Razões da perda do sentido da crítica ao serviço público

Coluna Democracia e Política

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O argumento da diminuição dos servidores públicos

Emile Ruiz é mestre de conferências em História Contemporânea e Ciências Humanas Digitais da Universidade de Lille, na França. Ele publicou no último Le Monde Diplomatique um artigo em que critica a tendência que existe há dois séculos na França onde dirigentes de todas as tendências políticas reivindicam a diminuição do número de agentes de Estado e chega à conclusão de que essa política fez menos economia e mais desorganizou os serviços públicos. Não é exatamente o que está acontecendo no Brasil?

Ruiz parte do desejo do governo de Emmanuel Macron de suprimir 120 mil cargos de funcionários públicos em cinco anos, que segundo o autor, não é nada original: “a denúncia do peso do Estado e do número de seus empregados é, há mais de dois séculos, uma ladainha repetida, segundo os períodos, por agentes cujas convicções atravessam todo o espectro político”. Mas essa crítica, diz Ruiz, é mais ao que os servidores simbolizam do que o seu número. Por quê?

Em França, da Revolução Francesa à metade do século XIX, Ruiz localizou o argumento central daqueles para quem a denúncia do Estado e sua administração era um modo de vida. Ele estava baseado na crítica do poder político das repartições públicas e da sua influência excessiva na administração. A crítica era assim, direcionada ao poder da burocracia, vista como poder autônomo capaz de conquistar o poder estatal e criar obstáculos aos governos. É nesse contexto, afirma Ruiz, que nasce um novo conceito, o de “funcionalismo”, para criticar o número de funcionários de estado.

“Em 1872, ele fez sua grande entrada no oitavo tomo do Grande dicionário universal do século XIX, de Pierre Larousse, e se referia então a um “sistema fundado sobre a existência de um grande número de funcionários públicos”, uma “máquina de empregos públicos”, que constituía uma “praga social”.

A origem da crítica ao serviço público é política, não econômica  

Segundo Ruiz, Larousse criticava não o custo econômico do serviço público, mas a monarquia, uma crítica política, por ter a responsabilidade de criá-lo. Somente após a Terceira República Francesa emerge o argumento de que os servidores públicos são “devoradores de orçamento”, e os jornais logo fazem caricaturas a respeito “a denúncia do funcionalismo estava vinculada então a um apelo a uma purificação indispensável ao bom funcionamento da república”, diz o autor.

Ainda que um discurso contra os servidores públicos tenha emergido em França e em outros países ainda no século XIX, ações efetivas de redução de servidores só começam a serem colocadas a parir da primeira guerra mundial. Estas ações são chamadas pelo autor de “políticas de compressão”, com intervenções diversas. O autor afirma que graças a esta mentalidade, foram suprimidos cerca e 150 mil cargos públicos na França entre 1946 e 1949.

“As consequências não foram pequenas. O próprio diretor do orçamento, ardente promotor das políticas de economia, constatou que essas medidas um pouco brutais e simplistas, entravaram o bom funcionamento dos serviços administrativos”.

Trata-se, segundo Ruiz, de uma escolha entre as missões que o Estado pretende cumprir. E, da mesma forma no governo Sarkozy, a redução de 94 mil cargos de servidores, no balanço feito, “mostram que essa política fez menos economias do que desorganizou os serviços”, mostrando que o argumento dos funcionários públicos demais está tanto desconectado de seu custo financeiro quanto da questão da responsabilidade dos serviços públicos. Ruiz chama a isso de “assassinato do funcionalismo”: “os assassinos do funcionalismo do século XXI minimizam sistematicamente as consequências políticas das economias que preconizam” diz.

O caso da FEE 

Fonte: PMPA

Fonte: PMPA

Não é exatamente o caso da FEE? Aod Cunha, em artigo premonitório publicado em 6 de dezembro de 2016, criticando a então proposta de extinção da FEE pelo governo Sartori, afirmava que “sem a FEE não tenho dúvida que o Estado acabará contratando um número muito maior de consultorias privadas por um custo maior”. Dito e feito. Em 7 de abril, o Jornal Sul21 noticia que o governador contratou a FIPE para fazer o trabalho da FEE pelo dobro do valor.

Cunha naquele ano apoiava no seu conjunto as medidas do governo Sartori, criticou os governos anteriores, que segundo ele, foram incapazes de manter a disciplina fiscal, mas a FEE é o exemplo de que não se faz economia cortando na carne do serviço público. “Não consigo ver na extinção da FEE os ganhos conceituas que foram revelados como norteadores do pacote: economia significativa de recursos ou foco naquilo que é relevante para o Estado.”

Por quê? Para Aod, havia algo de grande valor que era a capacitação de seus servidores que produzem “uma longa lista de base de dados e análises absolutamente relevantes para a tomada de decisões do setor público e privado do Rio Grande do Sul: PIB dos municípios, os indicadores sócios econômicos de desenvolvimento, a demografia regional, etc. Não há boa política pública sem bons dados, indicadores e avaliações de desempenho. O resto é chute. ”

Uma política que dá prejuízo e não lucro

Ora, o que o corte indiscriminado de servidores faz é privar os governantes de terem uma visão global do Estado, as dinâmicas do setor privado e público, e “é assim com uma série de pesquisadores e gestores públicos e privados no RGS. ” Para Cunha, “aqui me parece que é um caso clássico de se jogar a criança fora junto com a água suja“, e lembremos, o autor é justamente um aliado das propostas neoliberais.

Segundo Sul21, a previsão, segundo informações do governo do Estado, é que o contrato com a FIPE que substitui a FEE dure 24 meses, com pagamento de R$ 3,3 milhões por ano. Segundo levantamento realizado pelos servidores, a FEE realizava o mesmo trabalho por um valor aproximado de R$ 1,8 milhão por ano, quase metade do valor que será pago para a empresa.

O mesmo problema ocorre quando a prefeitura de Porto Alegre nomeia, no dia 12, uma pessoa para a coordenação-geral do Escritório-Geral do Metrô de Porto Alegre (MetroPOA). Como se sabe, o projeto foi suspenso, o Prefeito já criticou a iniciativa, a sede foi devolvida, mas isso não impediu a nomeação a bem do serviço público. Marchezan, em nome de tornar eficiente a gestão, usando uma CC disponível, minimizou “ provavelmente deve ser só a nomenclatura do cargo. A pessoa deve estar em outra atividade — afirmou o prefeito.” O fato foi confirmado pelo secretário José Alfredo Parode, de Planejamento e Gestão, que afirmou que o CC em questão não responde pela função para que foi nomeado. Segundo o secretário, como esse cargo comissionado é de alta remuneração, foi utilizado para alocar essa pessoa que, atualmente, realiza atividades em “programas estruturantes” da prefeitura. Segundo Zero Hora, “Ele (o CC) veio justamente em um momento em que o prefeito está buscando estruturar um modelo de governança em cima dos programas e projetos estruturantes e todo o conjunto das gratificações tem uma dimensão de valores diferenciada. O município tem certa dificuldade para atrair bons profissionais. Então, esse programa (MetroPOA) tem esse atrativo (financeiro). Ao longo dos anos, foram sendo criadas essas gratificações, especialmente as gratificações especialíssimas, como é o caso dessa, porque a lei ainda não foi revogada — avalia Parode, que deixou nesta quarta-feira (25) a pasta que passa, agora, a ser comandada por Paulo de Tarso Pinheiro Machado.”

O caso da Prefeitura

Foto: PMPA

Foto: PMPA

O problema é em que em nome de uma suposta eficiência de gestão – contratar com competitividade um servidor qualificado, o Prefeito incorre em desvio de função. Zero Hora apurou junto ao  professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) Norberto Flach, especialista em Direito Público, que “a prática de destinar CCs para atividade diversa daquela em que a pessoa foi nomeada configura uma irregularidade na administração pública.” E completa: “Haveria um descumprimento dessa orientação inicial que é determinada pela Constituição, aquilo que a gente chamaria genericamente de um desvio de função, que surge como um desvio de finalidade da administração pública, uma vez que se está destinando para atividade diversa daquela para a qual o servidor foi destinado e, com isso, haveria um prejuízo, em tese, ao seu desempenho e se frustraria o próprio fim público que é perseguido pela administração.”

A conclusão é que a trajetória do mote contra o serviço público traz idênticas consequências tanto na França quanto no Brasil. Lá como aqui, a única consequência que há na demissão de servidores e extinção de fundações é a desorganização do serviço público como um todo.

Esse é o efeito da adesão do governo a cultura da empresa defendida por managers da iniciativa privada, elas não preenchem a necessidade da função pública. O que se tem, ao contrário, é uma perda progressiva do sentido, o governo espera economizar com o que faz, mas tudo o que consegue é produzir novos antagonismos e incertezas. Nesse sentido, as ações do governo José Ivo Sartori são “insensatas”: as demissões de quadros técnicos e encerramento das fundações não representam ganhos de produtividade, ao contrário, aumentam os custos para o estado de tais medidas. Para os governantes de plantão, o que importa são cifras, rentabilidade, margens, porcentagens, resultados financeiros “Vivem essas cifras como único mundo real”, diz Vicent de Gaulejac. Ao contrário, os servidores públicos sabem que o que realmente importa não é calcular, mas viver, não são as cifras que determinam o valor da FEE, mas seu trabalho, os ganhos que sua cultura e qualificação profissional produz.

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Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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