O que temos que aprender com o Chile

Coluna Processo Penal em foco

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Santiago - Chile Foto: B1mbo/Wikipédia/CC

Santiago – Chile
Foto: B1mbo/Wikipédia/CC

Grande experiência com os Chilenos

Estivemos semana passada, eu e outros Professores de Direito Processual Penal do Brasil, em Santiago do Chile. Foi uma grande experiência proporcionada pelos Centro de Estudios de Justicia de la Américas – CEJA, Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM e Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBRASPP. Participamos do “Programa de Herramientas para la Implementación de un Sistema Acusatorio en Brasil.” Foi uma grande oportunidade para todos nós aprendermos com os Chilenos.

Tivemos, inicialmente, acesso a um panorama geral da reforma na Justiça Penal na América Latina, especialmente desde a experiência da reforma processual penal no Chile. Neste primeiro momento, privilegiou-se estudar o Sistema Acusatório na América Latina, a partir de suas raízes histórico-políticas até os principais desafios a serem enfrentados na atualidade.

Conhecemos também a função do Ministério Público e da Defensoria em um Sistema Acusatório, identificando, para além do Processo Penal, métodos de trabalho, controle de gestão, relação com a Polícia, sistema de contratação dos profissionais, etc. Também sob este enfoque, vimos a organização dos Tribunais Chilenos e a gestão judicial, tais como a abrangência do papel do Administrador do Tribunal ou Diretor do Escritório Judicial (que não são Magistrados) e as principais características do modelo de gestão dos novos Tribunais na América Latina.

Tribunal Chileno Fonte: Gobierno de Chile/Prensa Presidencia

Tribunal Chileno
Fonte: Gobierno de Chile/Prensa Presidencia

Foi demonstrado, de maneira teórica e prática, como se estrutura um Processo Penal mediante audiências, inteiramente oral e se caracterizando por três etapas: a audiência de formulação de imputação (que seria a nossa audiência de custódia); a de controle de acusação (equivalente a um juízo de admissibilidade da acusação) e a do julgamento do mérito (denominada “Juicio Oral”).

Também foram abordados os principais problemas na prisão preventiva na América Latina, propondo-se uma agenda de trabalho, a fim de, por exemplo, identificar as vantagens de possuir uma vara de acompanhamento de medidas cautelares, também conhecidos como “escritórios de serviços prévios ao juízo.“

Por fim, ficou demonstrada a importância da capacitação dos profissionais em uma reforma processual penal, especialmente no uso de metodologias inovadoras destinadas a servir como ferramentas para conseguir a mudança cultural que é preciso para uma reforma substancial do Processo Penal em um País. Sem esta visão, torna-se impossível que nós, atores processuais, assumamos as novas funções exigidas pela reforma.

O quão atrasados estamos

No início do curso, nos primeiros relatos, alguns ressabiados (como eu), até que ousamos discordar de um ponto ou de outro. Mas, não tardou para que compreendêssemos quão atrasados estávamos.

Os Chilenos foram muito corajosos: passaram de uma estrutura inquisitorial, como a nossa, e hoje têm um sistema acusatório invejável (nada obstante algumas falhas detectadas). Houve muita resistência, porém, com inteligência e estratégia, souberam transpor este obstáculo. Por exemplo: os Juízes que queriam continuar “velhos” seguiram trabalhando sob a égide do Sistema Inquisitivo, enquanto os demais submeteram-se a uma reciclagem para que pudessem aprender as novas regras pertinentes aos princípios do Sistema Acusatório.

Os novos Juízes, obviamente, já iniciavam as suas funções cientes e imbuídos das reformas. Os “velhos”, claro, sucumbiram, como tem que ser (“velhos”, aqui, no sentido de atrasados intelectual e culturalmente, pois não tão “velho” como um jovem que não quer aprender o novo e enfrentar desafios; e não tão jovem como um alguém, ainda que velho na idade, porém que aceita desafios e não se amedronta com o amanhã).

Ora, qual a conclusão, pelo menos minha, ao final e ao cabo do curso em Santiago: no Brasil, antes mesmo da reforma (e, fundamentalmente, depois dela) os Magistrados “velhos” têm que se reciclar. Não dá para continuar pensando como se estivessem na Idade Média, como salvadores da Pátria.

No Chile, o Juiz é Juiz e ponto. Isso foi dito para nós muito claramente algumas vezes. Se algum Magistrado tem o pendor para acusar, produzir prova, investigar, buscar a tal “verdade real”, que largue a Magistratura e siga a carreira do Ministério Público.

Aliás, eles nem entendem como isso é possível em um Estado Democrático de Direito e em um Sistema Acusatório. Não conseguem, sequer, compreender algumas perguntas que eram feitas, simplesmente porque soavam impertinentes ou incompreensíveis.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

O Juiz brasileiro precisa passar umas férias no Chile. Mas, aproveitar umas duas semanas e estudar (na teoria e na prática) como funciona a Justiça Criminal e como se lida quando alguém comete um crime e o Estado tem que o punir, desde o início da persecução penal. Tudo muito natural, “dentro da lei”, sem ódio, com imparcialidade, sabendo o papel do Ministério Público e respeitando a defesa.

Acusação e defesa ocupando o mesmo espaço

Sim, no Chile o Ministério Público tem uma responsabilidade: a investigação criminal e o ônus da prova no “Juicio Oral” (basicamente, óbvio!). Só ele. O Juiz nem quer saber disso. Dane-se a acusação (não o réu). Acusação e defesa ocupam o mesmo espaço (inclusive nas salas das três audiências). Não há essa coisa de Promotor e Procurador ficarem ao lado do Magistrado. Como? Eles são partes? Ah, lá também não se usa toga e todos, nada obstante, respeitam-se. O pronome de tratamento é muito cortês. Não é esnobe, como aqui.

A oralidade é algo especialmente privilegiado. Os debates dão-se imediatamente, entre o Ministério Público e a Defesa, sem deslealdades e frente aos Juízes. Tudo é decidido na mesma audiência. Não há pedido de vistas. Todos estão preparados para resolverem quaisquer questões jurídicas surgidas durante a audiência. O contraditório estabelece-se na audiência de maneira muito transparente. O Ministério Público respeita a Defesa, compartilhando a prova, inclusive. Não há ocultação de provas, tampouco espaço para vaidades. Tudo é muito sereno e respeitoso. Cada um cumpre o seu dever.

O acusado é muitíssimo respeitado, aliás. Sabem qual é a última pergunta que o Juiz faz antes dos debates? Se o réu tem algo a dizer? Sim, claro, afinal de contas, o acusado tem que ser o último a falar, ou não? Seja o que for.

Foto: Jose Cruz/Agência Brasil

Foto: Jose Cruz/Agência Brasil

Não adianta mudar a lei se não mudamos a cultura

Como também foi dito no Chile, muitas vezes, não adianta mudar a lei se não mudamos a cultura. A nossa cultura é inquisitiva, porque a nossa colonização é portuguesa, europeia. Os nossos Juízes são inquisidores e o nosso Ministério Público tem uma visão inteiramente distorcida do garantismo penal. Assim, será que uma mera reforma processual penal no Brasil vai mudar algo? Bem, eu que não creio peço a Deus que mude.

Para concluir, um recado de um Chileno:

“Cuántas cosas quisiera decir, hoy, brasileños, cuántas historias, luchas, desengaños, victorias que he llevado por años en el corazón para decirlos, pensamientos y saludos. Saludos de las nieves andinas, saludos del Océano Pacífico, palabras que me han dicho al pasar los obreros, los mineros, los albañiles, todos los pobladores de mi patria lejana. (…) Voy a decirles que no guardas odio. Que sólo quieres que tu patria viva. Y que la libertad crezca en el fondo del Brasil como un álbol eterno. Yo quisiera contarte, Brasil, muchas cosas calladas, llevadas estos años entre la piel y el alma, sangre, dolores, triunfos, lo que deben decirse los poetas y el pueblo: será otra vez, un día.” (Pablo Neruda, Canto General, Chile: Pehuén Editores, 2014, p. 174).

 

 

Rômulo de Andrade MoreiraRômulo de Andrade Moreira é Articulista do Estado de Direito – Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

 

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