Negociado x legislado: o falso discurso da autonomia

Um dos tantos reflexos da modernidade é justamente a centralidade do indivíduo. O homem passa a buscar as verdades em si mesmo, porque perde suas referências místicas. Daí toda a construção acerca da autonomia como liberdade para contratar. É característica disso a afirmação de Kant, por exemplo, de que a razão deve comandar a vontade. É também esse pressuposto de autonomia como liberdade para contratar que legitima a definição de Hegel de que ser livre é poder dispor, inclusive de si mesmo. Trata-se de uma falsa autonomia, denunciada por autores como Marx, Nietzsche ou Freud.

O discurso de flexibilização e desmanche dos direitos trabalhistas, bem representado pela expressão “negociado x legislado”, aposta na também falsa dicotomia entre a legislação trabalhista e a possibilidade de criação de normas, de forma autônoma, pelos partícipes da relação de trabalho. E reedita, com novos contornos, a ideia liberal de autonomia da vontade como liberdade para contratar. A tentativa de alteração do artigo 618 da CLT, na década de 1990, tinha essa motivação. Agora, o PL 8294, que pretende inserir um parágrafo único no artigo 444 da CLT, para que a proteção nele contida não se estenda a empregados melhor remunerados ou com formação acadêmica, resgata a mesma pretensão. No mesmo sentido, o PL 450/2015 autoriza que pequenas empresas parcelem o décimo terceiro e fracionem férias. Em todos esses ataques, o discurso é distorcido, para que o trabalhador se convença de que perder proteção (e os direitos que essa proteção lhe assegura) é condição para o exercício de sua autonomia.

A falácia de que ser autônomo é poder para abrir mão de direitos não é novidade na prática das relações de trabalho. Aliás, é o próprio espírito do liberalismo, que historicamente cedeu à pressão da classe trabalhadora e às necessidades do próprio capital. A imperatividade das normas trabalhistas decorre do reconhecimento histórico de que a falsa autonomia exercida na “livre estipulação das condições do contrato” não é real, se traduz em sujeição e miséria. O exercício da autonomia na relação de trabalho se dá, ao contrário, exatamente em razão das garantias que a legislação trabalhista confere aos empregados. Portanto, mesmo admitindo o conceito liberal clássico de autonomia como liberdade para negociar, podemos concluir que, na realidade das relações de trabalho, o empregado terá condições de negociar de modo autônomo apenas quando houver efetiva garantia contra a dispensa, salário adequado, condições de higiene e de trabalho. Do contrário, essa liberdade o aprisionará ainda mais.

Na década de 1990, a atuação conjunta de entidades ligadas ao direito do trabalho barrou o projeto de alteração do art. 618 da CLT. Agora, novas tentativas no mesmo sentido revelam-se nesses PL 450/15 e 8294/14. É preciso resistir. Como refere a música da Legião Urbana, “não se pode fechar os olhos, não se pode olhar pra trás sem aprender alguma coisa pro futuro”.

Valdete Souto Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Europeia de Roma – UER (Itália). Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai. Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS

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