O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal

Coluna Lido para Você

cabeçalho

O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal. O direito achado no cárcere. Eduardo Xavier Lemos. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2014, 200 pp.

 

Livro "O pluralismo jurídico na omissão estatal"

Livro “O pluralismo jurídico na omissão estatal”

O livro ora editado, sob os auspícios da sensibilidade editorial de Núria Fabris Editora, é originado da dissertação de mestrado defendida pelo autor na Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília. Da apresentação original – “O Direito Achado na Rua, Pluralismo Jurídico, Teoria Crítica dos Direitos Humanos e a Luta por Direitos no Presídio Regional de Pelotas”- a obra conserva a estrutura de três capítulos, nos quais se propõe estudar a reivindicação de direitos no sistema prisional a partir das teorias pluralistas do direito e da teoria crítica dos direitos humanos.

Em seu trabalho, o autor percorre com precisão, o roteiro disciplinado sugerido por Roberto Lyra Filho, para orientar as tarefas do pensamento forte mas socialmente engajado: “ater-se ao ângulo prático, no sentido de prática científica e ligação com a prática social, de onde emerge o discurso epistemológico mais enfibrado”. É nessa condição que o trabalho escapa à derrapagem comum em estudos com o arranque que nele se surpreende, para não cair nos erros comuns advertidos pelo grande pensador na face criativa de suas análises criminológicas (Roberto Lyra Filho, Carta Aberta a um Jovem Criminólogo: Teoria, Práxis e Táticas Atuais, Revista de Direito Penal, vol. 28 Forense, Rio de Janeiro, 1980, págs. 5 a 25).

O estudo parte da análise do pluralismo jurídico, perspectiva teórica adotada pelo autor. Dessa forma, seu primeiro capítulo estrutura-se pelas definições das teorias pluralistas do direito, traçando as características gerais da gênese da teoria.

A perspectiva inicial deriva da obra de Boaventura de Sousa Santos,  objeto de revisão bibliográfica desde  os estudos de doutoramento do sociólogo português, cuja pesquisa empírica realizada em uma favela brasileira em meados dos anos de 1970, vem a se constituir numa virada teórica para a retomada do tema  do Pluralismo Jurídico.

No mesmo caminho, a análise segue pelos debates que Boaventura realiza ao longo das décadas seguintes, procurando caracterizar a matriz pluralista de direito na pós-modernidade.

O primeiro capítulo segue ainda a abordagem do pluralismo jurídico, agora em uma perspectiva posterior, a partir dos estudos de Antonio Carlos Wolkmer, que foi, aliás, membro da banca examinadora. A partir das publicações iniciais desse autor, têm-se que a teoria pluralista, realiza inúmeras contribuições e traz novas caracterizações e conceitos para o pluralismo jurídico, num enquadramento de matriz comunitário-emancipatória em diálogo com as filosofias de libertação.

Em um terceiro momento, o livro avança para o  estudo do Direito Achado na Rua, do Humanismo Dialético e do Direito como Liberdade,  teorias com matriz na Universidade de Brasília, com foco também pluralista e com escopo voltado aos sujeitos sociais, que procura atribuir reconhecimento às reivindicações jurídicas de espoliados e oprimidos, vistos como sujeitos coletivos reais protagonistas da construção social do Direito.

O segundo capítulo do livro cuida de uma revisão bibliográfica da obra de Joaquin Herrera Flores, autor espanhol da teoria crítica dos Direitos Humanos. Ao longo do estudo, são debatidos os conceitos teóricos que caracterizam os principais aspectos desta importante e complexa teoria, traçando uma abordagem geral e panorâmica da teoria, procurando explicitar a obra de Joaquim Herrera ao longo do capítulo.

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

O terceiro e último capítulo é uma pesquisa empírica, onde a partir da metodologia de entrevista, o autor insere-se no Presídio Regional de Pelotas e entrevista os apenados, captando então a voz e o sentimento dos aprisionados, suas aflições, seus problemas, suas angústias.

O trabalho empírico procura conectar a partir da malha teórica traçada ao longo do trabalho, ou seja,  as  teorias pluralistas e a teoria critica dos direitos humanos com a realidade prisional dos  apenados.

Trata-se, pois, de um capítulo onde teoria e práxis se comunicam, e o autor apresenta o que denominou de reivindicação de direitos no sistema prisional, ou Direito Achado no Cárcere, do sofrimento dos apenados, da omissão do estado, o autor procurou encontrar uma teoria de direitos.

Esse clamor por necessidades essenciais que foi apresentado no capítulo terceiro, que é a luta por uma vida mais digna, o processo de libertação, ou direito achado no cárcere, foi detectado ao longo das declarações dramáticas dos apenados, seja em seu clamor por um judiciário mais justo (justiça), seja pela presença mais marcante do Estado, oferecendo médicos, psicólogos e professores, além de outros bens que apareceram nas palavras dos detentos, muitas vezes como revolta.

É o homem revoltado de que fala Albert Camus, lembra o autor, uma espécie de proto-cidadão, irrompendo-se contra a opressão, para tornar-se sujeito na história:

A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de que ser coletivo, é a aventura de todos. O primeiro avanço da mente que se sente estranha é, portanto, reconhecer que ela compartilha esse sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre com esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo. O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos. (CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. São Paulo, Record, 2011, p. 35).

Não obstante ao sentimento de revolta, o estudo contido neste livro detectou, também, essa “peste” reivindicadora de direitos, tomando o mesmo critério do autor argelino com os limites dessa reivindicação, qual seja: até onde se pode considerar tal insurgimento dos aprisionados válido. Nesse contexto remarca o autor, Camus expôs:

O verdadeiro drama do pensamento revoltado finalmente se revela. Para existir, o homem deve revoltar-se, mas sua revolta deve respeitar o limite que ela descobre em si própria e no qual os homens, ao se unirem, começam a existir. O pensamento revoltado não pode, portanto, privar-se da memória: ele é uma tensão perpétua. Ao segui-lo em suas obras e nos seus atos, teremos que dizer, a cada vez, se ele continua fiel à sua nobreza primeira ou se, por cansaço e loucura, esquece-a, pelo contrário, em uma embriaguez de tirania ou de servidão. (CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. São Paulo, Record, 2011, p. 34-35).

É assim que o autor, fixando-se ainda em Camus, encontra o “parâmetro que limita a revolta, que é o potencial libertário da reivindicação de direitos”.

Para o autor do livro, conforme a sua tese: “Esse grito de socorro, clamado pela voz dos detentos nas entrevistas, não pode ser negado, omitido dos bancos acadêmicos do direito, pois se tem aqui cidadãos, exemplificados nesse estudo de caso, mas espalhados pelos presídios de todo o Brasil, com direitos negados, sem efetividade de direitos, sem “direito achado no cárcere”.  Uma vez que na rua não estão, pois cometeram delitos e cumprem suas penas privativas de liberdade, porém se encontram com sua condição de cidadania negada, seus direitos humanos omitidos, sem resposta, sem escuta.

Mais que isso, nota-se nessas entrevistas que em decorrência dessa negação, uma brasa surge motivada pela cegueira da deusa Themis que opta por vendar seus olhos. Brasa esta que se espalha entre os demais aprisionados, que se comunicam entre si, gerando uma fogueira de insurgência, de reivindicação e de clamor por direitos, oriundos da opressão, da violência e da dor.

Como já mencionado anteriormente, nem sempre essa insurgência vai ser a expressão coletiva organizada e participativa, mas ela deve ser ouvida, pois é um grito de socorro”.

É aí que radica, a meu ver, como um achado que vai transparecer da leitura engajada que o livro apresenta, algo que resta inarredável, que seu autor capta e toma como referência, a partir do que anotei em outro lugar (Sousa Junior, José Geraldo de, Idéias para a Cidadania e para a Justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2008, pág. 92): “Uma facção criminosa não é um movimento social. Porém, é fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas, os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício”.

O livro, que foi publicado no ano de 2014, tanto no decorrer de sua pesquisa empírica, quanto em sua análise de fechamento, já prenunciava as agravantes rebeliões prisionais que recentemente sensibilizaram o país, seja por trabalhar com o tema da insurgência e rebeldia sempre à fundo quando da entrevista feita aos aprisionados, ou por perceber a presença das facções criminosas e de como é a paradoxal relação do direito com as mesmas.

Ademais, é através da denúncia do ultrapunitivismo estatal que o autor do livro faz a leitura das rebeliões acontecidas em janeiro de 2017:

Ressalto que é o primeiro aspecto a ser mencionado para entender a questão das rebeliões é a omissão estatal que causa tamanha inconsistência no sistema penal, pois o que se vê hoje em dia é um Estado que negligencia totalmente sua mão social, e infla-se erroneamente na mão punitivista, isto é, pune muito e de forma errada, pelos crimes errados, com penas equivocadas, de maneira retrógrada e não utilizando os instrumentos inovadores (e outros nem tão inovadores), que permitiriam a modernização do sistema de punição do país. (XAVIER LEMOS, Eduardo. As Rebeliões Prisionais na Região Norte do Brasil: a face oculta e sórdida do neoliberalismo brasileiro. Revista Carta Maior. São Paulo, 10 de Janeiro de 2017)

Não há de se olvidar que as esferas dos poderes brasileiras efetivam um discurso contradito, talvez proposital, queixando-se dos altos índices e do cárcere lotado, denunciado o sistema penal estiolado, com taxas de mortalidade desumanas e condições de sobrevivência que não são dignas da pior masmorra medieval, no entanto, na primeira oportunidade verborram que o país é exemplo de impunidade e que as penas não são aplicadas, tornando assim os órgãos estatais em esfera potencializadora de discursos policialescos e punitivistas.

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Mais que isso, não percebem que o populismo penal midiático trazido para o executivo, legislativo e judiciário, por meio dessa postura contraditória dos membros dos três poderes, fez com que o Brasil esteja próximo de 1 milhão de pessoas encarceradas (711.463 pessoas, cf. http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios), quando se faz necessário que àqueles que ocupam posição decisória olvidem-se da demagogia e da omissão e percebam que somente uma postura desencarceradora do judiciário, do executivo e do legislativo pode refletir em penas mais humanas, mais justas e proporcionais.

As decisões populistas, midiáticas e demagógicas, sob a falsa alcunha de igualdade para o mal, reduzindo direito para todos, piorando condições carcerárias e processuais para todos transformou o Brasil em um dos países com mais alto índice prisional em todas nações, o que não é motivo de orgulho.

O livro, através da percepção de pessoas enclausuradas sobre o sistema, demonstra que o cárcere como projeto jurídico ressocializador, nada mais faz do que violar leis e valores que deveria na verdade defender. Trata-se assim de uma instituição que reproduz e intensifica a violência, e que por meio da omissão do estado, no particular contexto brasileiro serviu para formação e consolidação de facções criminosas, que cooptam, coagem e violentam jovens pessoas aprisionadas que jamais cogitaram ter qualquer relação com tais organizações criminosas antes de sua inserção no cárcere, o fazendo por mera questão de sobrevivência.

Dessa forma, percebe-se que o “projeto iluminado ressocializador de segregar o ser humano para posterior retorno triunfal a sociedade” nada mais fez do que aprofundar e consolidar a marginalidade e violência urbana, uma vez que as organizações criminosas regressam às comunidades instituindo o terror através de seu costume delinqüente.

Em síntese, as recentes e bárbaras rebeliões que chocaram o país, cuja tensão e aflição do aprisionados demonstra-se nessa obra, bem como o fortalecimento de facções criminosas, estão diretamente conectados com essa política criminal que pune desmedidamente os cidadãos, infla os presídios a partir da omissa mão do Estado (p. 192) em seu viés social e carrega seus cartuchos em sua mão punitiva.

Tal pensamento ultrapunitivista faz com que cada vez mais o rancor dos excluídos seja acumulado, expandindo um sentimento violento que só será posteriormente exorcisado em rebeliões que tendem a ser cada vez mais violentas, pois nada mais são que um grito desesperado de socorro (pp. 179-180) de cidadãos em altíssimo grau de opressão, que bem da verdade o Estado Brasileiro apesar de tê-los “sob sua tutela”, finge que sequer existem, tratando os presídios como um depósito de seres vivos (abaixo da linha da dignidade, e portanto, da condição humana).

As reflexões não são pessimistas, mas sim reflexivas. Não há qualquer outro caminho que não seguir os direitos e garantias fundamentais para todos os cidadãos e cidadãs do Brasil, que as penas sejam mais justas, que cada vez o Estado recorra a menos presídios, que se adote um tratamento humanitário para pessoas apenadas, e que as prisões provisórias sejam devidas somente para casos extremos e necessários, de que a utilização das penas guarde proporcionalidade ao injusto, que seja posto fim ao subjetivismo judicial  (do decisor), das arbitrariedades, dos casuísmos e que se imponha uma política criminal que vise diminuir progressivamente o aprisionamento no país, para que o cárcere apenas venha a atender casos pontuais, possibilitando uma condição digna para as pessoas que estiverem sob tutela e responsabilidade do estado, e assim alcancem a  (re) inserção social para todos que venham a se desviar pelo caminho do crime.

É necessário, que se passe a discutir novas estratégias para lidar com os problemas de segurança pública, tomando por frente sempre os tratados de direitos humanos que o país assinou, os direitos e garantias fundamentais do cidadão (que não são uma porcelana chinesa a ser admirada e ostentada mas jamais implementada), os princípios norteadores do direito e processo penal, as experiências internacionais de minimização do encarceramento que tiveram efeito positivo, tais como penas alternativas, o fim da guerra contra as drogas, enfim, formas substitutivas da pena de pri são.

Com efeito, nesse último aspecto, embora se reconheça com von Ihering que “a história da pena é a história de sua constante abolição” (Apud Evandro Lins e Silva. De Beccaria a Filippo Gramática. Uma visão global da história da pena. Edição do Autor, 1991, p. 1), não é demais nesses tempos sombrios de intolerância punitivista, lembrar Evandro Lins e Silva (op. cit. p. 1) para, com ele, captar, como o faz Eduardo Lemos, as dimensões complexas de interditos e sanções sociais. Porque, ao fim e ao cabo, eles traduzem com vivacidade a semântica do castigo que se insere nas entrelinhas discursivas de sua função jurídico-política, desvendando ao fim e ao cabo, a função sacrificial que impõe aos segmentos vulneráveis da sociedade, ou seja, o realizar uma espécie de “aterrorizante cerimônia punitiva”, não porque “restabelece justiça”, mas porque “reativa o poder”.

Jose_Geraldo_Fotor_a78f0ed01a284f628e99aa33869f4ce0
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

Se você deseja acompanhar as notícias do Jornal Estado de Direito, envie seu nome e a mensagem “JED” para o número (51) 99913-1398, assim incluiremos seu contato na lista de transmissão de notícias.

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe