A dívida como fundamento cristão de governo

Coluna Democracia e Política

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Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Dívida Pública do Estado

A dívida pública do Estado é uma das grandes preocupações do governo de José Ivo Sartori e Michel Temer. A dívida é, para o governador e o Presidente, o que o Espírito Santo é para os católicos: uma das três pessoas da Santíssima Trindade, Deus Espírito Santo, Deus Pai e Deus Filho. Na igreja católica, há quatro funções do Espírito Santo. Ele condena o pecado e age para convencer os não penitentes de que seus atos são pecados, que são pecadores perante Deus. Ele provoca a conversão, isto é, traz alguém para a fé cristã: por isto se diz que o novo crente é “nascido novamente no Espírito”. Ele habilita à vida cristã, uma vida que é tida como a correta e crente e finalmente, ele  é confortador e inspirador, porque  ele age para apaziguar nossas atribulações e ajuda a interpretar as sagradas escrituras. No governo Sartori e Temer o Espirito Santo atende pelo nome de Doutrina Neolibeal. Ela condena o pecado de todos os novos penitentes, os antigos cidadãos e servidores públicos. A partir de agora, o simples desejo de serviços públicos de qualidade pelo cidadão ou de pagamento de salários, pelos servidores, é visto como o pecado perante perante Deus, agora, a política neoliberal. Seu objetivo é converter a todos de que as políticas adotadas pelo governo são as melhores formas de governar quando não o são, são a fé professada por alguns governantes. Sua intenção é transformar a todos em novos crentes, crentes como os cristãos, agora não nascidos no Espírito Santo, mas nascidos no coração das políticas neoliberais. A razão é que, como no Cristianismo, só há uma vida correta possível, aquela capaz de renunciar – exatamente como no universo cristão – a tudo em nome do Capital. Usa, para isso, de refinadas estratégias de apaziguamento: se há um culpado no fato de o Estado estar em crise é o cidadão, que ultrapassou todos os limites ao desejar algo para sí. Por isso ele nos inspira no beabá neoliberal, de que é possível viver em um mundo sem direito algum.

Créditos: Daniela Barcellos/Palácio Piratini

Créditos: Daniela Barcellos/Palácio Piratini

Governo José Ivo Sartori

Não é exatamente isso que está fazendo o Governo José Ivo Sartori quando anuncia para os servidores mais um parcelamento de salários para o próximo mês? A todo momento ao fazer o parcelamento, o governador não está enunciando um discurso subliminar de  são os salários dos servidores o culpado pelas dificuldades do Estado? No credo neoliberal, sempre é o servidor o culpado e não a sequência da más administrações. O simples desejo de pagamento em dia ou reajuste salário é visto como o pecado original, ainda que, nesse universo esquizofrênico da política que se alimenta de ideias cristãs, haja bastante lugar ainda para privilegiados. Sartori e Temer sucessivamente apresentam ou estudam medidas de governo para ampliar impostos como se somente uma ação econômica fosse possível e não veem o desastre que acumulam a cada iniciativa de ampliação de impostos que resultam na redução do desenvolvimento econômico. Ora, a estratégia de apaziguar a população pela adoção de medidas de caráter neoliberal já mostrou sua fraqueza, e se há um culpado da crise do estado, agora, é o próprio governo, já que servidores e cidadãos já fizeram imenso sacrifício. O que está ocorrendo no governo de José Ivo Sartori e no governo de Michel Temer é apenas mais um desdobramento do que já ocorreu de forma semelhante em outras regiões do planeta, o deslocamento da luta de classes para a luta em torno da dívida. Dos Estados Unidos e do mundo anglo-saxão, onde nasceu o neoliberalismo em primeiro lugar também nasceu a crise e o desastre financeiro. Não é por esta razão que vemos ocupar o discurso político de Michel Temer e José Ivo Sartori cada vez mais a relação entre credor e devedor? Mas esta é apenas uma nova forma de recolocar os mecanismos de dominação, como adverte o filósofo italiano Mauricio Lazzarato em La fabrica del hombre endeudado (Amorrortu, 2013) pois: ”reforça os mecanismos de exploração e dominação de maneira transversal porque não faz distinção alguma entre trabalhadores e desempregados, consumidores e produtores, ativos e inativos, jubilados e beneficiários do salário mínimo. Todos são “devedores”, culpados e responsáveis frente ao Capital, que surge como o grande credor , o credor universal”. Tanto a nível federal, como a nível estadual, estamos vendo exatamente isto, a transformação de cidadãos e servidores públicos em “devedores do estado”. Ganha um doce quem souber a quem está servindo o Estado. Minha resposta: ao Capital.

Neoliberalismo

Porquê? Por que justamente a aposta política do neoliberalismo continua sendo a propriedade. A relação de credor/devedor, a relação onde o Estado apresenta-se como credor e o cidadão/servidor público como devedor é sempre uma relação de força entre proprietários do capital e não proprietários. Como não ver nas políticas de redução dos benefícios sociais do governo Temer se não esta posição de credor, de retirada de direitos da sociedade? A reforma da previdência prevista pelo governo federal e a política de redução de direitos trabalhistas não está a serviço da sociedade como diz seu discurso, ao contrario, está a serviço dos interesses do capital em sua expansão em direção ao lucro. E como não fazer isso se não tomar de assalto o Estado, exatamente como feito pelo golpe que levou Michel Temer ao poder? Por outro lado, a nível do governo estadual, o processo que faz com que servidores tenham seus salários parcelados é não é outra forma se não de capitalizar, a custa do servidor público, riqueza que deveria ser transferida para o trabalhador de estado como retribuição justa por seu serviço? Se o Estado não remunera, ele lucra: eis o princípio básico de um estado servo do capital.

Créditos: Antonio Cruz/Agência Brasil

Créditos: Antonio Cruz/Agência Brasil

Por esta razão é tão importante para os governantes a defesa da ideia da dívida pública: ela é o argumento dissuasório  que faz com que toda a sociedade seja endividada “o que, longe de impedir, ao contrário, exacerba as “desigualdades”, que agora podemos chamar de “diferenças de classe”, destaca Lazzarato. Não há algo profundamente equivocado quando vemos em democracias que alguns poucos indivíduos – o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento e suas equipes, a nível federal, ou o secretario da Fazenda, a nível estadual, decidirem por toda a sociedade em função dos interesses de uma minoria? Pois a imensa maioria dos cidadãos brasileiros continua pobre, e no Estado, uma parcela, os servidores públicos,  tem-se encaminhado na mesma direção. Qualquer semelhança com as estratégias adotadas em países europeus onde alguns funcionários do FMI e do Banco Mundial decidem o destino  de uma imensa maioria também não é coincidência. As políticas de estado estão a serviço, mais uma vez, da acumulação capitalista. E a consequência é a produção de novos despossuídos. O sentimento de endividamento, de que o cidadão deve algo ao seu Estado e não o contrário é uma perversa armadilha, uma estratégia subjetiva que quer transferir o ônus da expansão capitalista para os cidadãos e servidores públicos. Não é curioso que justamente essa seja a situação do regime que prometeu, em sua origem, que todos seriam proprietários, que todos seriam empresários, e que agora, responsabilize a todos pela sua própria crise? Por esta razão, afirma Lazzarato, o que está diante de nós não é uma forma de governo neoliberal, é uma fábrica econômica de subjetividade capitalista: frente a crise econômica que o próprio capitalismo criou, deixaram de ocupar o lugar de sujeito imaginário o capitalista, o trabalhador independente e produtivo. O novo management é o da auto exploração, da aceitação do encargo que o sistema quer depositar em seus cidadãos, em seus servidores, da catástrofe econômica. Para isso, é preciso que todos nos reconheçamos como devedores, o que deve nos fazer aceitar a redução dos serviços públicos, o parcelamento de salários, a falência do sistema de assistência solidária representada pela Previdência.

Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A economia política

Ora, o que se produz é sempre o desvio, é efeito de sedução: para os políticos e meios de comunicação, as causas da crise não devem ser buscadas nas políticas monetárias do passado ou em andamento, que aprofundam o déficit justamente pela transferência de riqueza dos mais pobres para os mais ricos. Por isso, a verdadeira ameça é este o olhar desejoso dos governantes e capitalistas em direção aos fundos de pensão, esse verdadeiro Oeste que, como o americano, aguarda ser explorado. Ora, tudo é apresentado como se a crise fosse devido as exigências dos cidadãos por mais serviços públicos, ou que, o fato de desejar se aposentar aos 65 anos ser tomado como um pecado original sem considerar o quanto o cidadão contribuiu para a Previdência com seu trabalho e suas contribuições. Isso só acontece quando se generaliza a corrupção na elite politica. O que estamos vendo tanto no governo José Ivo Sartori como no governo Michel Temer é justamente que não se tratam de governos dedicados a pôr um limite nas politicas neoliberais, ao contrário, são governos que não querem regular os excessos do mundo das finanças mas expandi-los a custa do trabalhador. Eles corromperam a função social do estado, eis a questão. Não foi o programa do governo Temer o eleito e que tem conduzido o início das reformas que estão sendo implememtadas (ausência de legitimidade); nesse sentido, o programa de José Ivo Sartori, exatamente por não ter prometido aumento algum, expressou exatamente o tipo de política que estava por vir. A economia política em andamento está desenvolvendo novos instrumentos de sujeição. Agora, diferente do que dizia Marx, não se trata apenas de descrever como são efetuadas as trocas, se não o crédito. A relação social deixa de ser baseada na igualdade que a troca possibilitava (meu trabalho por sua remuneração ) para ser substituida por uma relação baseada no par credor/devedor. Não há divida sem produção de sujeito moral, eis a questão.  Enquanto não conseguirmos descrever as estratégias subjetivas de domínio em andamento nas politicas de Estado com o discurso da dívida,  estaremos longe de pensar uma estratégia de transformação social  e enfrentamento coletivo que faça com que rejeitemos a posição de homem endividado que os governantes querem colocar sobre a sociedade.

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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