O real sentido da ameaça do governo aos professores substitutos

Coluna Democracia e Política

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Foto: pixabay

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O uso do medo como estratégia de governo

O governo José Ivo Sartori anunciou nesta semana que está pensando em demitir os professores substitutos que estão em greve. A medida é um retrato 3×4 do governo estadual.  Em seu texto “A dimensão subjetiva da política” (Política y subjetividade, Obras, volume IV, México FCE, 2015), o investigador, cientista político e teórico Norbert Lechner (1939-2004) analisou a dimensão subjetiva da política com o objetivo de descrever os condicionamentos cotidianos dos regimes políticos nas sociedades democráticas. Quando o governo Sartori diz que “está pensando”, o que ele está fazendo é uma ameaça, ele quer usar os medos dos professores contratados contra a categoria do magistério estadual,  mas a questão que deveríamos colocar é outra, porque a democracia que supomos existir no estado dá significação as vivências? Lechner propôs a discussão em função de sua história pessoal, de um pensador que viveu os dramas da guerra e que foi obrigado a mudar várias vezes de pais. O que ele concluiu? Que viver no meio de incerteza tornam frágeis nossos laços de pertencimento um grupo ou um lugar.

Não é exatamente isso que o gesto de Sartori provoca nos professores contratados? Eles, no curto período em que assumiram suas classes de aula, adquiriram uma identidade, um vínculo de pertencimento a uma escola e a uma comunidade.  Como afirma Lechner, desde os movimentos de maio de 68 sabemos que os sentimentos não estão encerrados no âmbito individual e que nos períodos autoritários, a experiência subjetiva se confunde com a ordem política. O autor denomina de subjetividade política aquela que oferece motivações que alimentam a construção da ordem desejada (Lechner, Obras, Volume IV, p. 191). Ela tem recebido, segundo o autor,  pouca atenção da teoria política contemporânea. Para mim, a iniciativa do governador José Ivo Sartori é uma ação deliberada para provocar medo, angústia e ameaça de desemprego, mas também ameaça de exterminação do que dá sentido à vida no exercício do magistério para estes professores contratados.

O problema é que o fato de um governo agir sobre expectativas, sobre as emoções de seus trabalhadores, contrasta com o que se deve esperar de uma ordem democrática “Os temores em torno do futuro nascem no passado”, diz Lechner, o que significa que, para cada professor substituto ameaçado há uma história de dedicação que é exterminada, anulada, abafada, e que, ao contrário do que pretende Sartori, vale a pena preservar. Quantas experiências novas, sociabilidades, foram introduzidas nas escolas pelos professores substitutos? Quantos projetos esses professores iniciaram e que estão em andamento em suas salas de aulas, em suas disciplinas, em cada escola? O que esquece, ou finge esquecer, essa ameaça? Que o fio que une o presente ao passado, que cada professore constrói, é que mesmo em um período que pode ser curto, uma memória foi construída e que um governo democrático deveria preservar. A posição tomada pelo governo Sartori é, em meu entendimento, numa palavra, covarde: os professores substitutos estão totalmente à mercê do governo, pois eles são, como o termo diz, substitutos, isto é, temporários, e nada impede que seu tempo na escola seja abreviado pelo governador de plantão.

A covardia como caráter de governo

A covardia do governo se expressa pela impotência dos professores substitutos em reagir. O governo sabe que os professores substitutos têm uma autoimagem baixa, afinal, são substitutos, o que indica, já uma opção por algo…menor. O governo se aproveita de um grupo que tem autoimagem baixa para dividir o magistério estadual, para atacar o movimento grevista que se opõe a suas iniciativas e seu projeto neoliberal e sua visão economicista de estado. Porque é vergonhosa esta atitude? Porque ela é o contrário do que se espera da política nos termos de Lechner, de acolher os desejos e mal-estares, as ansiedades e as dúvidas, incorporando-as ao discurso público e dando espaço ao cidadão para reconhecer seus dramas cotidianos como parte da vida em sociedade: o estado, através das políticas públicas, deve contribuir para a solução de seus dramas subjetivos de seus servidores e não amplia-los.

Que faz o governador José Ivo Sartori? Ao contrário do bom soberano, ele se mostra um mal soberano porque ele usa o medo do trabalhador, do professor substituto. Ele estimula-o e o produz para promover seus objetivos. Não são as angústias e medos do professor na situação de ensino a que são buscadas soluções, ao contrário, são medos impostos, gerados, uma ansiedade que não existia e que passa a tomar corpo no imaginário do professor substituto. José Ivo Sartori usa de uma brecha entre a subjetividade e a política, ele cria para o professor substituto mais uma dificuldade, a de escolher entre vivenciar com seus pares uma situação de luta social, ou lutar por sua própria sobrevivência. Com isso José Ivo Sartori corroê os laços entre professores efetivos e professores substitutos, revela o modo de organização do estado e das estratégias que usa para além da ética e da moral.

A circularidade dos objetivos de governo

Lechner se pergunta se o governo dispõe de antenas capazes de ver e estudar, além das manifestações ruidosas, os murmúrios e silêncios das ruas.  Com isto ele quer nos sugerir que os governos que não conhecem os dramas de seus professores substitutos, do esforço que fazem para fazer um bom trabalho, que não valorizam o vínculo que terminam por criar com seus alunos e que faz parte da criação de novos espaços de sociabilidade no interior da escola são governos circulares, que não pensam no noutro: o governo Sartori se tornou um círculo vicioso porque só pensa em si mesmo e é incapaz de pensar no outro.

Mas há um outro problema na atitude de Sartori. É a erosão do imaginário coletivo mediante o qual uma sociedade se reconhece a si mesma, se interroga a si mesma. Como isso se dá? Na medida em que somos todos indiferentes ao destino dos professores substitutos das escolas, estamos renunciando também a política, porque estamos deixando de fazer um esforço coletivo de construir uma comunidade de cidadãos onde tais profissionais também são integrantes. É por isso que nesse caso, diz Lechner, estamos nos “contentando com a gestão dos negócios de cada dia” (p. 195).  Não é exatamente essa a indiferença com os professores substitutos, essa pouca reflexão sobre os efeitos das medidas do governo com relação a eles, que fala de nossa própria erosão como comunidade? E isso não significa que estamos concordando, justamente, com a política de negócios do governo Sartori, pois não é assim mesmo que ele se apresenta na prática com a extinção de fundações e parcelamento de salários, de que o estado é um grande “balcão de negócios? ”.

Como afirma Lechner, a subjetividade das pessoas importa na política. A vida é tão importante quanto as considerações de ordem econômica. Qual subjetividade está em perigo? A subjetividade escolar, as experiências e expectativas de professores e alunos de nossas instituições de ensino estatuais.  Sartori e sua equipe sabem que o medo é uma ferramenta poderosa de ação política. As ações de Sartori já comprovam isso: foi medo o que foi gerado nos servidores públicos das fundações ameaçadas de extinção; foi o medo o que foi gerado pelo parcelamento de salários. O governo Sartori está se tornando um expert em gestão dos medos coletivos – a expressão é do filósofo Paul Virilio.  Ele busca condicionar pelo medo as atitudes dos professores, faze-los recuar de um instrumento legítimo de luta social, a greve.

A politica de Sartori dos três medos 

Quais são os três medos colocados em ação pelo governo Sartori? O primeiro é o medo ao Outro, que o Estado representa para os professores substitutos e servidores em geral. Ao contrário do que propõe Lechner, não se trata do medo ao delinquente ou delinquência, ameaça que dispara o sentimento de insegurança. Aqui, o delinquente é o próprio Estado, é ele que foge a lei ética, a do relacionamento cordial que deve ter o governo com seus subordinados. Ao contrário, o estado delinque, isto é, se desvia de seu rumo original, e passa a ameaçar os servidores, aos trabalhadores, aos professores substitutos.

O segundo medo apontado por Lechner é o medo da exclusão. Para Lechner, nossos medos se expressam nas relações sociais, mas também com sistemas funcionais como a escola. Por isso os professores substitutos temem a exclusão, a demissão da escola, de serem empurrados para o mercado de trabalho raro e competitivo da iniciativa privada. Isso é estar excluídos do sistema de ensino, dos sentimentos de autoestima e prestigio social, que é também uma forma de se sentirem excluídas do futuro.

O terceiro medo apontado por Lechner é o medo ao sem-sentido. Ele nasce de um conjunto de experiências novas, o trato agressivo do estado para com seus servidores, o parcelamento salarial, a implantação de novos sistemas de ensino sem ouvida aos interessados. O que os professores sentem é que estão vivendo uma situação caótica, vivem aos sobressaltos, sem uma visão do futuro, são obrigados a pequenos bicos para sobreviver. Tudo isso é vivido sem sentido pelo professor, ele não entende como isso pode acontecer se ele faz tão bem o seu papel. “A realidade deixa de ser inteligível e aparece fora de controle. Qual é, no meio desse torvelinho, o sentido da vida? ” Substitua vida por magistério, e eis você diante do drama do professor.

 

Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

 

Do medo ao terror

A passagem do medo ao terror é justamente o tema de um texto do filosofo Jacques Rancière da obra coletiva Ensaios sobre o medo, organizada por Adauto Novaes (Senac Editores, 2007). Em “Do medo ao terror”, Ranciére explora o terror como modo de percepção. Para o poder, impor o terror é impor um modo de percepção das ameaças “o terror não é simplesmente um medo mais forte que responde a uma ameaça mais temerosa e mais difusa. É uma maneira de nomear, de ressentir e de explicar o que causa perturbação na alma de cada um de nós” (Ranciére, p. 53). Ora, sugerir a demissão é impor um medo que se transforma em terror, porque gera uma perturbação na alma do professor substituto, e por isso Ranciére sugere que é preciso pouco a pouco redefinir as coordenadas de explicação do mundo, para pensar as relações de causa e efeito, as relações entre indivíduos e sociedade.

Ranciére vê na ficção figuras clássicas do medo que dão a ideia do terror. Elas falam justamente do descompasso entre ordem e desordem, razão e paixão que o terror configura.  Em M, o vampiro de Dusseldorf, o terror é produzido pela sombra que passa por uma multidão e o princípio é o do deslocamento do medo na multidão. Não é exatamente essa a posição de Sartori, essa produção de deslocamento da ação, que deixa de ser aos professores efetivos e passa para os professores substitutos, que faz com que a sociedade seja testemunha de um deslocamento de uma sombra assassina, a ameaça de demissão? Ranciére lembra que na lógica do medo no filme está a narrativa da caça. Não é exatamente a mesma do governador com seus professores, que produz a figura do professor acossado, exatamente similar à do homem acossado no filme? Qual a solução do filme, segundo Ranciére: de que é preciso reduzir o medo, a chamada “purificação do temor”, descobrir o jogo ficcional que coloca no discurso do governador o professor substituto como objeto de medo. É sugestivo que Ranciére aponte que o filme foi considerado uma fábula anunciadora do nazismo pela maneira como encadeira o terror social difuso no jogo das expectativas e dos temores.

Outro filme que serve para Ranciére explicar a lógica da imposição do medo é o filme Sobre Meninos e Lobos.  Resumidamente, trata-se de uma cena primitiva de violência contraposta ao que acontece aos seus personagens na vida adulta: Dave, Sean e Jimmy se transformam e adultos e possuem o segredo de uma violência sexual. Seu destino não passa de repetição da cena original: “Dave, o doente, é executado pelo crime que não cometeu, enquanto que cometeu outro, o de ter assassinado um pedófilo, que é a consequência direta do trauma. Jimmy, o vigarista honesto, repete, matando Dave impunemente, um crime anterior escondido – o assassinato de sua filha serve, na verdade como castigo. Sean, o policial, repete, em face da execução sumária de Dave, a passividade que havia manifestado diante de seu sequestro” (p. 57).  A conclusão de Ranciére: ”David é culpado porque é vítima” (idem). Ora, não é exatamente esta a posição do professor substituto, ele não transforado em culpado pelo governo Sartori, que agora ameaça a demiti-lo? Mas nessa posição, ele não é tomado como culpado justamente porque é….uma vítima? Vítima da sua condição – professor de segunda classe – vítima de seu salário miserável, vítima da condição de chantagem em que é colocado pelo governo: ceda da greve ou demito você! Imposta pelo governo? O que se esconde na descrição de Ranciére do filme Meninos e Lobos é, justamente, de que há um trauma fundador: no filme, a violência sexual contra Dave; no magistério, a violência…simbólica contra o professor. Em ambos, há uma repetição da violência, pois o magistério é violentado pelo governador duas vezes, pela política salarial que impõe aos professores, e pela divisão da categoria em greve que impõe pela manipulação do medo entre os professores substitutos.

A sociedade como espectador 

O que Ranciére tenta sugerir através dos exemplos tomados do cinema? Que, exatamente por ser cinema, sempre envolve definir a posição de um terceiro: no caso do cinema, o espectador; no caso dos professores (sejam substitutos ou efetivos), a sociedade. Ranciére ensina que o espectador de Lang era conduzido a uma posição virtual de linchador, uma posição exterior da cena apresentada; ao contrário, o espectador de Clint Eastwood, não era convidado a participar da cura do doente, mas ficava preso a uma certa cumplicidade e distância entre posições.  Com isso, o que Ranciére parece sugerir para o caso da relação de poder do governador com o magistério é que a sociedade também precisa se posicionar para reduzir o medo: ela está com os professores oprimidos ou com o estado opressor? Ranciére, baseado no entendimento dos antigos sobre o medo, sugere que devemos, para reverter esta situação, racionalizar o medo, isto é, racionalizar nossa relação com o desconhecido (a demissão), o futuro (a escola).

Sua reflexão leva também a um questionamento radical do governo Sartori como democracia. “A palavra democracia significa a invenção de um novo modo de governo: um governo paradoxal que não está baseado em nenhuma referência a uma superioridade, em nenhuma diferença de natureza entre governante e governado. O posto da democracia é a tirania, que é propriamente o assunto da tragédia, ou seja, a relação com uma alteridade incomensurável “ (P.61). Com isto Ranciére quer dizer que a democracia é um modo do governo dos homens que não está baseado em nenhuma superioridade de governo “a proposição pode ser lida ao contrário:  apolítica é a eliminação do deus e do monstro, daquele que aterroriza porque ele ou é mais ou é menos do que homem. “ (idem).

Se Sartori é capaz de exercer um poder que expressa que é mais do que um governante, que é um poder capaz de aterrorizar seus cidadãos como se monstro fosse, é porque, de alguma forma, deixamos de exercer no âmbito do estado, uma democracia.  Este pode ser o real sentido da ameaça aos professores substitutos.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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