Aplicabilidade da astreinte nas dívidas de fazer e de dar (Parte II)

Já tivemos a oportunidade de verificar que o mecanismo coercitivo da multa por atraso no cumprimento (astreinte) encontra aplicabilidade tanto em sede das dívidas de fazer infungíveis como das fungíveis. Resta examinar, agora, o seu cabimento no que concerne às dívidas de dar. O intuito permanece o mesmo: demonstrar como por trás dos detalhes, por trás de dispositivos insuspeitos, na parte mais inicial (e iniciática) do Direito das Obrigações e do Direito Processual Civil, escondem-se complicadas estruturas e processos jurídicos que precisam ser decifrados em sua plenitude.

Inicialmente, vale lembrar que a figura da astreinte é abordada no CPC/1973 nos artigos 287, 461 §§ 2º a 6º, e 645 (o penúltimo artigo encontrando correspondência aproximada nos artigos 500, 537, 536, § 1º, e 139, IV CPC/2015; e o último, correspondência aproximada no art. 814 CPC/2015 – não se podendo deixar de destacar que o novo diploma abandona de vez a expressão “multa diária”, evidenciando que a periodicidade pode ser outra; aliás, pode até mesmo não haver periodicidade, mas aplicação de uma só vez).

A disciplina básica para o cumprimento de sentença relativa a dívida de dar, por seu turno, está localizada no art. 461-A CPC/1973 (artigos 498 e 538 CPC/2015).

Assim, indagar se a multa coercitiva pode ser utilizada também com relação às dívidas de dar pode parecer questionamento singelo, mas dá margem às seguintes observações pela doutrina: “a imposição judicial de multa cominatória para o descumprimento das obrigações de dar é incompatível com estas, conforme a súmula 500 do STF, salvo se houver, conjuntamente à obrigação de dar, obrigações acessórias de fazer, como decidiu o STJ em caso de seguro-saúde (REsp 205.895)” (Paulo Lôbo, Direito civil – Obrigações, 2011, p. 113); “é agora permitido ao credor perseguir a coisa devida (…) Perdeu efetividade, portanto, a Súmula 500 do Supremo Tribunal Federal, que tinha a seguinte redação: ‘Não cabe a ação cominatória para compelir-se o réu a cumprir obrigação de dar’” (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil esquematizado I, 2014, pp. 478-479).

Qual a resposta correta? (Isto é, qual a resposta mais adequada ao sistema como um todo? A mais eficiente? A dotada de maior justidade?). Ora, nos problemas envolvendo classificações das obrigações, a busca pela resposta certa passa pela verificação da utilidade no estabelecimento de distinções entre os regimes jurídicos das espécies (no caso, dívidas de fazer e dívidas de dar). Da mesma forma, se a perspectiva adotada é a da dogmática jurídica, a resposta deve ser capaz, contemporaneamente, de resolver algum problema prático, concreto.

A base legal inicial para a aplicação da astreinte em sede de dívidas de dar existe. Ela é dada pela regra do art. 461-A, §3º CPC/1973, que manda aplicar à ação que tenha por objeto a entrega de coisa o disposto nos §§ 1º a 6º do art. 461 – inclusive as medidas de apoio do §5º, como a multa coercitiva (o art. 538, §3º CPC/2015, de igual modo, prescreve que se aplicam ao procedimento previsto para o cumprimento de obrigação de entrega de coisa, no que couber, as disposições sobre o cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer).

Mas a multa, no caso das dívidas de dar, resolverá mesmo algum problema concreto? Afinal, não se pode esquecer o princípio (ou postulado) da menor agressão possível à esfera jurídica do devedor, e os opositores do cabimento da astreinte dirão que já há dois mecanismos eficazes predispostos para o cumprimento específico das dívidas de dar: o mandado de busca e apreensão (para os bens móveis) e o mandado de imissão na posse (para os bens imóveis) – cf. art. 461-A, § 2º CPC/1973; art. 538, caput CPC/2015 –, o que tornaria a figura da multa desnecessária, aqui.

Pode-se pensar, porém, em pelo menos uma hipótese (nada desprezível) na qual o mecanismo da multa coercitiva será fundamental à busca da satisfação do credor: quando o devedor estiver ocultando a coisa móvel, inviabilizando a sua busca e apreensão pelo oficial de justiça. Nesse sentido, acertadamente, Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil IV, 2009, p. 543. Não se dirá, em situações como essa, que não existe justa causa para se permitir ao credor de dívida de dar o acesso à medida da multa, para a adequada realização do seu direito material por meio do processo civil.

Em suma, submetida a questão ao teste de necessidade e de adequação sistêmica, impõe-se a conclusão de que a astreinte também pode ser empregada no campo das dívidas de dar.

E assim encerramos por hoje. Daqui a um mês, variando um pouco o enfoque, abordarei um daqueles temas a que me refiro como grandes temas subjacentes ao pensamento jurídico. Até lá!

Marcel Edvar Simões

Procurador Federal, Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA em São Paulo. Bacharel e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil. Membro do IDP, do IBDCivil e da ADFAS.

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