Bases para a construção do Memorial do Orçamento Participativo (2ª parte – final)

Coluna Democracia e Política

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Foto: Eduardo Beleske/ PMPA

3. Perspectivas para um Memorial do OP

3.1 O discurso do OP como discurso de memória

A relação entre o discurso de memória e o discurso do OP é importante na definição de um Memorial do OP. Embora ocorra um relacionamento entre os dois de forma complexa, há algumas diferenças epistemológicas e práticas que determinam o alcance de ambos. Primeiro porque a Memória do OP não pode nascer porque o próprio encontra-se.…a perigo. Benjamin dizia que os mortos têm um direito sobre nós, pois, do ponto de vista deles, somos as gerações futuras, assinala Huyssein. Mas o OP não está morto e por isto não há sentido lembrar com saudade os tempos do OP do passado. Mas, da mesma forma como hoje o movimento internacional de direitos humanos não existiria sem a memória dos campos de carnificina do século XX, o movimento em defesa da democracia participativa não pode prescindir da memória de seu filho mais digno, o OP. O OP pode ser uma vítima agora das circunstâncias de governo, mas é preciso acreditar, contra as vozes contrárias da esquerda, que não será extinto. Mas uma coisa é certa: há uma luta em andamento pela sua preservação, e ela também merece ser objeto de memória.

O discurso da memória e o discurso da democracia tem sido mantido separados e raras são as iniciativas, como o Memorial da Democracia, que visam preservá-lo. Como defende Huyssen, isso é surpreendente pois se supõe que deveriam estar sempre juntos. Mesmo com as fraquezas do OP, ainda assim, é um movimento importante que deve ser registrado para as próximas gerações.

Se a defesa do memorial do OP nasce como um paliativo para o desmonte promovido por sucessivos governos, ele nascerá fraco: por isso, é preciso buscar sua substância que seja contrapeso a amnésia galopante que diz que o OP que está aí é o que sempre foi. Não é, e por isso se exige rememoração, que é para Huyssen, o contrapeso da amnésia galopante. O discurso da memória é afetivo, é moral, ele avaliza, e por isso mantém sua tensão com o discurso do Orçamento Participativo, o discurso das formas da democracia participativa. Não queremos um museu para a cultura midiática, para questões frívolas – venda de objetos – a memória que desejamos preservar não é a transformação do OP em mercadoria a ser vendida para turistas, é a memória que favorece a expansão do ideal democrático.

A proposta de um memorial do OP nasce de uma ambiguidade porque tem de resolver a questão: ou ele é testemunha, ao mesmo tempo, de seus méritos mas também, de suas fragilidades, de seus pontos fortes mas também fracos ou ele é expressão de uma ideologia de seus organizadores, um museu chapa branca para retratar a idealização do processo. Em que opções se organizará sua base museal?

O discurso do OP é um discurso que reivindica a democracia participativa, mas cujo processo foi delimitado ao longo do tempo. Como revelar os contextos dos diferentes governos, as negociações dos espaços do OP e seus atores? Como registrar as agendas e demandas derrotadas? A inflação de documentos, discursos, prerrogativas, demandas, quando reunidos em um único local pode valorizar ou desvalorizar uma iniciativa, dependendo da existência ou não de um véu político, normalmente usados para encobrir interesses particulares, afirma Huyssen. Precisamos de um Memorial do OP que não sirva nem a idolatria partidária e nem ao abuso de lideranças, mas que seja uma referência internacional que mostre a complexidade do tema.

3.2. Uma memória da relação do OP com a Câmara

Um dos temas pouco explorados é a relação da OP com a Câmara Municipal. Objeto de estudo da pesquisadora Marcia Ribeiro Dias, o tema não foi explorado por estudos e pesquisas posteriores. E, ainda que o memorial do OP possa disponibilizar estudos disponíveis a seu respeito, que outros indicadores podem auxiliar a reconstruir essa relação entre o OP e seus cidadãos? Uma das formas é ver a intermediação do poder legislativo municipal no encaminhamento de demandas populares.

Por exemplo, podemos ver, através do Sisprot, que entre 1991 e 2017, ou seja, no período de 26 anos, foram produzidos 95 eventos no poder legislativo relativos ao OP. Quais merecem serem preservados e quais não? É importante a tentativa de institucionalização do OP, ainda que fracassada, em 1991, pelo vereador Clóvis Ingenfritz (Proc. 3138/91)? Ou é mais importante a iniciativa do Dr. Raul Torelly, que tentou estabelecer um posto de saúde por região do OP (Proc. 2566/2014)? Ou ainda, será que a ideia de instituição de um OP eletrônico, como propôs o vereador Idenir Ceccin (proc. 1550/2016), realmente colaborou ou foi um golpe contra os objetivos do OP? Ou mais ainda: é possível substituir a participação presencial por uma participação via internet? Em que pese as iniciativas legislativas de colaborar com a consolidação do OP, a questão é que nem todas são merecedoras de destaque para fins de memória, é disto que se trata.

Para nós, das 95  iniciativas, 3 do Vereador Cássio Trogildo melhor traduziram a tentativa de institucionalizar  as bases para um Memorial, pois, além de propor a sua criação – mesmo sem fazer uma analogia a bases, princípios ou metodologias, – ele foi capaz de perceber a sua importância: foi dele  a indicação, ao Sr. Prefeito Municipal, da sugestão do OP como bem imaterial, primeira etapa da sua transformação em patrimônio cultural (Ind.2848/2014); foi dele a sugestão ao executivo e após a autoria, do próprio Memorial; foi dele a tentativa de valorização da história do OP, primeiro pela inclusão do conteúdo história do OP nos currículos escolares, através do proc. 2844/14 e de homenagens a sua história, como a sessão solene pelos 25 anos de história do OP (Proc. 586/14). Quer dizer, curiosamente no legislativo, foi prerrogativa do PTB e não do PT a valorização do OP. Isso é a memória do parlamento e acredito, ela deve fazer parte do Memorial do OP.

Foto: Câmara Municipal de Porto Alegre

Foto: Câmara Municipal de Porto Alegre

3.3. Uma memória de atores

Se retornamos à história antiga, reconhecemos que a participação popular nunca foi o dominante nas relações da comunidade com seu estado. Na antiguidade, a participação era dos cidadãos, o que não significava “O POVO”, mas parte. Durante séculos, travou-se lutas pela participação e a ideia de que a gestão dos recursos de um povo pudesse estar nas mãos do povo era inconcebível, tamanho o poder dos governantes. O estado, mesmo nas democracias, ainda tem um poder superior aos recursos orçamentários do que a sociedade: não é à toa que uma crítica contumaz ao OP é o fato de que decide por uma parcela reduzida de recursos. Essa história possibilitou a esquerda denunciar, através do OP, as limitações da gestão dos recursos orçamentários por parte do Estado. Essa exclusão da participação popular, um dos objetivos que o OP visa combater, mostra que o OP é também uma questão de poder, da luta contra relações assimétricas, elemento também presente nos discursos de memória.

Um Memorial do OP deve dar conta desta genealogia do OP, a ideia de que a experiência do OP é mediada por atores, processos, regulamentos, governos, disputas em andamento, que evoluem no tempo. Ainda que o OP tenha conquistado legitimidade, isso não significa que ele seja capaz de responder a todos os desafios da sociedade local. Existe, como em qualquer processo de curadoria, certo nível de interpretação, de seleção, de julgamento do que deve fazer parte e do que não deve fazer parte de um museu. Mas a quem cabe esta abstração? Aos técnicos da prefeitura? Aos representantes do OP? Aos pesquisadores do OP? Uma proposta que ultrapasse o limite dos atores, parece ser a mais indicada para solucionar esse impasse. Ainda que seja no interior da própria administração municipal que seja apontada as razões para a redução do papel e do espaço do OP, em realidade, a Prefeitura ainda continua a ser importante ator do processo do OP, e que garante, por meio da institucionalidade, sua organização.

As lutas que foram vivenciadas no interior do OP só podem ser reconstituídas por seus atores, os conselheiros que ocuparam seu papel no período de sua realização, ou de observadores, normalmente pesquisadores. Muitas dessas lutas são permanentes, a ampliação de recursos para o OP, o cumprimento das “promessas” dos administradores, etc. Quer dizer, a nível local, as lembranças dos atores estarão sempre atualizando seus conflitos, “as lembranças se chocam, do mesmo modo que as reivindicações de direitos confrontam umas às outras”, diz Huyssen. A memória do OP também tem conflitos e lutas, e como fazer para preservar as memórias dos pequenos grupos? Essas tensões e conflitos são um elemento essencial para a determinação do tipo de memória do OP que desejamos preservar, e idealmente, devem ser objeto de reconhecimento de seus organizadores em busca da deliberação democrática de seu conteúdo e negociação.

Isso não significa que novos problemas não surjam. Por exemplo, na medida em que se pensa em colher depoimentos dos conselheiros como fonte desta memória, até que ponto, por mais legitimo que seja, podemos fazer isso, já que não corremos o risco de perder as dimensões política dos discursos dos atores? Não corremos, deixando tudo na mão de técnicos e pesquisadores, impedindo que o discurso do OP parta de seus atores? O discurso do OP deve se apoiar em exemplos concretos, em ações de mobilização de uma comunidade, e pode ser respaldado por estudos e pesquisas que treinem seus curadores para determinar os elementos chaves da experiência de participar do OP.

Será que o discurso da memória do OP surge para  destacar as reivindicações populares no contexto da expansão urbana, uma atualização do que faziam os antigos movimentos sociais dos anos 80? Não parece fazer muito sentido apresentar um projeto pronto de memorial do OP, pois o que se precisa é localizar e determinar quais são as ideias de identidade popular que delimitam o movimento, mas não registrar algo ainda é pior, uma ameaça a memória do OP, uma ameaça a própria identidade do OP, que sempre é moldada por inserção numa determinada região da cidade. A natureza problemática das demandas do OP, nem sempre atendidas pelo poder público, torna-se visível quando o próprio poder público colabora para a redução das reivindicações, limitando o campo e o espaço da pauta do OP. No OP é composto por inúmeras estratificações, cujas reivindicações sem a mediação da visão geral impede de ver que também há um abismo entre os grupos. Veremos que o próprio OP tende a confrontar os interesses de um bairro com o de outro, que leva aos grupos a organizarem-se para compor assembleias mais representativas de forma artificial.” A cultura da memória caracteriza-se, antes, por disputas, amiúde acerbas e ressentidas, sobre a memória…criando insidiosas hierarquias do sofrimento”(p.210). Você encontrará, é provável, lembranças de grandes reuniões, e grupos que lhe faram depoimentos disputando suas lembranças. Mas há uma luta aí que é preciso tentar intervir, de um tipo de memória tentando suplantar outro.

Foto: Luiz Chaves/Governo do RS

4. Princípios de base para o Memorial do OP:

4.1. A participação democrática como universal

A tarefa daquele que assumir a empreitada é reconhecer a dimensão universal da memória do OP nos avanços da teoria democrática de participação e não jogar uma lembrança e outra lembrança ao léu. O discurso da memória dos diferentes atores precisa alimentar uma dimensão universalizante que reconheça ao mesmo tempo a particularidade, o gesto, a situação, sem reificá-la.  A política da memória e o movimento do OP está ali, incrustrada em documentos, em memórias, que é preciso dar sentido. A memória pode valorizar a democracia participativa presente no OP, mas é preciso considerar que todo o depoimento está exposto ao abuso político. “Garantir o passado pode ser uma iniciativa tão perigosa quanto tentar garantir o futuro através de projeções utópicas”, afirma Huyssein. Quer dizer, não devemos deixar de registrar a experiência do movimento, mas também não podemos deixar que a inscrição que restar seja apenas produto do ativismo político de seus atores em um determinado momento.  Se o Memorial do OP se tornar prisioneiro das visões políticas dos ativistas, significará que ela é parcial demais. Se ela ocultar o fato de que houveram disputas, ela também se tornara prisioneiro de uma visão homogênea que não condiz com a realidade.

Há uma notável afirmação feita por Henri Pierre Jeudy em sua obra “O espelho das cidades”, onde o autor afirma que “a cidade não pára de se expor, o que não é idêntico ao fato de que se pode expô-la”.  Você conhece a experiência do OP, você pode participar de suas assembleias, estar organicamente presente em uma reunião, mas mesmo assim, as formas d pensar a experiência do OP, de representa-lo como movimento, se cristalizam nas imagens restantes, nos documentos e memória de seus participantes. Será possível, como faz Jeudy, da mesma forma que somos capazes de comparar megalópoles entre si em suas semelhanças, fazer algo semelhante com a experiência de OPs de diversos países? Porto Alegre-OP ou OP-Mundo? Porque centenas de pesquisadores e turistas tem curiosidade pela experiência de Porto Alegre, de vir aqui, de trocar se não porque a experiência de POA-OP se transformou em OP-Mundo? Um memorial do OP deverá guardar espaço para apontar as semelhanças e diferenças dos OP de POA e do Mundo, pelo seu modo de construção, os resultados de suas demandas, as semelhanças ou diferenças nas intervenções do estado, como se o OP só pudesse se mostrar também nesse movimento de expansão e internacionalização. A descoberta do espaço do OP, espaço exterior de uma experiência local, também é importante. Você põe fazer isso em um recurso de informática? Você pode comparar imagens sem coloca-las em um espaço físico? O que se pretende com a exposição da semelhança das assembleias, por exemplo, que um memorial do OP deveria fazer, é, justamente, por sua semelhança, fazer desaparecer os limites locais, equivalência visual de uma proposta.

4.2. Um Memorial Virtual ou real

Defendo que o museu seja físico, isto é, um projeto patrimonial que envolva o espaço físico, ainda que, em função de custos, esteja prevalecendo cada vez mais a ideia digital. Andar pelos corredores de um memorial do OP sempre será uma experiência: você poderá agregar sons, imagens, recursos, tendas, cadeiras, sons, que recriam, de forma que um site web não consegue, a experiência de participar de uma assembleia. Que tipo de visitante o Memorial do OP almeja? Você pode imaginar o visitante que irá ao Memorial do OP porque já conhece o movimento.  Ele vai lá para encontrar a confirmação do que conhece

“ter o prazer de rever o que já viu”, assinala Jeudy, desejo que tem relação com a repetição. Essa procura da confirmação exige objetos, que servem como elemento de prova, e aí, no retorno a casa, o visitante poderá explicar a seus amigos seu próprio saber sobre os objetos relativos ao OP. Diz Jeudy ” frequentadores assíduos dos museus esperam sempre identificar o que não viram realmente, a partir do fundo das memórias de suas percepções habituais. Eles agem como colecionadores que se veem na expectativa de descobrir a peça que faltava em sua coleção. Eles se defrontam com a perda possível de seu desejo. E é a eventualidade dessa perda que os incita a retornar”(p.120).

Talvez seja este o ponto em que estejamos, no desejo de construção de um memorial ante o medo de uma perda. Mas entre o “ver porque vamos perder” e o “ver por ver” ou o “ver para contar aos outros ” há diferenças. Ora, um espaço para um passeio, para um “ver por ver”, é também natural, é típico da modernidade nas cidades marcada pela multidão, esse passeio ou deambulação pelas cidades também é pratica desses espaços fechados. Esse visitante está em estado de disponibilidade, é tremendamente afetado quando o memorial se transforma em obra arquitetônica e estética. Não é o Museu Guggenheim, construído por Frank Gehry em Bilbao designado por inúmeras metáforas, ” o leviatã de metal”? Com uma presença soberana, um memorial do OP se apresenta com uma forma única do movimento pensar-se a si mesmo. Um memorial do OP pode personificar o OP. A experiência das sucessivas reuniões do OP teria encontrado, no tecido urbano, uma forma de conjunto e adquirido sentido graças a uma intervenção arquitetônica.

Você precisa construir um museu novo para agregar esse sentido? Não necessariamente, o que significa que a opção digital não está excluída de imediato. Um memorial do OP pode revitalizar o espaço urbano: você pode isola-lo em uma sala do Mercado Público, como a Sala dos Conselho do OP, e dar-lhe uma função próxima; mas você pode dar-lhe um formato de exposição itinerante e leva-la aonde ocorrer o OP. Transformar um prédio histórico em memorial do OP é desejável, mas será possível à administração? Pode-se imaginar que um espaço possa ser reestruturado a partir de um Memorial – vem-me a imagem da Confeitaria Rocco, objeto de cobiça de inúmeros grupos culturais, um prédio poderia ser reestruturado a partir do memorial do OP, o que o tornaria uma máquina de fazer reuniões em torno dele. Esse culto do espaço físico pode parecer estranho aqueles acostumados às vantagens do digital, mas não é menor a necessidade de revitalizarmos espaço da capital. E se na ocupação do Cais do Porto, uma das contrapartidas das empresas contratadas fosse construir, ou adaptar, um armazém do cais para o Memorial, ou um espaço do shopping para ele? Se trata de reconhecer o quanto o OP pode mudar a paisagem urbana, não apenas por suas demandas, mas como o OP pode fazer obra de si mesmo, graças a parcerias, intervenções de artistas e intelectuais, etc.

O Memorial do OP é o esforço de agregar o OP aos novos patrimônios das cidades. Tão importante de recuperar estações antigas de trens, é recuperar o modo como uma sociedade tomava decisões coletivas. Hoje, os espaços de salões, auditórios de escolas, tudo enfim são os territórios abandonados do OP, podemos voltar a eles e ter uma espécie de alucinação, ver os corpos e gritos em suas deliberações. Se você se dispuser a imaginar um memorial, um edifício reconstituído, organizado, você sabe que não encontrará a mesma sensação de participar do movimento do OP. “Aprenderemos coisas, veremos que ali tudo está correto, em ordem, e que nenhum detalhe escapou a reconstituição. Terminaremos até sabendo “como tudo se passou” (Jeudy, p. 25). O Memorial do OP oferecerá à visita a aparência de uma ordem, essas “memórias dos conselheiros”, dos processos, das reivindicações. Ele cumpre a tarefa da transmissão, uma etnologia da urgência de transmitir o legado de uma obra. Fazemos isso para não esquecer.

Foto: Roya Ann Miller/Unplash

Foto: Roya Ann Miller/Unplash

4.3 O Memorial do OP nas lutas políticas

Não podemos deixar de considerar que uma proposta de um Memorial do OP corre o risco sempre de servir ao interesse político de ocasião. A cristalização coletiva em torno da defesa do OP como patrimônio pode permitir dar consistência a programas políticos.  As crises dos partidos de esquerda, em especial, podem ver a preservação do OP como sua tábua de salvação, preservação dos vestígios de participação popular que partidos desejam preservar como parte de sua ideologia. Mas o OP é hoje parte da memória política de um partido ou de uma sociedade? Por isso é essencial defender que a escrita da história do OP não pode ser feita sem as pessoas que o fizeram, porque o que está em jogo a transmissão de uma experiência de participação, e não as bases de uma ideologia política.  Se deixarmos a história do OP ser feita por técnicos ou políticos, estaremos impondo uma escritura da história do OP da qual seus atores serão excluídos, uma escrita feita sem elas, da qual, contudo “ainda eram testemunhas vivas, (e) essa construção da transmissão, tornara-se, na época, uma questão de todos” (Jeudy, p. 26).

Para os políticos de esquerda, é natural que a construção do OP seja feita como a defesa do patrimônio político de um partido. Isso dará um ganho considerável, faz vibrar emoções, mas se trata da reconstrução do patrimônio como elemento de identificação de um universal, a democracia participativa.  A dinâmica de apropriação é legitima se permitir apropriação por todos, e não por um partido em especial. Podemos nos perguntar de que maneira as diferentes regiões do OP, no momento em que produziam suas reuniões, suas assembleias, viam a participação dos políticos.

A lógica da conservação, que permite a existência de um memorial, é claro, cumpre função social e política, ela cobre o déficit de sentido: “o que está em vias de desaparecer deve ser magnificado”, diz Jeudy. Não é exatamente essa a sensação neste exato omento, esse retorno do espirito patrimonial que exige uma retrospectiva do OP, busca no trabalho arqueológico mostrar o ele foi, mas ele também pode ser, destruição parcial do que ocorreu. É preciso ter uma visão histórica dos vestígios, nunca política.

O patrimônio do OP se impõe como uma novidade. Ele permite legitimar as reivindicações das identidades do movimento popular em primeiro lugar, e dos movimentos políticos, em segundo. Ele é fator de fortalecimento da identidade trabalhadora, e por isso essa identidade deve ser soberana na construção do Memorial do OP. “O valor patrimonial que lhes é concedido faz um papel de “marca” – ele é garantia de autenticidade”, afirma Jeudy. Fazer a construção do Memorial do OP só tem uma via: a de reconhecer institucionalmente o patrimônio do OP como patrimônio do movimento popular. Não se trata de partidos, mas de classes sociais. O equilíbrio de um projeto a serviço dos movimentos sociais ou a serviço do partido no poder depende da construção de um projeto de memorial do OP como espaço de identidade de uma população.

Porto Alegre vivenciou no período em que constituiu o OP em uma cidade com marcada por transformações, urbanas, violência política, extermínio de participação de determinadas classes do poder. O “dever da memória” do OP é sempre uma reivindicação identitaria, “o que é preciso não esquecer” não é o papel que o partido A ou B teve na constituição do OP, é fazer com que a exposição seja fonte de prazer de reconhecimento da vitalidade do movimento social, espécie de psicanálise social que é feita para dizer que a vitalidade social continua presente se souber decidir coletivamente, se souber exercer sua cidadania. Você pode ter partidos no poder que exploram a identidade de uma classe social, fazem promessas a ela, se comprometem em exibir apenas resíduos de suas ideologias como que fazendo uma lobotomia (Jeudy) nas memorias coletivas o que “teria com toda certeza provocado um desastre coletivo” (p.28).

Conclusão

O ato de consagração do OP em um memorial pode parecer salvador, mas conseguirá manter o apreço coletivo que lhe deu origem? O patrimônio do OP, essa matéria prima com a qual se quer produzir o Memorial do OP, visa mostrar algo que ninguém quisera ver, como o OP foi reduzido a domesticação de um movimento. É isso que acontecerá se o Memorial do OP for entregue somente a técnicos, a museólogos, etnólogos e conservadores, é preciso que participem os atores, pois eles são capazes de expor a intensidade vivida, que o memorial do OP deve transformar em história. É preciso que toda criança, quando visitar o Memorial do OP, veja a grandeza dos cidadãos de Porto Alegre que foram capazes de tomar decisões de forma democrática e participativa, essa e sua grandeza, objeto de veneração, e por isso é mostrado como no passado recente seus cidadãos organizavam-se, que recursos tinham, que instrumentos dispunham. É preciso que o patrimônio do OP seja capaz de impor sua própria estética, as demandas do OP adquirem legitimidade como as obras estéticas, traduzem em beleza um savoir-faire.

Poderão haver encenações das memórias do OP, de alguma maneira, até perturbadora para os políticos de plantão. Mostrar que houve momentos de conflito dos integrantes do OP com seus administradores não tem nada de vergonhoso para o Prefeito de ocasião, e mesmo que uma exploração política tenha sido feita do movimento, é preciso entender que um projeto de memorial do OP exige uma reflexão ética. Haverá um eco museu do OP? Uma assembleia com laser, células fotoelétricas numa com robôs que, com seus gestos pré-programados, repetem os movimentos de representantes do OP? Será possível reconstituir uma experiência do processo do OP?

Bibliografia

HUYSSEN, Andreas. Culturas do  passado presente. Rio de Janeiro, Contraponto,  2014.
____En busca del futuro perdido. Buenos Aires, FCE, 2001
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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