Contradições do Estado quando atua no campo da memória

“Primeiro como farsa, depois como tragédia” é a expressão usada por Karl Marx para dizer que um fato ocorre na história duas vezes. É o caso do tema da troca dos nomes de ruas e logradouros associados ao período da Ditadura Militar. Após a vitória do projeto de lei da vereadora Fernanda Melchiona e do Vereador Pedro Ruas (PSOL) da  troca do nome da Avenida Castelo Branco para a Avenida da Democracia e da Legalidade, está em tramitação na Câmara Municipal de Porto Alegre  o projeto de lei que torna obrigatória a troca dos nomes de todas as instituições, equipamentos, logradouros e espaços públicos do Município – assim como de locais privados de caráter público – que prestam homenagem a governantes, agentes e apoiadores da ditadura militar implantada em 1964. De autoria do vereador Engenheiro Comassetto (PT), a proposta exibe lista de 77 páginas extraída do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), com nomes ligados à repressão, tortura e morte de opositores do regime “Pessoas que praticaram tais atrocidades não são dignas de homenagem, menos ainda de memória respeitosa por parte da população civil”, afirma o vereador. Entre as diversas pessoas citadas, inclui-se na lista os cinco presidentes militares da ditadura: Castello Branco, os gaúchos Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel, assim como João Figueiredo. Também aparecem na relação todos os ministros das Forças Armadas do período, generais, almirantes, coronéis, chefes dos serviços de inteligência, suboficiais, policiais, secretários de Estado, diplomatas e médicos legistas. A base é o parecer da CNV, instalada em 2012 e criada para apurar e esclarecer – indicando as circunstâncias e a autoria – as violações de direitos humanos praticadas no período autoritário.  O  vereador informa que a CNV colheu 1.121 depoimentos, sendo 132 deles de agentes.

A proposta coloca em conflito duas posições a respeito da questão: a primeira  que diz que é preciso, em respeito às vitimas da ditadura, a troca dos nomes dos logradouros que homenageiam algozes do período militar e a segunda que diz que a nomeação é produto da história e que nada adianta trocar os nomes se as pessoas não sabem o que eles representam.  A primeira posição é defendida por defensores dos direitos humanos e militantes de esquerda e a segunda é por historiadores e educadores em geral. O que eu disse em outro local para a troca de nomes (ZH, 29/10/2014) vale agora para também para a proposta do vereador Engenheiro Comasseto: para mim, a alteração dos nomes é errada pelos motivos certos e a defesa da preservação dos nomes originais está certa pelos motivos errados. Quer dizer, todos estão errados, mas no fundo, no fundo, todos estão certos. Parece confuso, mas não é.

Os motivos que levaram a alteração dos nomes das ruas e logradouros propostos pelo Vereador Eng. Comasseto  estão certos porque fazem parte de um movimento de valor inestimável para a história politica do país. O processo de luta pelo direito à memória é parte de um processo de busca por justiça social. Mas a alteração dos nomes está errada, não porque não seja possível fazê-la, mas porque termina por produzir justamente o contrário do que objetivam seus defensores, que é simplificar e estereotipar a discussão. Ora, reduzir tudo a um confronto entre os apoiadores do regime militar e seus opositores apaga o fato de que o que está em questão é o desprezo de nossa época por atos de outra.

Mas a metamorfose no nome de ruas e logradouros faz realmente justiça social? Depende. Para suas vitimas e herdeiros sim, mas o que resta da própria possibilidade de julgamento critico para as próximas gerações? Quando há argumentos contrários e a favor da mudança, o julgamento critico se perde na alternativa entre a aceitação e rejeição simples dos nome de figuras da ditadura. Isso é um problema. É mais complexo, a retirada do nome coloca o fato irreversivel do fim da possibilidade de ressignificação dos logradouros e avenidas – para mim nunca foi uma questão de nome, mas de significação. Nomear não é o mesmo que significar. Você pode nomear de Legalidade mas se as pessoas não souberem o que significa, de nada adiantará. Mas se você ressignifiar, ou seja, sempre que passar em frente a Escola Costa e Silva você se lembrar que ele foi de fato um ditador que merece o repúdio isto sim terá significado. Então, se você tirar seu nome da escola, poderá faze-lo? Por isso entendo que para seus autores atingirem seus objetivos seria melhor a ideia de ensinar o tema nas escolas , o que me parece mais importante do que renomear avenidas,  derrubar monumentos e renomear instituições.  O problema é que o argumento da defesa da preservação dos nomes originais também estava errado, os supostos argumentos técnicos encobriam o fato de que a defesa dos nomes tradicionais tratava-se de ideologia. Nada disso. Ocorre com a retirada do nome algo parecido com o que ocorre quando as crianças brincam de esconder objetos debaixo da terra a espera de que outros os achem mais tarde. É esse jogo de “vai-e-vem” com o tempo (Henri Pierre Jeudy) que é preciso  evitar porque afeta a lógica patrimonial e  torna confusos os signos atribuidos aos objetos para as gerações futuras. Ora, os cidadãos são capazes de escolher as significações que querem dar a avenida.

O projeto de troca de nomes do logradouros não é uma ação isolada.  Recentemente,  o Palácio da Polícia recebeu uma placa que informa que ali presos políticos foram torturados durante o regime militar e que  no segundo andar, nas salas onde funcionava  o Departamento de Ordem Política e Social (Dops/RS) houve tortura.  Intitulado Marcas da Memória, o projeto é uma parceria do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) com a Prefeitura de Porto Alegre com o objetivo de tornar público os locais que foram centro de detenção. Essa experiência tem sentido porque trata-se de assinalar da mesma forma que a troca dos nomes dos logradouros,  uma marca do arbítrio. A diferença deste projeto é que nenhum nome foi trocado, o que foi feito foi uma sinalização que visa estimular a reflexão crítica e faz com que aqueles acontecimentos do período não se apaguem. Diz Jair Krischke,  Presidente do MJDH “Cerca de 70% da população brasileira nasceu após a ditadura. É fundamental que eles saibam a tragédia que foi e que seja uma oportunidade para aqueles poucos que defendem a volta da ditadura se questionarem. Para quê? Para uma outra tragédia?”. E completa: “As lembranças da ditadura atormentam a todos, e o esquecimento pode trazer o golpe de volta. Este ato é uma forma de sacramentar o desejo de democracia plena, de liberdade de expressão, informação e organização”, destacou. O prefeito também ressaltou a importância de reforçar as instituições no país. “Se hoje podemos combater a corrupção é porque nossas instituições são fortes.”

Ambas são estratégias de atuação no espaço da memória. Mas no debate que levou a colocação de placas em locais de repressão não levou em consideração um argumento. Diferente do projeto de lei que troca os nomes dos logradouros e portanto, ao mesmo tempo em que constrói uma memória apaga outra, o mérito do projeto Marcas da Memória é que cria uma memória sem a destruição de outra. Mas é preciso lembrar que o projeto Marcas da Memória acontece em um contexto de expansão da memória das vitimas da ditadura por toda a América Latina: em Buenos Aires foi criado o Parque da Memória que lembra os 30 mil mortos e desaparecidos vitimas da ditadura daquele pais. Iniciativas semelhantes também existem na Europa, do Memorial do Holocausto, de Berlim ao Museu-Memorial de Drancy – estupa (isto é,  monumento construídos sobre os restos mortais das vitimas)  do Kimmer Vermelho ao Museu do 11 de setembro, são todos locais que tem menos de dez anos de idade cujo objetivo é fixar a memória em lugares simbólicos.

O problema de todos estes lugares é que, ao buscarem homenagear suas vitimas, não levaram em conta o aspecto turístico envolvidos na sua concepção, quer dizer, o fato de que tais lugares cada vez passaram a serem locais  procurados por visitantes que não tem nada a ver com as pessoas e tragédias evocadas pelo lugar. Quer dizer, ainda que o lançamento do projeto Marcas da Memória tenha reunido, em seu lançamento herdeiros das vitimas que registram a memória, cada vez mais estes espaços terminam por servir a indústria do turismo e com ela, parte do sentimento de preservação da memória de um grupo se perde. É o que ocorre na região de Somme, na França, onde cerca de 200 mil turistas ingleses visam os terrenos da batalha entre franceses e ingleses de 1916. Mas a maioria é de turistas sem nenhuma ligação com os mortos na guerra!. Esta questão foi enunciada por Geneviéve Clastres recentemente: “esse novo público influencia o conteúdo dos locais e das exposições. Ele deve ser mais didático do que antes, às vezes adaptado a um público jovem, frequentemente multilíngue” (De bermuda nas trincheiras, Le Monde Diplomatique, abril de 2015, p. 36-37). Da mesma forma, o Centro de História da Resistência, de Lyon, passou em 2012 por uma reforma para a construção de uma cenografia nova e a sala dedicada ao dia D e a batalha da Normandia foi reformada para melhor atender as necessidades do público visitante. A questão colocada por Clastres é “como dividir o espaço entre os visitantes e as vitimas (ou os descendentes das vitimas), que não tem as mesmas expectativas? Como evitar práticas desrespeitosas, administrar as diferentes percepções da relação com a morte, da cultura da memória, do religioso?” A autora está preocupada com o turismo em massa e sua força que tendem a transformar tais espaços em um enome playground “onde tudo mundo vem fazer sua pose no meio das miríades de cruzes brancas”.

O problema dos novos espaços de memória associados a tragédia é o seu futuro: as vitimas, responsáveis por sua construção, ao longo do tempo são excluídas dos cenários que ajudaram a construir, eis a questão. E cita o caso do Museu do 11 de Setembro, cujo ingresso no valor de R$ 82,00 gerou polêmica: a entrada num local de memória deve ser paga? No projeto Marcas da Memória, o Movimento de Direitos Humanos cumpre o papel que a UNESCO assumiu para diversos espaços, de dar seu selo de “valor universal” aos espaços ligados a acontecimentos trágicos. Quer dizer, o risco de deixarem de serem consideradas por seu valor de memória e passarem a serem vistos pelos seus valores econômicos é real. Mas também é verdade que negar o turismo em tais espaços, uma consequência natural, não pode ser feita, ao contrário, deve ser associada a uma função pedagógica e não gozo turístico – via fotografias, etc. De certa forma, o projeto Marcas da Memória funciona melhor que os projetos de lei que trocam nomes: a razão é que, frente a um ato absurdo, eles propõem  um itinerário ao visitante, o que possibilita  acomodar o pensamento a imagem da dor a trajetória que o espaço provoca. A autora assinala que em locais que nascem pela dor “é preciso andar, vasculhar, criar itinerários que produziram uma possibilidade de apropriação”. O tema evoca uma reeducação para os profissionais do turismo, que precisam deixara de jogar discursos emocionantes que colocam  em cena a piedade para vender os trajetos das memória, para lembrar também os carrascos envolvidos. E finaliza: “Esgotamo-nos recenseando tudo o que pode ser lançado para ser devorado por um público ávido por eventos, memórias gloriosas, para o qual o vazio de uma época se preenche com acontecimentos, aniversários, bicentenários, homenagens”.

Em quaisquer dos casos, como afirma Jeudy em sua obra Espelho das Cidades “a questão é que não nos compete escolher os vestigios que permanecerão”. O fato serve para mostrar existem diversas formas de preservar a memória de uma tragédia, mas que mesmos estas, podem ter seus riscos.É um dos grandes movimentos de nossa época, mas é preciso ter caute-la: ao invés de alterar nomes melhor seria propor que novas avenidas e monumentos sejam construídos à memória das vítimas da violência da ditadura e que roteiros de viagem como os propostos pelos  Marcas da Memória sejam consagrados, sem descuidar da forma como são organizados seus percursos.

Autor – Jorge Alberto Soares Barcellos – É licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1989) e Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação/UFRGS (2013). Possui experiência de magistério no ensino médio e superior, além de publicações na área de história, educação e política educacional. Atualmente é Coordenador da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, onde é responsável pelo projeto Educação para Cidadania. É membro do Conselho da Escola do Legislativo Julieta Battistioli da Câmara Municipal e professor convidado do Studio Clio e do Sistema de Ensino Galileu (SEG). Recebeu a Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica (2006) e o Troféu Expressão da FINEP (2006) pelas atividades do Projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal de Porto Alegre , sob sua coordenação.

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