorização e não na interpretação.  Esse é o efeito de políticas de avaliação impostas para o ensino médio.

Ricci assinala nas origens da defesa do Ideb está a ”concepção focada no resultado como nos EUA, no famoso currículo prescritivo, ou seja, independente das características dos alunos, o que me interessa é eles chegarem ao mesmo ponto, que é a visão taylorista da educação do século XIX”.  Para Ricci, os educadores não discutem claramente este aspecto e as políticas públicas sofrem influências de grupos distintos que vão desde à Receita Federal, que deseja a introdução de uma educação fiscal no currículo aos empresários da educação e donos de editoras de livros didáticos. A culpa pela hegemonia do Ideb como ferramenta universal foi do próprio governo Lula, afirma Ricci “Eles, na educação, jogaram pesado com a questão do Ideb. Qual é a ideia? Vamos melhorar de 4,7 para 6. O que está ocorrendo é que nos estados que querem melhorar o ranking, as superintendências ou diretorias regionais de ensino ficam pressionando os diretores para melhorar de qualquer maneira o indicador. Ninguém pensa no aluno, ninguém pensa na família. A questão é melhorar o indicador”, sentencia.

Para Ricci, a questão é reposicionar os indicadores, a educação não pode ser esvaziada de suas características próprias pela imposição de metas governamentais distantes da realidade “Educação significa estimulo correto, adequado, aliás, múltiplos estímulos para que a criança consiga se desenvolver do ponto de vista afetivo e do ponto de vista cognitivo. Todos os estudos demonstram que para essa situação do desenvolvimento da inteligência ocorra, existe uma série de fatores que concorrem para isso. Um deles é a família. Você acha que o Ideb está ajudando a pensar a família? Crianças que têm hábito de leitura em casa vem para a escola com hábito da leitura. Alunos que têm pais que não lêem não têm hábito de leitura. Você não pode dar aula de reforço igual. Você tem que criar um ambiente de leitura. O Ideb não ajuda em nada. Quando chega o boletim do Ideb, é um desespero total do professor e aí vem problemas mais graves. Quais são? O professor recebe lá que sua escola está com 3,7 em língua portuguesa e aí eu pergunto: qual é o tempo que ele tem para melhorar a aula? Ele não tem tempo. Os professores no Brasil de ensino fundamental têm normalmente três jornadas”. Esse é o aspecto da visão progressista de ensino e avaliação, a de considerar o conjunto do sistema de ensino, de como se dão as relações entre professores, técnicos da educação, diretores e alunos.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Realidade

A adoção do Ideb revela a concepção de educação defendida pelo TCE/RS. Qual? Ele quer focar no resultado ou quer focar na aprendizagem? Os professores podem ensinar os alunos a decorarem para atingir resultados positivos. É isso? É claro que não! Mas se estudo do Tribunal de Contas sinaliza que o objetivo é que é preciso atingir um único indicador, então, ele tacitamente, está admitindo que o professor deve fazer o que for preciso para isso, e isso significa inclusive…a decoreba! Por isso os professores da rede municipal de ensino de Porto Alegre vieram a público nas redes sociais exigindo o contato com os técnicos que construíram o estudo do TCE/RS “venham ver a realidade” eles dizem.  Como afirma Ricci, só quem é especialista em educação sabe da realidade “como é que a gente vai transformar a educação como se fosse a produção de um prédio? ”, finaliza. Para Ricci, o Ideb, ao impor metas, esquece que a educação é relação social, que exige conhecimentos de Psicologia, Neurologia e que o professor não é um robô.  Ele lembra que foi um acordo político entre o PT e o PSDB que definiu que os governos iriam trabalhar em cima de indicadores de avaliação externa diante de um ranking, afirma Ricci “então se esquece toda essa condição de trabalho que o professor tem em sala de aula”, conclui.

O efeito do estudo do Tribunal de Contas é que a culpa vai ser sempre do professor. Quem trabalha com educação sabe que a culpa do fracasso escolar nunca é do professor somente, é sempre produto de uma conjunção de fatores. O valor do Ideb é, segundo Ricci, ser uma foto do momento “O problema é que educação não é foto, é filme”. Quer dizer, exatamente porque é um índice quantitativo que o indicador é falho, ele não aponta as causas dos problemas ali ou aqui. Basta perguntar aos técnicos do Tribunal de Contas porque um índice é de um jeito numa escola e diferente noutra. Eles não sabem.

O estudo do TCE/RS é uma pesquisa de gabinete e nisso está sua fragilidade. Os autores repassaram a exaustão dados disponíveis em portais, pesquisas de avaliação e indicadores dos Portais de Transparência, mas que experiência real de sala de aula da rede municipal de ensino de Porto Alegre tiveram? Uma avaliação precisa ser qualitativa, verificar o que acontece em sala de aula, o que acontece no intervalo, quais os projetos desenvolvidos por cada escola, como é o ambiente do aluno e da comunidade. O quantitativo é somente classificatório, precisa combinar com o qualitativo, o que na minha avaliação não é feito pelo estudo do TCE/RS. O TCE/RS aponta o problema, mas as causas não são apontadas caso a caso. Qual é o problema da escola “x” e como resolver? O texto silencia.  Ricci aponta que avaliação é um problema não de órgãos como o TCE/RS, mas do sistema municipal de ensino e da própria formação profissional dos professores “Professor da universidade não sabe avaliar e se ele não sabe avaliar, ele não sabe ensinar como é que avalia. Você tem vários instrumentos de avaliação. Não tem um só. No Brasil a gente só usa um, que é a chamada prova objetiva, que é aquela que você já tem a resposta antes. Então, o que estou querendo pegar de você com esse tipo de prova? Eu quero pegar se você memorizou. Mas é organização de ideias, interpretação de texto? Essa prova não pega. Então você vê que no Brasil a gente só pega avaliação de um aspecto que hoje a gente avalia que não deve significar mais do que 20% do total dos pontos de uma avaliação. Por quê? Porque uma verdade científica hoje não dura em média mais do que cinco anos”.

Solução

Segundo Ricci, a solução é a adoção de uma prova operatória como o Enem, que possui mais de uma variável e joga para o aluno situação –problema. Ela capta a organização das ideias e a operacionalização do conhecimento e tem como base a teoria das inteligências múltiplas. Os pesquisadores do TCE/RS optaram por um estudo sobre a rede de ensino fundamental do sistema municipal de ensino, mas a rede possui 2 escolas de ensino médio. Porque os autores não as consideraram e incluíram também o Enem como índice? Porque não discutiram suas diferenças, fizeram comparações entre os dois indicadores? Minha resposta é que se o fizessem, ficaria claro o problema metodológico que ocultaram. Não há nenhuma referência na bibliografia. Os dados, como foram organizados, não utilizam sequer como citação ou referência.

Para Ricci, se o Tribunal quiser dar um salto de qualidade na educação, é preciso obrigar os governos a investirem 50 a 70% a mais em educação “O meu problema é de concepção. Nós estamos esvaziando o conteúdo educacional e caminhando para um conteúdo instrucional, não educacional. Não é para criar autonomia, é para criar resultado”. Não é exatamente o que está ausente no estudo do TCE/RS, essa ausência de concepção, de conteúdo educacional?  A ideia de autonomia, essencial a pedagogia freiriana, uma das linhas dos trabalhos dos educadores na capital, é o primeiro alvo atingido quando uma política pública exige indicadores “Nós estamos formando gente cínica, que estuda para a prova, mas não estuda para a vida”, afirma.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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