Brasília 50 Anos: da Capital a Metrópole

Coluna Lido para Você

Brasília 50 Anos: da Capital a Metrópole. Aldo Paviani (Org). Coleção Brasília. Brasília: Editora UnB, 2010, 490p.

Brasília, “meta síntese” do programa de governo Kubitschek representou, simbólicamente, a realização da proposta desenvolvimentista de “crescimento e integração nacional”. Sua construção respondeu à necessidade de interiorização do processo de desenvolvimento, cumprindo a nova capital papel de integração entre regiões e de abertura de novas frentes de expansão econômica.

Foto: Reprodução/Arquivo Público – ABr

A “marcha para o oeste” da análise de Cassiano Ricardo ganhou  realidade com o plano de metas, no qual a “fundação de Brasília é um ato político cujo alcance não pode ser ignorado por ninguém. É a marcha para o interior de sua plenitude. É a completa consumação da posse da terra. Vamos erguer no coração do país um poderoso centro de irradiação de vida e de progresso”. Juscelino defende assim o projeto de construção da cidade: “Não é possível deter a marcha de Brasília sem prejudicar todo um conjunto de providências tendentes a mudar a fisionomia do país; sem adiar uma transformação nacional que se impõe seja feita com urgência”.

A cidade capital politicamente projetada se realiza, portanto, na forma de um sistema urbano que instala, objetivamente, a centralização de poder na cidade que emergiu como a capital do modelo de Estado garante do processo capitalista de acumulação na concepção desenvolvimentista.

Desse modo, o imaginário idealizador da cidade na configuração de uma alternativa de vida urbana democrática e participativa encontrou seu limite nas condições da sociedade capitalista, injusta e desigual. O próprio sucesso do desenvolvimento urbano da cidade gradativamente desarticulou a lógica da utopia original e operou a segregação das camadas populares reorientando o espaço urbano com a estratificação das classes sociais na península e nas cidades satélites. Esta, aliás, era a previsão de Lúcio Costa, conforme indicou o urbanista no Relatório do Plano-Piloto de Brasília, ao se referir ao “plano para uma capital administrativa do Brasil”, pensada como uma cidade de tamanho limitado, cujo crescimento “após 20 anos de fará (a) pelas penínsulas e (b) por cidades satélites”.

Obra “Brasília 50 Anos: da Capital a Metrópole”.

No livro Brasília 50 Anos: da Capital a Metrópole, novo volume da Coleção Brasília da Editora UnB, organizado por Aldo Paviani e contendo estudos de um expressivo grupo de estudiosos de Brasília e de seu processo de urbanização, a vocação estratégica da cidade como polo de desenvolvimento é o ponto de partida para a análise do planejamento, produção do espaço e ambiente da cidade que se transformou em metrópole no transcurso de meio século. Integra o livro, análises sobre os dilemas e desafios dessa experiência de metropolização e a projeção de cenários urbanos de futuro para a Brasília metrópole.

O livro traz o selo da Comissão UnB 50 Anos de Brasília. Ele faz parte, por conseguinte, da mobilizadora disposição da Universidade de Brasília de pensar a cidade e de pensar-se na cidade no ano de seu jubileu. A própria matéria do livro foi objeto de seminário realizado sob os auspícios da Comissão, com o mesmo título da coletânea. Nesta ocasião os autores submeteram a debate público os temas que seriam posteriormente transformados em unidades do livro, mantida a natureza interdisciplinar das aproximações analíticas desde diferentes campos: o urbanismo, a economia, a geografia, a arquitetura, a história, a demografia, a cultura e a filosofia.

Contribuem para a edição, além do iniciador da série que constitui a Coleção Brasília, Aldo Paviani, os corrdenadores das unidades e também autores, Ignez Costa Barbosa Ferreira, Lúcia Cony Faria Cidade, Sérgio Ulisses Jatobá e Frederico Flósculo Pinheiro Barreto e os demais autores, todos expoentes em suas áreas de interpretação da cidade: Júlio Flávio Gameiro Miragaya, Antonio Carlos Cabral Carpintero, Ana Elisabete Medeiros, Neio Lúcio de Oliveira Campos, Suely Franco Netto Gonzáles, Marília Luiza Peluso, Luiz Alberto Campos Gouvêa, Cristina Patriota de Moura, Benny Schvasberg, Rafael Sanzio Araújo dos Anjos e Eugênio Giovenardi.

O livro demarca, além disso, a necessidade de uma clara relação entre espaço e política, em Brasília, sobredeterminada pela condição de cidade-capital e pelas contradições da origem do projeto de construção que produziu e continua a produzir tensões dialéticas e conduziu a uma dinâmica criativa de soluções peculiares, algumas das quais avaliadas nos textos da nova publicação.

Em Brasília, com efeito, para aprofundar essa relação, não se deve perder de vista o dinamismo e as implicações que os movimentos populares conferem às suas ações de auto-organização e mobilização e que assinalam um campo próprio de exercício da cidadania,  conferindo ao projeto histórico da cidade uma dimensão humanizadora da política.

Foto: Arquivo/Agência Brasil

O projeto da cidade segue um plano ideológico que se expressa como apelo mitológico eficaz para organizar os vínculos de solidariedade à proposta de construção. Porém, o sistema urbano que pretende instalar realiza, objetivamente, a centralização de poder, na cidade que emerge, como a capital do modelo de Estado garante do processo capitalista de acumulação na concepção desenvolvimentista.

A percepção da cidade como pano de fundo de uma realidade reelaborada pela História pressupõe desvendar a ambiguidade que a encerra nesta dupla perspectiva. A associação que aparece entre heroísmo e “bandeirantismo” algumas vezes como elemento central deste plano ideológico, e que vai servir de parâmetro para as categorias “pioneiros” e “candangos” criadas durante o processo de construção da capital, permeia o discurso de Kubistchek como afirmação analógica do caráter épico do empreendimento nacional: “o que agora estamos fazendo é fundar a nação que os bandeirantes conquistaram. O esforço que Brasília representa é exatamente o de integrar na comunhão brasileira, brasileiros e territórios que nada hoje influem no progresso e na riqueza deste país (…) E o que lhes quero dizer é que a mentalidade que eles (os bandeirantes) deixaram, felizmente, não apareceu no Brasil, e aqueles que quiserem percorrer milhares de quilômetros para conhecer o que o governo está realizando no coração do Brasil, irão encontrar o mesmo espírito e a mesma decisão daqueles que há mais de três séculos começaram a desafiar o mistério insondável deste imenso continente”.

O contexto da fábula desdobra a imaginação, assim, tanto como imaginário que veicula ideologias como imaginário que investe na apropriação (do tempo, do espaço, da vida fisiológica, do desejo), instaurando proposições sobre estilo de vida, modo de vida na cidade e desenvolvimento urbano, numa experimentação da utopia. “A concepção urbanística da cidade propriamente dita – relata Lúcio Costa – não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como no entender de cada concorrente uma tal cidade deve ser concebida”. Ele prossegue: “ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como “urbs”, mas como “civitas”, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. E, para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de uma certa dignidade e nobreza de intenção, porquanto dessa atitude fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o desejável caráter monumental. Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido de expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa. Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além do centro do governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país.

O imaginário idealizador da cidade na configuração de uma alternativa de vida urbana democrática e participativa encontra seu limite nas condições da sociedade capitalista, injusta e desigual. O próprio sucesso de desenvolvimento urbano da cidade gradativamente desarticulou a lógica da utopia original e operou a segregação das camadas populares reorientando o espaço urbano com a estratificação das classes sociais na península e nas cidades satélites.

A instalação do complexo aparelho burocrático na capital, definindo nitidamente a sua vocação administrativa, serviu ao projeto populista de mediação alienante das relações sociais pelo Estado. De acordo com Chico de Oliveira: “a harmonia das esferas que parece reinar na cidade contrasta violentamente com os diversos grupos sociais que a habitam, ou mais especificamente com o grupo social do funcionalismo público. Concebida dentro da mais rigorosa urbanística que procurava apagar as diferenças entre cidade e campo, entre trabalho e lazer, entre divisão social do trabalho e alienação, mas habitada por grupos sociais cuja especificidade repousa em que o seu trabalho é pago pelo não-lazer das classes trabalhadoras, em que seu trabalho é uma monótona divisão apenas técnica dentro do aparelho do Estado – o coração da alienação –, incapazes de recuperar dialeticamente a unidade natureza-homem, a cidade transformou-se numa espécie de desterro para aqueles que são obrigados a viver lá, algo assim como o tempo indefinível e não-mensurável mas que se sabe finito do Purgatório. Depois, a aposentadoria, a volta ao Rio, a volta à vida”. Ele continua: “O relógio da cidade conta as horas de um tempo politicamente mágico. Parece não haver mediação para o habitante típico da cidade entre ele e o poder: há apenas distância. Na cidade, tudo se faz por obra e graça do Estado: um toque e aparece o ginásio esportivo; outro toque e surge mais uma superquadra; outro toque e termina-se o Teatro Nacional. Ninguém é capaz de reconhcer o outro, as classes sociais, os grupos sociais produtivos, que no fundo são os que sustentam Brasília. Uma inversão de imagem, própria de certos espelhos, faz o habitante de Brasília ver os demais apenas como os intrusos candangos que sujam a limpeza urbana, ou como os remotos infelizes que habitam outras cidades e campos congestionados e poluídos do Brasil. Todo o conjunto conduz a uma alienação política sem paralelo: não é assim de estranhar que instituições como o Parlamento não signifiquem nada para o habitante médio de Brasília. Uma combinação sui generis de grupos sociais e contexto político produziu em Brasília uma despolitização cuja raiz é o caráter parasitário da cidade”.[1]

Esta perspectiva desvela o mito da criação da cidade, obra do Estado, idealizada e implantada por sua iniciativa, carregando, na origem, o simbólico da proposta de transferência da capital, atenuando o pacto populista com a força da presença estatal. A consolidação da capital serviu ao regime autoritário e prestou-se a liberar um estilo de exercício de poder em condições favoráveis ao tratamento técnico das questões políticas, submetidas apenas ao processo decisório do grupo que se apropriara do aparelho de Estado, prescindindo de qualquer consulta à sociedade civil.

Assim se esclarece, em parte, a observação de Chico de Oliveira (Op. Cit.) apanhada na sua inteireza:

“Fora de seus muros invisíveis, tempo e espaço são outros. Fora, a Plebe; fora, o mundo imundo; fora, Taguatinga, Ceilândia, Gama, Sobradinho, Formosa; fora o real que dá substância ao irreal de Brasília. Como nas cidades medievais, o estrangeiro é um intruso e um estranho, e o largo eixo rodoviário é uma espécie de pontão e porta da cidade, por onde entram os estrangeiros que, saltando na estação Rodoviária, dirigem-se imediatamente para o trabalho – para o mercado –, sem nenhuma outra ligação com a cidade, e que ao terminar a faina diária regressam pelo mesmo pontão-portão-eixo rodoviário aos seus lugares de residência. A contradição habita extramuros”.

O argumento procede de uma identificação redutora da relação espaço e política. Para Lia Zanotta Machado, “Brasília-cidade, antes de mais nada, tem sido caracterizada pela novidade de seu espaço urbanístico. Do espaço novo, muitos esperaram uma nova forma de solidariedade humana”. Mas, logo “este espaço novo é criticado. Paralelamente à construção do Plano Piloto foram sendo criadas as cidades-satélites, desde então distantes e separadas entre si. A progressiva valorização dos terrenos e dos imóveis foi intensificando uma clara segregação espacial das classes sociais. A monumentalidade arquitetônica foi criticada pela dimensão de sua escala, muitas vezes superior à escala humana. Tornou-se comum dizer que a cidade administrativa construiu para si um espaço adequado para o exercício pleno do autoritarismo monumental, isolacionista, porque nega aos habitantes o espaço da “rua” e das “esquinas” e porque separa “pobres” de “ricos”. Desta crítica – afirma a autora – passou-se à idéia de que Brasília é uma cidade desumanizante e composta de cidadãos submetidos e isolados. Por consequência, politicamente desmobilizados”.[2]

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Ora, a historiografia e a pesquisa recentes sobre Brasília mostram que a cidade, sem perder a sua função administrativa, vivencia a eclosão de movimentos populares e manifestações públicas, demonstrando, no plano político, a capacidade de organização e mobilização que, no passo populista, caracterizaram a luta dos brasilienses em movimentos urbanos e rurais, de categorias profissionais, de moradores e funcionários, tecendo uma história local de intensa participação pelo direito à cidade.

É claro que a cidade-capital, centro do poder político e ponto de irradiação da estratégia própria ao nível contemporâneo do desenvolvimento capitalista, determina o processo e as formas de rearticulação da sociedade civil no contexto das relações de “ordem” e “paz” necessárias à manutenção do sistema de dominação vigente na sociedade, temperando o modo pelo qual se concretizam, no seio dos efeitos sociais e das contradições devidos à pressão das massas, direitos que afloram na consciência social e que vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão até se consumarem por força de um movimento de conquista, em “espaço político” de ampliação dos horizontes da consciência histórica do direito à cidade, à cidadania (SOUSA, Nair H. B. de, Construtores de Brasília – Estudos de Operários e sua Participação Política, Vozes, Petrópolis, 1983).

A relação espaço e política, em Brasília, sobredeterminada pela condição de cidade-capital e pelas contradições da origem do projeto de construção produziu tensões dialéticas e conduziu a uma dinâmica criativa de soluções peculiares. Para Nair Bicalho, a falta de representação política foi um elemento adicional para acentuar a relação de distância entre o Estado e os cidadãos: “se na democracia populista era comum buscar a solidariedade dos parlamentares para as causas sindicais e populares, no período autoritário esta possibilidade se desfez à medida que não só o Congresso não refletia uma composição de interesses de base popular, como também a atuação destes na cidade não oferecia vantagens para a disputa eleitoral”.[3]

A expansão do espaço político e a nascente vida partidária registram historicamente a tensão entre o “local” e o “nacional” que caracteriza na cidade o processo de conquista de sua cidadania. Segundo Paulo Timm, “a cidade não se acomodava muito bem neste papel (que lhe atribuía o desenho urbano). Acomodar-se-ia melhor entre 78 e 79, quando se organizam o Centro Brasil Democrático, com o apoio de todos os matizes da resistência, e o Comitê Brasileiro de Anistia, onde ao lado da questão dos Direitos Humanos começa-se a discutir ativamente a questão da representação política em Brasília, dando origem, inclusive, a alguns documentos de formulação de estratégias e concepções de representação. Foi neste contexto ainda tenso, mas muito fraterno, que emergiram as primeiras lideranças políticas de Brasília. Todas elas cumpriram o papel de costurar os vários momentos do corporativismo e agilizar politicamente a cidade na conquista de sua cidadania”.[4]

Em Brasília, o dinamismo e as implicações que os movimentos populares conferem às suas ações de auto-organização e mobilização assinalam o campo próprio de exercício da cidadania e conferem dimensão política à utopia historicamente experimentada – a condição de pólis. Conforme Coutinho: “Era intenção explícita do autor de seu plano que Brasília, além de uma moderna urbs, no seu sentido mais pragmático e funcional, fosse também uma bela e monumental civitas, digna de sua condição de capital nacional. Esta dupla exigência estaria, segundo Lúcio Costa, atendida pelas caracerísticas de seu plano vencedor. Mas havia uma outra exigência – completa Coutinho – que não poderia se conter nos limites técnicos ou estéticos de um plano urbanístico, nem poderia ser alcançada através da outorga de qualquer ato de vontade oficial. Era a exigência de que Brasíla, além de uma urbs e de uma civitas, fosse também uma pólis. Esta terceira condição só poderia ser conquistada por sua população, quando se tornasse numérica e qualitativamente significativa, maturando suas formas de organização social e desenvolvendo meios próprios que lhe permitisem enfrentar a árdua prática de sua luta cotidiana, apropriando-se da urbis e da civitas, para acrescentar-lhe, finalmente, a dimensão da pólis”.[5]

A realidade brasiliense repõe a vida política da comunidade na direção de constituir-se uma sociedade completa igual à de outras cidades brasileiras, porém, dramatiza, na sua diferenciação específica de cidade-capital, o locus da organização de um efetivo projeto de poder popular, paradigmático, capaz de incorporar processos sociais novos desenvolvidos na prática da cidadania e que remetem à relações sociais estabelecidas na dignidade igualitária e justa do desenvolvimento econômico e seus reflexos nas questões da política e do poder.

Estas são, pois, questões ainda presentes no roteiro histórico da construção de Brasília e com força interpelante no limiar de seu cinquentenário. O desafio que se coloca neste ano-jubileu é o de contribuir com respostas interpretativas efetivas a essa força interpelante que vem do protagonismo dos movimentos sociais ativos na cidade. É de sua ação instituinte que prevém a abertura de espaços, inclusive ideológicos de construção social de uma cidadania por meio da qual a intervenção consciente do sujeito coletivo instaura o processo de busca de justiça social, na dimensão de um projeto histórico de organização social da liberdade na cidade.

Foto: Commons

Um episódio ilustra este processo que em tudo traduz a idéia de direito a ter direito. No final de 2008, às vésperas do Natal, o Governador do Distrito Federal em cerimônia pública na Vila Telebrasília, uma comunidade originada de antigo acampamento do tempo de construção da cidade, outorgou os títulos de propriedade definitivos aos ocupantes históricos do velho acampamento. Quase 50 anos depois de muita luta o ato representou o momento culminante de uma história de resistência e de perseverança de uma comunidade mobilizada pela conquista do Direito de Morar.

Não é por acaso que à entrada da Vila, localizada ao final da Avenida das Nações, na Asa Sul do Plano Piloto, à beira de Lago Paranoá e defronte ao setor de embaixadas, se mantenha instalado um outdoor tosco com a inscrição singular: Aqui tem História!”. Difícil um registro igual que dê conta de uma comunidade que se reconheça na identidade de seu protagonismo histórico. Foi deste modo e em ações semelhantes nas periferias dos espaços urbanos desde os anos 1970 que movimentos sociais com crescente legitimação forjaram a agenda internacional do Direito de Morar, inscrevendo-o nas declarações de direitos (conforme a Declaração de Istambul, Habitat II, ou Cúpula das Cidades, 1996), para depois projetá-lo nas legislações de zoneamento urbano e, no caso brasileiro, na Constituição Federal, após 1988, por impulso dos movimentos sociais urbanos por moradia. A luta da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, hoje Vila Telebrasília, ganhou adensamento nesse trânsito, primeiro como ação política de movimento, depois como construção social de sentido. Destaca-se aí a vitória obtida com a promulgação da lei distrital 161/91, de autoria do Deputado Eurípedes Camargo, inicialmente vetada pelo Governador e afinal sancionada com a derrubada do veto, aliás, o primeiro veto derrubado na história da Câmara Distrital.

Mas a principal vitória da comunidade deu-se no campo simbólico. Refiro-me ao enfrentamento da objeção de fixação da Vila, prevista na Lei 161, apoiada no discurso do tombamento do Plano Piloto como forma seletiva de apropriação da cidade. O protagonismo social abriu uma outra perspectiva para articular formas de apropriação e de uso da cidade e para constituir alianças para garantir essa apropriação como direito de inclusão social não previsto no projeto.[6]

Foi nesta circunstância que a Comunidade da Vila inscreveu no Plano de Brasília a dimensão social que lhe faltava. E, assim, para além das escalas arquitetônica, monumental e bucólica que atribuem a Brasília a sua condição de urbs e de civitas, bela, moderna e funcional,  lhe conferiu a dimensão de verdadeira polis, esta sim obra do povo organizado para atribuir a Brasília a escala humana que a realiza como cidade.

Volto ao livro, para o qual, na qualidade de Reitor da UnB. à época, elaborei o prefácio. E o faço para reintegrar à leitura de então, um elo entre o seu alcance e uma contribuição ao discurso de apropriação do conceito de Brasília, histórico e social. O livro demarca, também por isso, a necessidade de uma clara relação entre espaço e política, em Brasília, sobredeterminada pela condição de cidade-capital e pelas contradições da origem do projeto de construção que produziu e continua a produzir tensões dialéticas e conduzir a uma dinâmica criativa de soluções peculiares, algumas das quais avaliadas nos textos da nova publicação.

Referências: 

[1] OLIVEIRA, Chico, Brasília ou a Utopia Intramuros, in Cadernos de Debates 3, O Banquete e o Sonho – Ensaios sobre Economia Brasileira, Editora Brasiliense, São Paulo, 1986.

[2] MACHADO, Lia Zanotta. Brasília na Constituinte, Caderno Especial do Jornal de Brasília, Brasília, 15/11/1987.

[3] SOUSA, Nair H. B. de, Relatório do Sub-Projeto “Memória…”, op. Cit.; COUTINHO, José Carlos C., “Pólis” aos 30, in Brasília na Constituinte, op. Cit.; “Curiosamente, a conquista do espaço político em Brasília deu-se de modo coerente com o espaço urbano e com o espaço cívico a cidade. Mais com aquela do que com este, onde as injunções da tutela autoritária se fizeram sentir mais fortemente. Mas, as tensões dialéticas que se estabeleceram entre essas três ordens de espaço produziram uma dinâmica criativa de soluções originais, capazes de superar dificuldades e obstáculos que muitas  vezes uma oferecia à outra. Assim é que aqui a expansão do espaço político não se deu pela via convencional dos partidos e demais canais por onde normalmente flui a vida política mas, através de organizações comunitárias ou profissionais que, não raro, produziram lideranças autênticas e embriões da ora nascente vida partidária. Entre elas não devem ser esquecidas as mini-prefeituras, as associações de moradores, os supra-comitês, frentes, etc., além das associações de servidores, entidades profissionais e sindicatos”.

[4] TIMM, Paulo, O Esforço para Resgatar a História de Brasília, in Brasília na Constituinte, op. cit.; ver também, Fundação Banco do Brasil. Memórias do Distrito Federal. A Luta pela Autonomia Política, Brasília, 2009.

[5] COUTINHO, José Carlos C., op. cit

[6] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Sergio Antonio Fabris Editor/Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União do DF, Porto Alegre, 2008; CARVALHO, Moisés Nepomuceno. Pluralismo Jurídico: Os Movimentos Sociais como Novos Paradigmas de Juridicidade – a Experiência da Vila Telebrasília. Monografia de conclusão de Curso de Direito. Brasília: Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília, 2001.

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
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