O centenário de Ary Veiga Sanhudo

Por Jorge Barcellos*

No dia 18 de março de 1915 nascia em Porto Alegre o escritor e vereador Ary Veiga Sanhudo, um dos grandes construtores da memória afetiva da cidade. A passagem do seu centenário de nascimento repercutiu pouco na capital e nas  comemorações da Semana de Porto Alegre (25 a 29 de março). A cidade perde de recuperar a memória deste ilustre cidadão portoalegrense essencial a história da capital. Em tempos onde a produção de legislação sobre a troca de nomes de logradouros está se tornando corrente,  Veiga Sanhudo foi o primeiro a propor o contrário,  a manutenção dos nomes antigos dos logradouros da capital, e por essa razão, sua história é de interesse dos estudiosos que pesquisam a história do direito. Em sua obra “Porto Alegre, crônicas de minha cidade”, Sanhudo reuniu em dois volumes extensos  artigos publicados no Jornal Folha da Tarde que registraram as transformações na paisagem da capital e os estilos e condições de vida de seus habitantes mais antigos. O registro das ações dos grupos urbanos, a descrição do trajeto da transformação da cidade, do passado idealizado rural e colonial ao tempo progressista do processo de urbanização e que inclui a canalização dos arroios, a abertura de avenidas, a higienização e a modernização do espaço público, foram registrados pelo texto do autor.

Porque a obra de Ary Veiga Sanhudo é importante? Primeiro, porque como memorialista da cidade, Sanhudo encontra-se ao lado de clássicos da historiografia da capital, como Álvares Pereira Coruja, Aquiles Porto Alegre e Athos Damasceno Ferreira, cronistas de relevo que construíram uma tradição de escrita sobre a capital com  escritos a meio caminho da história e da literatura. Segundo, como vereador da cidade, Sanhudo trouxe para o parlamento duas preocupações: a primeira, com os bairros, onde valorizava sua vitalidade e que sua Lei dos Bairros, ainda hoje em vigor, procurou preservar; a segunda,  com seu projeto de lei que visava preservar os nomes tradicionais – Rua da Praia, Praça do Mercado –, o chamado Projeto da Saudade, constituiu o primeiro mapa afetivo da capital.

Com sua obra, Sanhudo assegurou a preservação da memória da sociabilidade popular das praças e das festas religiosas, verdadeira luta entre uma sociabilidade antiga, que luta por se preservar, e a civilização dos costumes modernos, que vai se impondo ano após ano. Ele percebeu que as profissões antigas e os costumes do passado vinham desaparecendo da área central. Como mostrou Rafael Victorino Devos em seu estudo intitulado “A memória ambiental nas narrativas de cronistas e memorialistas”, publicado na Revista Museion em 2008, os escritos de Sanhudo foram capazes de preservar as relações da cidade com seu sitio natural, de registrar o sentimento de seus cidadãos pelo Rio Guaíba e pela geografia natural da cidade. É Sanhudo constata que a modernização cobrou o seu preço: as canalizações dos arroios e as obras de aterramento que foram feitas na orla do Guaíba baniram para sempre figuras populares como lavadeiras e pescadores, que faziam a riqueza da fotografia e da iconografia da época.

No segundo volume de sua obra Sanhudo se dedica a fundamentar o projeto de lei que propôs no período em que foi vereador (1952-1959) e que visava oficializar o desmembramento da capital em bairros a serem nomeados conforme a nomenclatura popular. Vê-se aí o quanto o projeto literário de Sanhudo é político: é que o primeiro volume,  publicado em 1961, era escrito desde 1959, o ano em que o Plano Diretor da cidade foi reformulado. Quer dizer, Sanhudo usa a literatura para fazer política: no momento em que discutia-se os rumos da cidade, introduzia uma agenda notável de política pública: a denominação de bairros.  O segundo volume, só terminado em 1968, e  publicado em 1975, incluiu os novos bairros emergentes e mais periféricos, numa época em que um novo passo estava sendo dado.Ele já trabalhava com a ideia de região metropolitana e a necessidade de sua gestão: é que a área urbana de Porto Alegre triplica de tamanho entre 1950 e 1970.  Quer dizer, o escritor e cronista da cidade nunca deixou de ser o que ele também era, um político, e Sanhudo como vereador soube atender a demandas da memória que se originaram na década de 40, com as comemorações do bi-centenário da cidade, e as que se originaram nos anos 70 e que marcam o contexto de lançamento do segundo volume de sua obra de crônicas, a transformação de Porto Alegre de cidade, que em 1950 tinha 394 mil habitantes, para uma  metrópole, que em 1970 tinha 885 mil pessoas.

Quando Sanhudo assumiu como vereador em 1952, era Presidente da Câmara o Vereador Armando Temperani Pereira. Na época, Sanhudo assumiu uma cadeira no legislativo pelo antigo PSP, então Partido Social Progressista, a um partido de tendência populista, fundado na época em São Paulo pelo Governador Adhemar de Barros. A nível nacional, era o quarto maior partido político e o maior em São Paulo, onde, como governador, Barros foi responsável por inúmeras obras de infra-estrutura “governar é abrir estradas”, dizia.  Apesar do partido ter pequena expressão eleitoral no Rio Grande do Sul, cresceu durante a década de 50 e Sanhudo foi seu principal representante.

Quando assumiu, conquistou logo o cargo de primeiro vice-presidente, um cargo muito importante junto a Mesa Diretora, que tinha também Geraldo Otávio Rocha, Antonio Acchuti e Therézio de Oliveira Meirelles. Nesta época, o legislativo da capital tinha então 21 vereadores, os partidos que tinham hegemonia à época eram respectivamente o PTB, com 9 vereadores e o PSD com 4 vereadores. Vivia-se um período democrático e Sanhudo nunca renegou sua ligação com Adhemar de Barros, o que lhe custou oposição inicial dos colegas, mas sua insistência no argumento de que seu único objetivo era “bem servir o grande povo dessa comuna” (Anais da Câmara Municipal de 1952 ,p . 17), terminaram por lhe garantir um lugar de destaque no plenário. Na solenidade de posse, afirmou categoricamente:  “Quero, uma vez mais, deixar claro aos meus nobres colegas, que silenciará em mim a voz da política forradamente partidária, para se fazer ouvir o legitimo representante dos supremos e sagrados interesses do povo desta cidade que livre e espontaneamente me elegeu”(p. 18).

Sanhudo desde sua posse anunciou que o foco de seu trabalho seria os problemas dos bairros da capital. Seu dia a dia começava sendo, visitando bairros da cidade e levando para a tribuna as reivindicações de seus moradores, como faz com o problema da falta dágua no bairro Santa Teresa, a falta de fiscalização dos horários dos  ônibus, etc. Era uma grande Câmara a de sua época, repleta de escritores. De um lado, Josué Guimarães, o grande jornalista e escritor gaúcho, autor de A Ferro e Fogo; e de outro, Alberto André, o ícone máximo da imprensa rio-grandense da época. Mas o que distinguia seus discursos eram as pitadas literárias que acrescentava aos textos, ora a citação de uma fábula, ora de uma crônica ou uma história qualquer acumulada nos anos de leitura e na cultura geral que possuía.

Sanhudo reconhece em reportagens de época que a matéria legislativa nunca foi o seu forte. Elegeu-se novamente pelo PSP, como  primeiro suplente, assumindo na vacância do antigo vereador Adaury Filippi entre 1956 e 1959, e foi segundo suplente entre 1960 e 1963, assumindo nas licenças do Vereador Geraldo Stédile. Foi nesse período, como suplente, que apresentou o Projeto de Lei da Saudade, para retomar os nomes antigos da cidade.  Tanto a reportagem de Zero Hora, escrita por Eliane Brum nos anos 90 como as primeiras matérias a seu respeito, ainda na Revista do Globo, escritas por José Amadio nos 40 assinalam que Sanhudo reconhece que seu forte era a literatura e que a política só veio após. É que nos anos 40, Sanhudo era conhecido por ser o maior epistológrafo da época, recebendo e enviando inúmeras cartas para todo o mundo. Mantendo correspondência em seis idiomas para diversos países, era o portoalegrense que mais trabalho dava aos Correios e Telégrafos. Sua história pessoal foi recuperada para nós  por Amadio: é que Sanhudo exerceu inúmeras funções até descobrir-se vereador e escritor: foi cobrador de alfaiateria, caixeiro de bodega, vendedor de sombrinhas e quitandeiro. Amante dos cafés, da vida boêmia e dos cinemas da capital, Sanhudo descobriu vivendo a cidade o quanto a amava. Como secretario de um sindicato trabalhista, Sanhudo conhece a Rádio Farroupilha e depois vai para o Rio fazer diversos trabalhos, inclusive guia de turismo; descobre a língua francesa e faz prova para o Itamarati. Nos anos 40, ganha a vida como funcionário público do setor de estatística da secretaria da educação do Rio Grande do Sul.  Dotado de uma memória extraordinária, domina o inglês, francês, espanhol, italiano e inclusive esperanto.  Como vereador, aprovou a lei dos bairros, mas teve seu projeto da saudade engavetado. É uma pena. Como um campeão de epistolografia, deixou-nos uma lição interessante nesta época de redes sociais e conversas mediadas pelo WhatsApp: “ Escrevam mais cartas!”

*Licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1989) e Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação/UFRGS(2013). Possui experiência de magistério no ensino médio e superior, além de publicações na área de história, educação e política educacional. Atualmente é Coordenador da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, onde é responsável pelo projeto Educação para Cidadania.  Recebeu a Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica (2006) e o Troféu Expressão da FINEP (2006) pelas atividades do Projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal de Porto Alegre , sob sua coordenação.

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