A energia utópica da esquerda

Fábio Rodrigues PozzebomAgência Brasil2

Créditos: Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

A energia utópica

A imagem dos militantes de esquerda em lágrimas após a vitória do inicio do processo de impeachment, no último dia 17, por todo o país, evoca as relações da política com o desejo das massas. Na tristeza dos militantes não estava em jogo apenas o fracasso de uma ideia mestra, a defesa do estado democrático de direito, da Constituição e a defesa da permanência de Dilma no poder. A ascensão e decadência do Partido dos Trabalhadores não afeta apenas o cenário político, afeta  também o imaginário de uma geração.

O PT dos anos 80 está muito distante do PT dos anos 2016: trinta anos fizeram a diferença, para o bem e para o mal. Dentro de um certo revisionismo político de esquerda, é preciso se preocupar sobre o destino da energia utópica de esquerda dos anos 80. O que aconteceu com ela e para onde ela foi?

Razão e Paixão

Vejamos  as reflexões de Marilena Chauí , uma referência no pensamento de esquerda sobre a natureza da alma humana na obra coletiva “Os sentidos da Paixão”. Para Chauí, é preciso ir aos gregos  para retomar a definição de ‘’Ethos’’ e ‘’Pathos’’. Para os antigos, ‘’ Ethos’’ é o que se é por natureza, ao passo que ‘’Pathos’’ são suas inclinações. O que torna ‘’pathos’’ diferente é a sua perda de domínio, esse sair de si, esse ‘’foge do meu controle’’, como se vê na relação dos personagens da obra de Laclós, Ligações Perigosas.

Mas Chauí aponta que com o Estoicismo, ‘’pathos’’ deixa de ser uma inclinação do ‘’ethos’’ e passa a ser sua negação. A conseqüência é que a partir deste momento, se abre caminho para a Razão dominar a Paixão.  Mas Chauí vai a Espinosa para mostrar irredutibilidade entre Razão e Paixão ‘’Porque são forças, demonstra Espinosa, os afetos  jamais serão vencidos por idéias ou vontades, mas por outros mais fortes e contrários, a Razão, enquanto tal, sendo imponente para domá-los e dirigi-los a menos que a atividade racional seja, ela também, experimentada como afeto. Compreender os afetos é, pois, alcançar sua origem, saber quais são primitivos e quais são derivados, quais são os fortes e quais são os fracos, o que os diferencia, aproxima e distância, o que os conserva, o que os destrói (Chauí, 1987,54).

Essa concepção de paixão tem uma conseqüência interessante para sua pensar a paixão política: a de que não se abole as paixões, mas se negocia com elas. Nesta  retomada da definição de paixão, e Chauí é marcadamente espinoseana, encontramos uma proximidade com concepções contemporâneas com a noção de “Desejo” como as do filósofo Gilles  Deleuze ou de “Intensidade”  do filósofo Jean François Lyotard: a paixão política é algo vivido intensamente, é um objeto sobre o qual o desejo se mobiliza.

Troca de poder

Mas outro autor, o sociólogo Jean Baudrillard, confirma esta tese: o poder (e não política) é algo diverso, o poder é “algo que se troca”. E complementa “não no sentido econômico, porém no sentido de que o poder realiza um ciclo reversível de sedução, de desafio e de ardil” (Baudrillard, 1984,67). E ainda que esta última postura seja diversa dos autores que pensam a lógica desejante e portanto, a possibilidade de pensar o desejo na política, todas colocam em questão para os movimentos de esquerda, além de toda a ideologia que o alimenta, a de que os movimentos políticos de direita estão matando o desejo da esquerda: frente ao fracasso político real, os afetos de esquerda se dispersam.

E com isto, os atores de esquerda se desmobilizam.  No sentido baudrillardiano, encerrou-se o ciclo em que a esquerda podia negociar com a direita, isto é, “trocar poder”: não foi exatamente isto que aconteceu com o chamado “desvio à direita” feito pelo PT, essa negociação pelo poder que incluiu a entrega de ministérios,  inclusive a própria vice-presidência aos aliados de ocasião e que agora mostra a sua verdadeira face traiçoeira?

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Jean Baudrillard – Créditos: CommonsWikimedia

Teoria das paixões e teoria do desejo

O que alguns autores que estudaram a dinâmica das paixões tem a nos ensinar é que são parentes entre si, a teoria das paixões nas suas origens modernas no pensamento de Espinosa e as concepções gregas que inspiram a teoria do desejo no campo social dos filósofos pós-modernos como Lyotard, Deleuze e Baudrillard, para citar os mais conhecidos.  Quer dizer, a teoria desejante formulada por autores ditos os pós-modernos tem como um dos seus elementos fundamentais  o significado da sensação tal como aparece nas teorias clássicas do pensamento grego. Se o sentimento de esquerda é de vazio, de perda de ideais, de fracasso na luta em defesa do estado de direito, esse sentimento repercute na forma como organiza seu desejo de transformar o social, e aí, se coloca para a militãncia o que faze quando seu  desejo enfraquece, eis a questão.

Gilles Deleuze, em sua obra ‘’ Francis Bacon’’, delineia elementos da lógica da sensação que serve para descrever a estética pós-moderna. Pintor inglês cujo estilo se aproxima muito do expressionismo figurativo que vemos nos anos 80, para Gilles Deleuze  Francis Bacon possui uma obra notável para descrever as emoções porque sua estética está baseada nas noções de campo e força. É que Deleuze entende a pintura de Bacon e a sua própria teoria do desejo inscrita numa lógica da sensação.

Ora, para Deleuze, a sensação só tem lugar quando num corpo atuam forças. Se for assim, pode-se prever o efeito imaginário da sessão da Câmara dos Deputados sobre o corpo da militância: o desgaste, a perda de um ideal encarnada na vitória da direita produz uma terrível sensação de perda de idéias para a esquerda.

Já a noção de Desejo, que Chauí recupera dos gregos, tem uma origem diferente da noção de “pathos”. Para os gregos, a palavra desejo vem de ‘’sidera’’, constelação. Vem, portanto do campo de significações astrais,  “ siderare’’.  “Desiderare’’ é despojar-se dessa referência, abandonar a orientação dos astros, tomando o nosso destino em nossas próprias mãos. Vontade consciente nascida da libertação, ou, noutra expressão grega, ‘’boulesis’’. Quer dizer, na definição de Marilena Chaui, na origem da palavra desejo encontra-se uma perda, uma privação do saber sobre o destino, daquela entrega de si que os homens faziam a deusa Fortuna.

Desejo e história

O que Chauí marca é que progressivamente esta concepção foi substituída, por outra, que vê o desejo como falta.  Se pensarmos nos termos de uma teoria da subjetividade de esquerda,  é fundamental a seguinte afirmação de Chauí: “o desejo institui o campo das relações intersubjetivas, os laços de amor e de ódio, e só se efetua pela mediação de uma outra subjetividade’’, e mais ainda  “a relação com a memória é uma relação com o tempo e o desejo se constitui como temporalidade’’ (Chauí, 1990,25).

Assim, Chauí estabelece um laço entre desejo e história, possibilidade que deve  ser explorada frente à saturada noção de ideologia. Se o desejo individual pela defesa política de um fracassa, fracassa também o de uma geração. Agora, os militantes já não possuem base sobre as quais contruir seus laços e isso é aniquilador. É preciso, por esta razão, jamais esquecer o sentimento de gozo que defender ideais de esquerda provoca: a defesa dos mais pobres, a defesa de um estado democrático, etc etc. Nisso reside a força para recuperar o desejo perdido da esquerda.

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Créditos: Pixabay

Os signos e suas percepções

Para a psicanalista Suely Rolnik (1990) desde o século XIX  a constituição do indíviduo na esteia do pensamento foucaultiano passa por ser jogado no tempo. Isto passa também pela possibilidade de desestruturação do desejo, no caso, o desejo político, o elemento vinculante da esquerda, num mundo em que hoje onde a Cultura de Massa não deixa de se apropriar do olhar liberal pela velocidade que manuseia toda a espécie de signo.

Todos os signos possíveis, inclusive o Amor, se tornam engrenagem da lógica econômico-liberal, daí o passo adiante que parece estar sempre a direita liberal. De outra forma: o que havia de original na concepção de desejo dos gregos é o fato de que este era produto da liberdade do indivíduo, envolvendo suas forças, inclinações, (pathos) a partir de um olhar humano e solidário do mundo, um olhar encantando, como era o olhar de esquerda nos anos 80.

Quando Chauí inicia o capitulo dedicado a análise da origem e transformação do desejo em nossa cultura, ela menciona o ‘’ Desencantamento do Mundo’’ que caracteriza a Modernidade, um mundo que não é mais a face dos nossos desejos mas expressão da realidade econômica . A pergunta é: por que é que o olhar, a paixão e o desejo, enquanto concepções compreendidas no sentido dados pelos antigos pode ser orientadora de uma prática de reencantamento do mundo e da política de esquerda?

O reencantamento político

Sabemos que a teoria é essencial a prática em qualquer campo do conhecimento e da ação social. E frente aos sucessivos fracassos da esquerda, parece que entramos em uma era de desencantamento político. Mas os motivos pelos quais entendo a necessidade de procurar pelo reencantamento do mundo e da política é que a utilidade dessa empreitada podem ser assim caracterizadas.

Primeiro, por que a ideia de desencantamento do mundo (essencial a filosofia da pós-modernidade) traz também a idéia de desencanto político. Ora, Lechner (1988) já apontou a necessidade do pensamento político latino americano pensar a questão do desencanto, do líder político, do militante, em relação aos grandes projetos de transformação da América Latina.

Em segundo lugar, por que a retomada do que se trata realmente do olhar, questão aparentemente banal, pode ser um excelente médio para modificar a forma pela qual a intelectualidade vem pensando nossa realidade. Nos termos de Arditi (1988) é justamente isto que é necessário, na medida em que ele acredita que o que aconteceu foi que a realidade confundiu os nossos modos de percepção, e que isto explicaria o descompasso das teorias sociais – e históricas – com a realidade. Então, nosso sentimento de fracasso de militantes de esquerda pode ser também produto da confusão dos modos de percepção, e isto precisa ser denunciado.

Terceiro porque, nos termos de Mafessoli (1985) , mais do que modelos de explicação da sociedade que só trazem a tona a sua dimensão racional (e isto sem negar a racionalidade), é preciso apreender os fenômenos do social caracterizados por impulsos, forças, coesões, compromissos e paixões. Essas dimensões não deixam de se manifestar na vida cotidiana, e já vem merecendo a atenção dos historiadores. Não é exatamente isto que estava em jogo nas passeatas de militantes de esquerda frente ao Congresso Nacional e por todo o país, espaço de manifestação não apenas de uma agenda de esquerda, mas espaço de vivências de esquerda?

Esse campo de aberturas e derivas sugere vários roteiros de exploração para a análise política atual. Defendo que para uma visão do que está ocorrendo na subjetividade dos atores de esquerda, é preciso um referencial que  uma teoria do conhecimento, filosofia contemporânea e etimologia, fazer esses ‘’pedaços’’ de filosofia antiga vibrar em nosso pensamento político engajado.

 

 

Jorge Barcelos
Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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