A laranja mecânica somos nós

Coluna Democracia e Política

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Foto: Youtube

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Um escritor maldito

Comemorou-se no dia 25 de fevereiro passado o centenário de nascimento do escritor e compositor Anthony Burgess, conhecido por sua obra Laranja Mecânica. O escritor é tema de uma biografia que leva seu nome escrita por Roger Lewis, a quem teria dito:” Sou ignorado na Inglaterra. Você é o único que se importa”

Burgess era um escritor maldito. Mentiu, inventou, fugiu do fisco e ainda assim escreveu uma obra célebre e questionadora. John Anthony Burgess Wilson era filho de uma família pobre de Lancashire, Inglaterra,  publicou seu primeiro livro, a primeira parte da trilogia Malaia, apenas com 39 anos: era considerado prolífico demais pela crítica inglesa. Para seu biógrafo era assim porque Burgess nunca tentou escrever o mesmo livro várias vezes, como faz Paulo Coelho, e sua linguagem experimental nunca usou artifícios do marketing, como as obras de J.K. Rowlling.

Vida pessoal e profissional

Sua vida pessoal também não ajudou muito a conquistar seu espaço no universo literário. Sua mãe morreu logo que ele nasceu devido a gripe de 1918, que levou também sua irmã, Muriel.  De sua infância disse a Lewis “eu fui perseguido ou ignorado. Eu era um desprezado”. Perdeu o pai quando tinha 31 anos; sua primeira esposa foi estuprada e morreu de cirrose e sua madrinha, de ataque cardíaco. Suspeito de ser portador de um tumor cerebral, foi considerado inapto para um cargo de professor na Malásia. Seu serviço militar foi um desastre: estava sempre envolvido em incidentes disciplinares e foi perseguido por policiais militares das forças armadas. Transferido para Gilbraltar, conhece Ann McGlinn, professor de alemão que o influenciará no pensamento de esquerda presente em Laranja Mecânica.

Conta-se que o reconhecimento de realidades espirituais indescritíveis veio da audição de  Prélude à l’après-midi d’un faune de Claude Debussy, seu momento, digamos assim, “psicodélico”.  Há muito de ficção nos depoimentos que fez de sua própria vida, produto de sua dedicação as artes da imaginação: além de Laranja Mecânica, Burgess era escritor de quadrinhos, romancista e compositor. Escreveu roteiros de televisão, foi crítico literário dos jornais The Observer e The Guardian,  escreveu sobre James Joyce e fez traduções de obras como Cyrano de Belgerac. Passou a ministrar a disciplina de literatura inglesa em escolas secundárias quando deixou o exército em 1946, quando dirigiu também espetáculos de teatro.

Foto: Pixabay

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Em 1954 Burgess ingressa no British Colonial Service como professor de educação na Malásia, onde ensinou inspirado nas escolas inglesas e compôs sua Sinfonia Melayu. Também vai à Brunei, onde precisa reescrever um livro considerado difamatório ao pais. Conta-se que foi lá que, ao desmaiar em uma sala de aula, teve o diagnóstico de tumor cerebral inoperável e que tinha apenas um ano de vida. Viveu muito mais e morreu de câncer do pulmão em 22 de novembro de 1993.  Justificou a suposta expulsão das autoridades coloniais assim:  “acho que provavelmente as razões políticas foram disfarçadas de razões clinicas”. Outros biógrafos, como Geoffrey Grigson afirmam: “Ele sofria, entretanto, dos efeitos de uma bebida pesada prolongada (e da má nutrição associada), do clima muitas vezes opressivo do Sudeste Asiático, da constipação crônica, do excesso de trabalho e do desapontamento profissional. Segundo ele, os filhos dos sultões e da elite de Brunei “não desejavam ser ensinados”, porque a abundância de petróleo garantiu sua renda e status privilegiado. Ele também pode ter desejado um pretexto para abandonar o ensino e começar a trabalhar em tempo integral como escritor, tendo feito um começo tardio.“

De fato, de volta a Londres, nada foi encontrado de irregular em sua cabeça, somente as ideias. Parceiro em Londres de William Burroughs, Burgess se dizia ao mesmo tempo conservador e politicamente um anarquista e reconhecia a importância de uma medicina socializada. Depois da morte de sua esposa Lynne, Burgess, casou-se com Lilliana Macellari e uma herança melhorou em muito sua vida pessoal.  Para não pagar impostos, o casal deixou a Inglaterra indo para Roma e Mônaco. Nos Estados Unidos, Burgess foi professor visitante em Princenton, Nova Iorque e outras universidades, ensinando escrita criativa e romance.

Curiosidades

Existem inúmeras coisas curiosas sobre Burgess. A primeira é que ele escreveu com três nomes diferentes sua obra: Anthony Burgess, que apareceu em 1956 com seu primeiro romance, Time for a Tiger, além de ter assinado dois livros como Joseph Kell, volume de história literária como John Burgess Wilson e queria ainda publicar The Pianoplayers com um pseudônimo feminino, Josephine Kell. No total ele escreveu mais de sessenta livros. Na Malásia, em 1957, Burgess queria ficar após a independência e pensou converter-se a religião muçulmana. Ele já tinha até o nome que iria adotar:  Yahya Haji Latiff.

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Obras musicais

Sua obra como compositor também é grandiosa, tendo escrito mais de 250 obras musicais entre sinfonias, obras de coro e de câmara, concerto de piano e até um concerto de violino para Yehudi Menuhin. Sua simpatia pelas ideias socialistas pode ser vista na criação, em 1979, do musical intitulado Trotsky em Nova York, uma história de amor ambientada nos EUA às vésperas da Revolução Russa em 1917 e nunca executada.  A paixão por Nova Iorque também veio no livro publicado em Amsterdã em 1976 pela Time-Life International com o trabalho de vários fotógrafos, que complementou The Clockwork Testament (1973), o hilariante romance de Burgess sobre o poeta Enderby, produto de sua experiência no país. Finalmente, adaptou Laranja Mecânica para um musical em 1986.

Aliás, Laranja Mecânica, sua obra mais conhecida, inspirou inúmeros campos e autores. Slavoj Zizek referiu-se ao filme em seu documentário “O guia pervertido da ideologia”, onde analisou o significante vazio da Ode a Alegria, da 9º Sinfonia, e seu significado para Alex, o personagem principal. A obra alimentou hedonistas, liberais, violentos e desiludidos durante anos: modas inspiraram-se no filme, assim como canções populares. A cultura de massa frequentemente reelaborou sobre o filme: Barth Simpson cita Alex, Eric Cartman, de South Park, sofreu tratamento semelhante ao personagem e o filme virou aplicativo para iPad.

Atualidade da obra

Ainda que hajam diferenças entre o filme de Kubrick e o livro de Burgess, a atualidade de Laranja Mecânica está em colocar em primeiro plano a violência de Estado. Ela não se refere apenas a Alex, o jovem que rouba, estupra e mata, mas também ao Estado e suas formas de lidar com a violência. Não se trata apenas do uso da repressão para manter a harmonia social, Burguess, como aponta Zizek, vai mais além: Laranja Mecânica mostra como a ideologia que justifica a violência de Estado funciona, não há nada mais perigoso para o Estado do que a subversão, ensina Burgess.  A subversão está desde que os estudantes foram as ruas em 2013 com o objetivo de contestar a ordem estabelecida e retorna agora, na desobediência dos professores municipais das orientações de Nelson Marquezan Jr.

Não devemos ceder da subversão, mas devemos criticar  o Estado que usa da violência não para defender os interesses dos cidadãos, mas para defender os seus interesses: em tempos em que servidores públicos e jovens são reprimidos com balas de borracha, em que o governo federal e estadual querem fazer acreditar que seus projetos são bons para todos, em que o governo municipal impõe o ponto eletrônico para reprimir professores, a lição de Burgess é que vivemos tempos  em que cada cidadão é a nova “laranja mecânica”, construída para agir de acordo com o que lhe é condicionado, e daí, o retorno a sua obra é extremamente atual.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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