Um estado refém do medo

Coluna Democracia e Política

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Foto: Evandro Oliveira/Seduc

Foto: Evandro Oliveira/Seduc

O fim da carta de confiança

O assassinato de uma mulher na última quinta feira (25/8) por um assaltante em frente a uma escola, na Zona Norte de Porto Alegre, representou o fim da carta de confiança dada ao governador José Ivo Sartori. Cristine Fonseca Fagundes, 44 anos, estava buscando o filho na escola quando foi baleada.  A filha, que estava no carro, presenciou a morte da mãe.

O secretário da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, Wantuir Jacini, pediu exoneração do cargo imediatamente.  O Rio Grande do Sul vinha de uma semana repleta de crimes violentos na região metropolitana de Porto Alegre. Uma médica a luz do dia, um triplo homicídio em Alvorada, um homem executado no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). O Jornalista David Coimbra do Jornal Zero Hora expressou o sentimento de todos os gaúchos em sua coluna no último dia 26: o governo Sartori acabou.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Como governos terminam? No Rio Grande do Sul, o Governo Sartori foi uma tragédia anunciada. Sua campanha recusou apresentar um projeto de governo; suas primeiras medidas adotaram a ortodoxia neoliberal, com um corte indiscriminado de despesas que apenas aprofundou a crise do aparelho de estado. Sartori colocou literalmente o estado à venda, transformou o parcelamento de salário dos servidores em método de remuneração e reduziu investimentos. Todas as medidas de aumento de impostos que promoveu deram errado, com a redução de arrecadação por conta da crise financeira, que o próprio governo promoveu. A ideia é clara: a extinção da função pública do estado no Rio Grande do Sul.

Sociedade refém da criminalidade

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O governador faz agora o que desde o início  era pedido pela população: pedir ao governo federal o apoio da Força Nacional de Segurança. A sociedade gaúcha está refém da criminalidade em virtude do conflito entre gangues criminosas, a certeza de ausência de punição dos bandidos, o desaparelhamento dos órgãos de vigilância do governo e o projeto politico neoliberal do PMDB, que governa do Estado e defende o Estado Mínimo. Qualquer semelhança com o que ocorre no governo federal não é mera coincidência.

A morte de Cristine Fonseca Fagundes foi a gota d’agua no imaginário gaúcho porque poderia ser com qualquer um. Como a médica que morreu apenas porque parou em um sinal fechado à luz do dia, sua morte foi o choque de realidade para a população sob o significado da politica de segurança de seu governador: se uma pessoa pode ser assassinada em um momento qualquer da vida cotidiana, da vida de qualquer um, sem estar exposta a nenhum fator de risco, é porque a cidade é refém do medo. Como isso foi possível?

 Os destinos do governo Sartori

No episódio 17 da décima temporada do seriado Grey’s Anatomy, a personagem Cristina, interpretada pela atriz Sandra Oh, imagina os dois caminhos que sua vida pode seguir baseados em uma decisão que ela toma. A cena é metafórica para pensar os destinos do governo Sartori. O episódio é construído de forma diversa da maioria dos episódios da série porque trabalha com a realidade alternativa. O que é interessante são sempre os dois questionamentos centrais: “você sabe quem é?” “você sabe como chegou aqui?”. No episódio, a decisão de um paciente determina o futuro de Cristina em três destinos alternativos.  Sua relação com seu colega de trabalho Owen está fadada ao fracasso.

É a mesma situação do governador Sartori: frente a crise na segurança, ele não faz ideia de como chegou a ela e sua politica de segurança: como na relação de Owen e Cristina, está fadada ao fracasso.

No seriado, a relação fracassou desde que Owen bateu pé que queria uma família e Cristina encerrou sua gravidez, como estamos agora, mais uma vez, vendo o fracasso de um governo que retoma o parcelamento de salários enfrentando um serviço público que responde com paralização das atividades.  A relação de Owen e Cristina desaparece como a do governador Sartori com o serviço público. Agora chega, não é possível deixar de ver em ambas atitudes, do governador e dos personagens, como uma forma preguiçosa de se relacionar com o mundo.  Tanto no seriado como na vida real, o que existem são diferenças irreconciliáveis, são políticas irreconciliáveis e um governador que não faz esforço algum para melhorar a relação. A diferença, no entanto, é que enquanto Owen e Cristina se amam, o governador odeia o serviço público que mantém, e se pudesse, demitiria servidores públicos concursados.

Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

Um governador que não governa

Confrontado pela mesma questão que Cristina “você sabe de onde vem?”, Sartori responderia  que não sabe, já que sua eleição parece ter mais confluência do acaso e recusa do PT do que uma convicção da sociedade.  Confrontado com a pergunta que Cristina se faz: ”você sabe o que você é?”, Sartori não consegue esboçar a resposta, pois é um governador que não governa. Como Cristina, ele sabe que basta um pequeno gesto, que no caso da médica é a opção de um paciente entre a vida e a morte para todo o seu futuro se transformar; no caso de Sartori, o fato que origina os transtornos do seu governo atende pelo nome de parcelamento dos salários. Essa decisão de politica de governo, feita por Sartori, é a principal responsável da crise da máquina pública gaúcha, e com ela, das condições de oferta de segurança pública.

O estado cedendo território a criminalidade

Sem conseguir controlar a violência, o estado cede território a criminalidade. “A violência é destruidora do espaço”, diz Buyng Chul-Han em Topologia de La Violência (Herder, 2016). Mas o poder compartilha com a violência a capacidade de neutralizar o Outro: não é assim que se sentem os servidores, anulados como serviço público, a cada novo parcelamento de salários? Ela é sentida como violência exatamente porque tira a liberdade do servidor de viver sua vida, deixa de ser uma relação estabelecida entre o servidor e o Estado.  E no momento em que deixa de ser uma relação, ela torna-se violência propriamente dita, ela aniquila o Outro, no caso o servidor público. Nesse universo, rompe-se as relações, os servidores não aceitam mais  as ordens dos superiores e terminam por usar da greve com o seu único meio de atuação: no dia em que este artigo é escrito (1/9), delegados de polícia do governo Sartori fazem mais uma paralisação.  Essa violência contra o Estado, no entanto, é bem diversa, não é destrutiva, é produtiva porque é usada com a intenção de transformar o poder, transformar a política do governo Sartori.

Foto: Divulgação BM

Foto: Divulgação BM

O governo que recorre a violência

Tamanha oposição que sofre Sartori advém de sua falta de poder. Por isso recorre a violência e utiliza a Brigada e a Força Nacional para atacar estudantes, como ocorreu no dia do impeachment de Dilma Roussef que mobilizou a população em passeatas pacíficas no Bairro Cidade Baixa que foram severamente reprimidas enquanto era fortificada os arredores do Grupo RBS que apoia explicitamente seu governo. Mas estas demonstrações de violência são sempre frágeis, pois toda violência tem objetivos distintos do poder pois o poder que estabelecer uma relação, é conciliador, enquanto que a violência é destrutiva.

A população abandonada pelos governantes

O sentimento do medo surge quando a população sente-se abandonada pelos governantes que tem a obrigação de lhe proteger. Repito mais uma vez: esta é a prova de que o governo do estado do Rio Grande do Sul não é apenas um governo ruim: ele é um governo doente. Quando uma pessoa adoece e não é capaz de governar a si mesmo, há apenas uma saída: a interdição. No caso do governo do Estado do Rio Grande do Sul, a proposta que corre solta pelas redes sociais é a defesa do impeachment do seu governador, José Ivo Sartori, por sua total incapacidade de governar seu estado.

Essa é a única saída para a crise de segurança pública do Rio Grande do Sul.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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  1. Norma Souza

    A violência urbana é um subproduto do neoliberalismo. O estado mínimo desobriga-se de políticas públicas e do resguardo de direitos sociais. Não se trata de “doença”. Pelo contrário, do ponto de vista dos neoliberais o governo Sartori se mostra exitoso. Quanto ao descontentamento da população, enquanto não for organizada e volumosa, será tratada com descaso. Quando o for, veremos como aparecerá a Brigada Militar.
    abraços

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Comentários

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