Um governo com Alzheimer

Coluna Democracia e Política

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Alzheimer do atual governo

A partir de agora, as doenças da alma também passam a ser doenças do governo. Não é o idoso injustamente preso que é doente, é o atual governo que sofre de Alzheimer. É que comparações metafóricas as vezes ajudam a entender a realidade. A notícia de que um idoso de 65 anos, interditado judicialmente e com Alzheimer foi parar no Presidio Central é o espelho convexo e deformador do significado das políticas públicas do governo José Ivo  Sartori. É só o olhar os sintomas: enquanto o idoso com Alzheimer tem reduzida suas capacidades intelectuais, o governador tem reduzida as suas capacidades de governar. Só a perda da memória recente do governo é capaz de explicar que tenha esquecido  a sua obrigação com o pagamento salarial dos servidores quando, até 2014, era feito em dia. O governo, como na doença, tem afetada a sua capacidade de discernimento, ele não consegue entender as consequências de seus atos: ao aumentar impostos, é claro que a arrecadação iria diminuir; ao parcelar salários, é lógico que haveria uma consequência no trabalho dos servidores e o stress da corporação é apenas uma delas.

Como nos portadores de Alzheimer, o governo mantém o chamado estado de alerta: a doença não reduz seu estado de consciência. Veja o  Secretário da Fazenda: ele explicou no Jornal do Almoço (28/7) que “deu tudo errado”, mostrando que o governo ainda responde aos estímulos externos. Mas como um doente, o governo responde mal e errado, mas está lá, Giovani Feltes, seu secretário, de “olho aberto”, justificando  a economia política cujos efeitos está destruindo todo o serviço público.

Outra situação que justifica esta hipótese ocorreu no dia 15/8. Após mortes seguidas durante o final de semana que comoveram o Estado,  lia-se em Zero Hora “ o governador José Ivo Sartori afirmou que os latrocínios diminuíram (grifo nosso) no Estado, contradizendo os dados apresentados pela Secretaria de Segurança que comprovam um aumento de 35% nesse tipo de crime no primeiro semestre de 2016 se comparado ao ano anterior.” A matéria afirma que após, mesmo contrariado pelos jornalistas, o governador José Ivo Sartori confirmou a diminuição dos latrocínios. Depois, numa rede social, afirmou que se enganara, que estava se referindo a roubos de veículos, como se tudo não passasse de um “ato falho”.

Foto: Ascom BM

Foto: Ascom BM

Desde Freud sabemos que atos falhos não possuem inocência. Slavoj Zizek, em inúmeros momentos de sua obra, afirma que atos falhos são reveladores de nossa alma. Em uma delas, O Sofrimento de Deus (Autêntica, 2015), Zizek lembra uma história judaica sobre um especialista em Talmude contrário a pena de morte e  constrangido pelo fato de que ela tinha sido ordenada pelo próprio Deus. Ele então propõe um solução prática engenhosa: não se deve desobedecer Deus, o que seria uma blasfêmia, mas tratar seu desejo como ato falho, seu momento de loucura e inventar regras que, ao mesmo tempo que mantém a possibilidade de cumprir a vontade divina, a impedem de se realizar. Esse estratagema não proíbe sua realização, mas insere tantas ressalvas que faz com que jamais se realize. É o que Zizek resume pelo “Em princípio sim, mas na prática nunca” ou, apelando para outro notável filósofo e psicanalista, Jean Pierre Dupuy, é o que é definido como “estratagema do catastrofismo iluminado”: se somos obrigados a aceitar uma catástrofe, é preferível que lutemos para adiá-la. O sentido que Zizek quer trazer da religiosidade para a politica é  exatamente este, de que se vivemos uma época apocalíptica, como nos diz o apóstolo São Paulo, ela é a do adiamento desta morte  “nós já estamos mortos , pois a catástrofe já existe e projeta sua sombra para o futuro”, afirma o filósofo lacaniano.

Reunião do governador com a cúpula da Segurança Pública Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Reunião do governador com a cúpula da Segurança Pública
Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Esta não é exatamente a saída adotada por José Ivo Sartori? Seu ato falho não significa a recusa de aceitar a realidade da mesma forma que o estudioso do Talmude de Zizek? E suas desculpas nas redes sociais, de que se enganou, não é exatamente esse estratagema que faz tantas ressalvas que parece que ele não disse o que afirmou? Mas a questão é justamente essa, ele estava convencido de que não havia aumento de violência, equivalente zizekiano do “ em principio sim, mas na prática nunca”. Sartori, a sua maneira, prefere lutar para adiar a catástrofe inevitável, a de que seu governo está sendo um fracasso no que se refere a segurança pública. É esse adiamento da aceitação da morte de seu projeto de segurança pública pelo êxtase da violência social da qual é responsável de que o ato “falho” fala: aliás, ele não é ato falho, é um ato certeiro de diagnóstico inconsciente do que se passa na realidade.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A afirmação do governador de que se enganara é exatamente esse momento em que o simbólico se rompe, onde se marca o rompimento do discurso de campanha, do discurso feito para conquistar o governo junto a sociedade e a realidade. Eles mostram o quanto seu discurso, quando olhado por quem próprio o profere é desprovido de sentido. Se fosse submetido o governador a uma sessão analítica, confrontado com seu ato falho, o mesmo veria a regra desconhecida que vinha seguindo sem o saber, de ver uma regularidade em suas políticas de segurança onde todos vêem ações desprovidas de sentido. É nesse sentido que o engano do governador é um ato falho: ele não tem consciência de maneira imediata de seu conteúdo intencional. Quer dizer, a fala do governador interessa justamente por constituir o elo entre sua vontade consciente e seu desejo inconsciente.

Foto: Leandro Osório/Especial Palácio Piratini

Foto: Leandro Osório/Especial Palácio Piratini

O sucesso na política neoliberal

Mas não percamos o fio da meada. Pois a loucura está inscrita no coração da política neoliberal. Esses atos falhos, essa perda de memória, esses indicadores do mal de Alzheimer governamental (sic!)são apenas efeitos de que José Ivo Sartori está tendo sucesso em sua política neoliberal. Tanto sucesso que talvez esteja até sendo vítima dela. Pois o neoliberalismo que o governo deseja implementar  visa não apenas a destruição de estruturas coletivas, sindicatos, partidos de esquerda e até, pasmem, a família, mas, especialmente, a moderna forma de sujeito construída pela sociedade. O que são essas formas emergentes da psicose coletiva que emergem em variadas formas, desde os linchamentos coletivos à recuperação da pena de talião se não a expressão de que o neoliberalismo, em seu novo horizonte de dissolução do eu individual, está tendo sucesso? Não foi isto que aconteceu quando um homem teve a mão cortada por outro no Centro de Porto Alegre, na tarde de um sábado? Zero Hora de 6 de agosto registra que Sérgio Moacir Araújo da Cunha, 41 anos, com vários antecedentes criminais, teve a mão decepada por um golpe de facão após um roubo no camelódromo. Cenas como essa revelam justamente o colapso de nosso universo simbólico, essa dimensão essencial que distingue os homens dos animais, caracterizada pelo uso da fala ao nos dirigimos aos demais com sinais que representam coisas que garantem nossa humanidade, substuída cada vez mais por ações que matam o simbólico pelas diversas formas de violência que empregam. Não é o que vemos na relação do governador com seu Estado, na relação dos cidadãos com os demais,  que está desaparecendo justamente esse caráter que nos faz humanos e cidadãos? Triste é o Estado em que seu  governador parece já não dizer coisas com sentido, e o pior, ver as pessoas fazerem coisas sem sentido algum.

Foto: Divulgação BM

Foto: Divulgação BM

O filósofo e psicanalista Dani-Robert Dufour afirma que parte da confusão do universo simbólico onde estamos imersos advém de uma desreferencialização promovida pela indústria cultural “o uso da televisão é incapaz de suprir as insuficiências na simbolização”, diz (Le Monde Diplomatique Brasil, acesso em 18/8/2016). O ponto de Dufour é que o mercado é responsável por uma profunda reconfiguração das mentes, já que ele recusa qualquer consideração moral que possa impedir a livre circulação de mercadorias. Para o Capital, todos os valores simbólicos precisam ser desmantelados para que o valor monetário possa emergir. Dufour dá o exemplo disso com o Euro: antes, grandes figuras ocupavam o espaço central do papel moeda, como Descartes ou Delacroix; agora, os Euros tem pontes e portas, exaltando a circulação infinita da mercadoria.

Seria o governador José Ivo Sartori exatamente o “novo homem” neoliberal privado da sua capacidade de julgar  e orientado pelo princípio do lucro máximo?  Na sucessão de desorientações, atos falhos e políticas de desmonte do serviço público, descobrimos o mais perverso efeito das politicas neoliberais, a de que é capaz de desregular não apenas a economia, mas o psiquismo humano. Aos inventários que vem sendo feitos por psicanalistas como Wladimir Safatle e Jurandir Freire Costa,  que estudam a relação do capital com as novas formas de depressão, às diversas dependências, às perturbações narcisisticas, vemos  a perversão apoderar-se da política.

Foto: Rafael Silva/BM

Foto: Rafael Silva/BM

Decomposição do sujeito coletivo

José Ivo Sartori viveu nestes quase  dois anos de governo o desejo de implementar as condições  de expansão do mercado sem que notasse que isto implicava o fim de qualquer  valor transcendental: fim da responsabilização pelo pagamento de salários,  fim da responsabilização com o patrimônio cultural e ambiental (Fundação Zoobotânica) unicamente em proveito do valor comercial. A questão que se coloca é: há ainda em seu governo que faz tudo pela expansão neoliberal, uma instância para que os gaúchos possam decidir se querem ou não a atual politica? Ora, é justamente a ausência desse lugar que deve nos provocar a reflexão política, é a constatação de que é o próprio governador como sujeito que apresenta características de fragmentação psíquica que merecem atenção: se isto for verdade é porque o sujeito coletivo, de forma geral, está em um avançado processo de decomposição.

Não parece ser esta a condição do Secretário Estadual da Fazenda, ao repetir na reunião almoço para empresários  novamente as razões da crise financeira? E a reação de ZH, não foi uma matéria intitulada “Sartori corre atrás de uma miragem”, referindo-se a” busca pelo Rio Grande do Sul pela cobrança por investimentos feitos em estradas federais durante o governo de Pedro Simon (1987-1990) e pelo uso de terras de propriedade do Estado para implantação de assentamentos da reforma agrária pelo Incra, quilombolas e reservas indígenas”, que há duas décadas vem sendo buscada sem sucesso? E se for exatamente isso, uma miragem, um delírio que estiver afetando o governo estadual?

Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Acreditavámos que nossos problemas com o governo do estado se tratavam apenas das políticas do governo neoliberal do PMDB. Estávamos enganados. A política do governo estadual padece do Mal de Alzheimer, quer dizer, está literalmente…doente. É preciso apontar que  esquecimento das obrigações do estado  (pagar em dia, investir em políticas de segurança e educação) estão se tornando mais  graves e frequentes, da mesma forma como são os sintomas da doença. É preciso ver nos sinais de uma debilidade – de aceitar a realidade, nos atos falhos, na visão de ilusões,  na busca de investimentos passado –  os sintomas de que o governo está literalmente…doente!

Quanto mais o governo avançar na sua doença, seja qual ela for, mais se afastará da sociedade. O governo não se lembra para o que foi eleito, esqueceu que foi eleito para melhorar a vida dos gaúchos e não para piorá-la. Como com os doentes, resta uma única alternativa à sociedade: declarar o governo incapaz. Frente a um Estado que não ouve mais a sociedade, revelando total ausência de comunicação, um dos sintomas de doença, é preciso invocar a lei, devemos reconhecer o governo como incapaz de governar e pedir seu impeachment. Por que em certos casos, a doença leva a morte. Queremos esse o destino para o Estado?

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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