Cartas de Viagem: Histórias de caminhos não contados

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CARTAS DE VIAGEM: HISTÓRIAS DE CAMINHOS NÃO CONTADOS, de Gladstone Leonel Júnior. Belo Horizonte: Editora Crivo, 2018, 112 pp. (para aquisição: http://pag.ae/bkvtVBt)

 

Começo a minha leitura dessas “Cartas de Viagem: Histórias de Caminhos não Contados”, diários de viagens de Gladstone Leonel Júnior, recortando trecho de um diálogo entre Kublai Khan e Marco Pólo personagens de As Cidades Invisíveis do escritor  Ítalo Calvino:

Kublai: Não sei quando você encontrou tempo de visitar todos os países que me descreve. A minha impressão é que você nunca saiu deste jardim.

Pólo: Todas as coisas que vejo e faço ganham sentido num espaço da mente em que reina a mesma calma que existe aqui, a mesma penumbra, o mesmo silêncio percorrido pelo farfalhar das folhas.

Foto: Blog "O Direito achado na rua"

Foto: Blog “O Direito achado na rua”

Não sei também, quando Gladstone encontrou tempo para visitar todos os lugares, alguns deles revisitados, sobre os quais relata em seus diários, nas quarenta e quatro cartas em que registrou suas impressões e em fotos que são a maneira de imprimir “o que o não inglês vê”: Achacati (Bolívia), Glasgow, Santiago, Amsterdã, Porto, Barcelona, Berlim, Budapeste, Caracas, Valência, Havana, Santa Cruz, Cidade do México, Tiwanaku (Bolívia) Edimburgo, Cusco (Machu Picchu), Cidade do Panamá, La Paz, Lisboa, Liverpool, Madrid, Manchester, Buenos Aires, Coimbra, Montevidéu, Santa Clara (Cuba), Toledo, Londres, Salar de Uyuni (Bolívia), Titicaca, entre Puno e Copacabana (Bolívia), Praga, Roma, Santiago de Cuba, Sevilha, Sucre, Potosí, Trindad (Cuba), Paris. Lima.

Mas, como Marco Pólo, me dou conta de que Gladstone dá sentido por meio de impressões vívidas dos lugares percorridos, no “espaço da mente” no qual tece “a mesma penumbra, o mesmo silêncio percorrido”, com a sua inteligência e com a sua sensibilidade andarilhas.

A narrativa de Gladstone guarda a mesma “calma que existe” em Saramago (Viagem a Portugal) que me guiou em minha primeira viagem àquela “jangada de pedra”, desvelando os sítios emotivos trançados pela “história de um viajante no interior da viagem que fez, história de uma viagem que em si transportou um viajante, história de viagem e viajante reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que é visto”.

Como em Saramago, a viagem de Gladstone acaba sendo o “encontro nem sempre pacífico de subjetividades e objetividades”, inevitavelmente, “choque e adequação, reconhecimento e descoberta, confirmação e surpresa”, e a confirmação, afirma o escritor português, de que “nenhuma viagem é definitiva”.

Assim, as histórias e as fotografias de Gladstone remetem a recortes objetivos suficientemente descritos de tal modo que possam ser reconhecidos por outros viajantes, mas oferecem sobretudo, tal como ele sugere, um mapa de mistérios, para o percurso de “caminhos não contados” que são aqueles que assinalam ali onde a crônica se bifurca com a sociologia, a exposição do “silêncio percorrido”.

Como na “Glasgow que o não inglês vê”, em que penumbra e silêncio intransitam entre o passado (o gaitista vestido com o kilt antes proibido) ao lado da ponte que não leva ao Reino Unido, lembrando Gladstone que  “Conhecer a Escócia a partir de Glasgow na tentativa de decifrar o povo escocês é ter a certeza que a história de autodeterminação dos povos falará mais alto em algum momento, e não haverá monarquia que suportará aquele clamor”.

O “farfalhar de folhas” no passeio suleador (e jamais norteador) do Outro feito Sujeito descobrindo a Europa, vislumbra o mundo velho pelo olhar de outro mundo possível que experimentou a libertação. Por isso é um olhar afetuoso, solidário, que ao contrario do percurso colonizador que alienou e excluiu, humaniza o reencontro para alcançar sob a crosta da acumulação egoísta, resquícios de possibilidades não experimentadas, do que na Europa permanece pré-moderno como condição de pós-modernidade (Boaventura de Sousa Santos).

Isso significa ver a Europa olhando-a por Portugal, como num filme de Wim Wenders (O Céu de Lisboa), com a trilha sonora do Madredeus. Por isso Gladstone pode dizer que “avistar o Tejo da Torre de Belém e tentar seguir a vista, até onde os olhos alcançam, na busca pelo mar, sintetiza o percurso por onde passa o sentimento transformado em fado e poesia na alma portuguesa”.

Não causa estranheza pois, que Gladstone, em terras ibéricas – Lisboa, Coimbra, Porto, Madrid, Toledo, Sevilha, Granada e Valência – tenha encontrado primeiro, talvez pelo efeito, o impacto do retorno emancipado do Outro da colonialidade e tenha percebido no discernimento progressista da leitura de seus colegas acadêmicos, a emergência de novos sujeitos, gritando novidades conceituais para auditórios mais amplos que o de Valladolid, acerca de um constitucionalismo democrático, transformador,  de um novo constitucionalismo latinoamericano.

Na Pátria Grande (Darcy Ribeiro), Gladstone vai de Buenos Aires e Montevidéu a Santiago de Cuba, como num sonho de Bolívar (Cartas da Jamaica), que como o grande condestável, ficando de fora os Estados Unidos, expresse “o desejo, mais do que qualquer outro, (de) ver formar-se na América a maior nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas do que pela liberdade e glória.”

E assim, notadamente na Bolívia (Achacati, Santa Cruz, Tiwanaku Salar de Uyuni, Titicaca, Puno, Copacabana, Sucre, Potosí e La Paz), representar teoricamente esse novo constitucionalismo latino-americano, tendo por base o experimento boliviano, para debater com as institucionalidades constituídas na sua expressão estatal plurinacional e com as sociabilidades ativas do pluralismo jurídico comunitário participativo, os fundamentos desse novo direito constitucional.

No percurso teórico-conceitual e político desse debate poder avançar a proposta de um Constitucionalismo Achado na Rua, enquanto prática de construção de direitos que expresse essa decolonialidade do direito, para compreender por poder constituinte a emergência histórica de sujeitos coletivos dotados de legitimidade política e capacidade social suficientes para irromper violações sistemáticas e instituir novas condições concretas de garantia e exercício de direitos e novos projetos de sociedade. Um Constitucionalismo Achado na Rua que venha aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho do retorno à sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular.

Se é verdade o que diz  Benedetti na epígrafe escolhida por Gladstone de “que el mundo es incontable”, nas Cartas aquí publicadas, com o zêlo do editor e do ilustrador que mais ainda as realçam,  o que importa é o que nos oferece o autor, não tanto pelo que conta, mas tal como orienta García Márquez (Viver para Contar), pelo que “recorda, e como recorda para contar”.

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil , Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

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