Vivendo em tempos de zapping político

Presidente interino Michel Temer comanda primeira reunião ministerial - 1

Primeira reunião do ministério Temer | Créditos: Marcos Corrêa/PR

Fora de ritmo

Parece que a crise política sofreu uma aceleração. Os fatos políticos começam a se sobrepor e não somos mais capazes de os acompanhar. Os comentaristas ironizam afirmando que no Brasil não se morre de tédio; os humoristas já não conseguem acompanhar com seus memes os acontecimentos que se sobrepõem e ficamos perdidos frente as inúmeras postagens políticas do Facebook.

Foi Byung Chul Han, em sua obra “O Aroma do Tempo” (Relógio d’Agua Editores, 2016), que fez o alerta: “aquilo que experimentamos como aceleração é somente um dos sintomas da dispersão temporal”. Com isto, Han queria se referir que a crise remete a dissincronia, e no caso brasileiro, a crise politica remete a dissincronia política, que significa que falta a política nacional um ritmo  ordenador. Não é que a politica tenha sofrido uma aceleração, ao contrário, ela perdeu o seu ritmo, a política começou a tropeçar nela mesma “O sentimento de que a vida se acelera tem, na realidade, origem na percepção de que o tempo anda aos tropeços sem qualquer rumo”.

Essa descrição cabe como uma luva no novo governo “interino” de Michel  Temer. Que são a extinção e a retomada do Ministério da Cultura, as indas e vindas do Presidente da Câmara dos Deputados, a nomeação de ministros e sua crise imediata como no caso de Romero Jucá se não a prova de que a política pós-impeachment não se acelerou, mas que ao contrário, como diz Han, vive aos tropeções e sem qualquer rumo?

Esta dissincronia política é o resultado da implantação acelerada do governo golpista. Quer dizer, o novo governo, além de ser golpista, é responsável por mais uma coisa, a sensação de que a vida política acelerou-se, que passa mais rápido do que antes. Essa sensação advém da dispersão dos acontecimentos e é visualizada nas redes sociais onde não conseguimos mais experimentar qualquer tipo de duração nos fatos políticos, não há nada mais que dirija o tempo da política, papel que supúnhamos que o governo deveria fazer.

Sede do governo | Créditos: Annemariebr em Wikipédia em inglês – Transferido de en.wikipedia para o Commons por Foxhill., Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3529994

Reflexos do golpe

Por que elegemos um governo? Por que temos a esperança que ele dê uma estrutura ordenada a nação, que ele se guie por um projeto de governo que engendra uma duração. Dilma foi eleita para governar por quatro anos. Você pode criticar a política de coalizão a que ela se submeteu, você pode criticar os rumos do PT em relação a suas origens, mas você tinha uma duração garantida pelo governo eleito.

O golpe rompeu com essa duração estabelecida com a sociedade, rompeu o liame que fazia a união da sociedade com seu tempo. Como é identificado o governo Temer? Além de golpista, agora ele se tornou um governo fugaz, efêmero e… temerário (sic!). A politica tornou-se coisa passageira, vivemos atomizados em relação aos fatos políticos e, como sugere Han “cada um passa a ter somente a si mesmo, o seu pequeno eu”. Não é assim que nos portamos quando participamos dos acontecimentos políticos via redes sociais, via Facebook, postando nossos “curtir” nas manchetes que apoiamos ou  “vomitando” nas manchetes politicas a que somos contrários?

Hipercinesia política

A perda não é apenas do espaço politico, a perda é do tempo, nossa pobreza política é a necessidade de posicionamo-nos com relação a todos os pequenos fatos  o tempo inteiro. Essa dimensão ontológica tem manifestações cotidianas: você se posiciona frente a ascensão de Temer, se posiciona frente a cada um de seus gestos, mas também com relação a violência praticada contra estudantes que estão contra Temer, mas tudo isso é uma condição para a perda do tempo político, a dissincrônia de que fala Han.

Para o autor de “A Sociedade da Transparência”(Relógio d’Agua, 2015),  a crise atual está ligada a absolutização da vida ativa, que leva ao imperativo de trabalho, que degrada a pessoa em “animal laborans”. Da mesma forma, nossa hipótese é que também leva ao imperativo da vida política, que degrada a pessoa em “animal politics”, que produz uma hipercinesia  política que tira a nossa capacidade de observar os fatos políticos como eles realmente são porque retira o elemento contemplativo (Han) que deve haver na relação sujeito-objeto, isto é, retira nossa capacidade de demorar nos fatos políticos. É isso que está sendo roubado, estamos perdendo capacidade de analisar o mundo político pelo excesso de política, exatamente como prenunciou o sociólogo Jean Baudrillard em suas obras.

Baudrillard | Créditos: By Europeangraduateschool, CC BY-SA 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=8761565

“Hoje em dia, as coisas ligadas a temporalidade envelhecem muito mais rapidamente do que antes. Tornam-se instantaneamente em passado, e, assim, deixam de captar a atenção. O presente se reduz a picos de atualidade. Já não dura” afirma Han. Nosso presente político está seguindo essa regra, a política está contraindo nosso presente vivido, a política é nosso buraco negro. O tempo da política precipita-se como uma avalanche sobre os cidadãos, não há mais sustentáculo no seu interior, sua nova natureza é causa de uma falta, cada fato novo político que surge não se  produz mais nenhuma atração, o tempo político é totalmente sem freios. Como diz Han ‘é precisamente a falta de qualquer direção que faz com que não possamos falar de aceleração “(p. 18).

Na política que vemos na tela de televisão sucedem-se cenas de um Romero Jucá que se apresenta como dono da verdade na posse como ministro à protagonista de uma mentira revelada pelas gravações publicadas pela Folha de São Paulo. Não há mais verdade na política simplesmente porque para ser verdade, precisava-se de um presente contínuo:  a politica é fugidia, ela escapa ao tempo e a verdade. Todos mentem, diria o Dr. House, personagem interpretado por Hugh Laurie no seriado homônimo. O novo governo da salvação nacional se revela tão envolvido na lama como o anterior, na verdade, hipótese paradoxal é que  apesar do impeachment, os dois governos se entrelaçam.  A saída de Dilma não dilui os problemas que existiam em seu governo; a ascensão do golpista Temer não resolve as contradições do governo anterior, antes as aprofundam. Isso ocorre porque as mudanças reais desestabilizam o processo político e o sujeito político, porque  quando o presente é vivido politicamente de forma pontual na sucessão de fatos, ele perde a tensão dialética.

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Jucá | Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Aprofundamento de contradições

A passagem do governo eleito de Dilma para o governo “interino” de Temer significou a perda da dialética politica “em si mesma, a dialética é um acontecimento temporal intensivo. O motor dialético surge da tensão temporal entre um já e um ainda não, entre o acontecido e o futuro. Num processo dialético, o presente é rico em tensões, enquanto hoje falta ao presente qualquer tipo de tensão”. Não existem tensões porque  o governo Temer apenas aprofunda as contradições do governo anterior, exatamente o contrário da tônica dos meios de comunicação, que nos vendem o contexto atual como de tensão politica quando o que faz é  reduzir a realidade política a picos de atualidade como se isso fossem nossa dialética politica quando não é.

Ora, ainda que houvesse um notável componente igualitário que sobrevivia no projeto petista responsável por inúmeras conquistas sociais do governo Lula,  havia também um componente associado ao Capital desde o primeiro dia do governo petista que foi responsável pela redução destas mesmas políticas sociais no segundo Governo Dilma e que havia sido prenunciado – o germe de sua destruição  de que fala Marx – pela Carta aos Brasileiros de 2002, onde ali foi construída imaginariamente o novo governo como  experiência de continuidade do governo FHC.

Zapping

Contra a aceleração da política, imaginamos a política plena, contrapartida da vida plena proposta por Han. Estamos consumindo a politica e a confundindo com sua abundância “A vida plena não se pode explicar teoreticamente em função da quantidade. Não é o resultado da consumação de oportunidades na vida”, diz Han. Da mesma forma, a política plena não se pode mostrar pelo acúmulo de acontecimentos políticos como os que vemos na primeira semana do governo Temer – quantas inúmeras postagens na internet se referiram ao fato de que o presidente interino destruiu as conquistas de cinquenta anos em cinco dias? ”A tese da aceleração não detecta o verdadeiro problema, que consiste no fato de que a vida atual ter perdido a possibilidade de se concluir com sentido.

Tal é a origem do movimento agitado e do nervosismo que caracterizam a vida atual “(Han, p. 23). Esta é a nossa forma de fazer zapping na política: agora, os fatos se sucedem na politica como os canais da sua televisão a cabo,  já não é-se capaz de levar um governo até o fim, já não há unidade de governo que possam fazer valer um projeto político. Vivemos cada vez menos “a politica” como exercício da representação e da cidadania e mais como forma pura de  desorientação, de confusão política “ cada um envelhece sem se tornar maior” (Han), e se somos incapazes de  tornar melhorar a instituição política, é porque há muito tempo, a relação da política de cada um com seu semelhante  não existe mais e o grande vitorioso é o Capital, triste efeito de nossos tempos de zapping político.

 

 downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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