O verdadeiro alvo do ataque de Orlando

Coluna Democracia e Política

Se você deseja se tornar um colunista do site Estado de Direito, entre em contato através do e-mail contato@estadodedireito.com.br
epc_vigila_avpaulista_atentadoorlando_2016061231733 - Copia2

Créditos: Elaine Patricia Cruz/Agência Brasil

A barbárie e suas questões

O ato terrorista que resultou na morte de 50 pessoas e ferindo outras 53 em Orlando (EUA) colocou ao menos duas questões importantes para a democracia: a necessidade de lutar pela preservação dos direitos humanos e do combate a indústria de armas. Do que se sabe até agora, Omar Matten, 29 anos, filho de pais afegãos, nutria ódio a comunidade LGBT, mantinha supostos laços com terroristas e teve acesso fácil a armas de grande porte. O Estado Islâmico reivindicou o atentado mas a questão de que se trata de um ato homofóbico ou de terrorismo ainda ficou no ar.

Na verdade, as questões parecem se misturar. A maioria das análises critica o terrorista pela sua homofobia declarada. Mas o ponto é maior, é entender a sua homofobia como forma de barbárie. Para o Estado Islâmico, a derrubada das Torres Gêmeas era o começo da sua guerra politica, mas o atentado a boate LGBT revela seu lado mais perverso, o desejo à uniformização, a um modelo único para toda a humanidade, inclusive sexual. O Estado Islâmico não é bárbaro porque atenta contra grupos LGBT, é bárbaro porque atenta contra a diferença, eis a questão. Por isso o caso interessa a homens, mulheres, negros e todas as etnias de forma geral.

A relação com o Outro como estágio de evolução social

A civilização sempre foi o processo de aceitação das diferenças. Liberados dos costumes que faziam um determinado modo de ser ser considerado o mais adequado, ser civilizado hoje deixou de ser o respeito aos bons modos para se tornar o respeito a todos os modos, deixou de ser a reserva das relações sociais para se tornar a reserva à privacidade do Outro. O Estado Islâmico é bárbaro não por estar num estágio inferior de evolução política, mas por estar num estágio inferior das relações sociais.

Por outro lado, a chamada civilização é civilização não por seu avanço cultural, sua ciência, seu patrimônio, seu know-how, mas por seu modo espiritual de vida. Os bárbaros são insensíveis não à beleza da relação diferente, mas à qualquer relação humana que não seja a pregada por sua religião “Os bárbaros são insensíveis ao saber ou a beleza pura, não respeitam o valor destes ou não compreendem seu sentido”, diz Francis Wolff em “Quem é bárbaro?”, artigo da coletânea Civilização e Barbárie (Cia das Letras, 2004).

estado-islamico_atira_jovem_gay_predio_sirya

Estado Islâmico atira jovem gay de prédio, enquanto multidão assiste na Síria | Créditos: Raqqa-sl.com

Finalmente, o Estado Islâmico é bárbaro porque  nega o respeito ao Outro, a cooperação e a compaixão. Sua violência contra o diferente e só ocorre porque pensa-o como algo bestial, mas a sua barbárie é justamente a perda de qualquer sentimento de humanidade, sua forma de dessocialização e desculturação.  É sempre um fenômeno de destruição de cultura e o assassinato coletivo é sua forma de expressão, daí que devemos temer não apenas atos terroristas contra grupos LGBT mas contra outros grupos sociais.

Incivilizado, arcaico e selvagem

O ato de assassinato perpetrado pelo Estado Islâmico que teve 50 mortos é negação da civilização porque nega a civilidade, a defesa dos valores espirituais e a  humanidade no sentido da aceitação das diferenças. É arcaico como forma de socialização, cultura, mostrando que seus defensores agem num estado selvagem porque desumano. Como o 11 de setembro, o ataque é produto de um movimento terrorista que se caracteriza por ataques em massa em tempos de paz, perpetrados por grupos que aceitam o auto-sacrificio animado pelo ódio.

Há, na internet, uma notícia fake sobre o Estado Islâmico que afirma que ele assassinou numa gaiola e queimou 19 mulheres que se recusaram a ser escravas sexuais. Não aconteceu. Mas nada impede ao grupo de faze-lo. Já tivemos exemplos bem piores feitos pelo Estado Islâmico, eis a questão.

Conselho dos Direitos Humanos | Créditos: Ludovic Courtès – Obra do próprio, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=45464991

Esse desejo de massacrar um grupo ou etnia perpetrado pelo Estado Islâmico, é a recusa da diferença em maior grau, equivalente do horror provocado pelo genocídio dos judeus na Alemanha nazista ou dos tútsis em Ruanda. São todos comparáveis entre si mesmo em suas diferenças de duração e contexto porque o simples fato de se fazer parte de um grupo já  implica, para o opressor, um direito  – podiam ser mulheres, negros, enfim.  Quer dizer, não se trata de afirmar que de um lado há os civilizados, e de outros bárbaros, mas de que, em que lado esteja-se, a barbárie é sempre atentar contra os direitos humanos conquistados. Não vimos sob a Alemanha nazista o império da barbárie? O Estado Islâmico não é bárbaro porque se opõe a civilizado, é bárbaro porque nega o direito à diferença.

A civilização islâmica não é o Estado Islâmico. A civilização islâmica foi farol da civilização nos séculos IX e X quando justamente, no Ocidente se rasgavam livros. Foi o Oriente que preservou obras dos clássicos greco-romanos, tinha-se no oriente ciência, química, álgebra, como aponta Francis Wolff, para quem esta civilização foi por muito tempo exemplo de tolerância. Alias Wolff aponta que muitos textos do Corão que revelam preconceitos são, na verdade, textos cristãos. Para Wolff, “chamaremos de bárbara toda cultura que não disponha, em seu próprio cerne, de estruturas que lhe permitam admitir, assimilar ou reconhecer outra cultura – ou seja, a simples possibilidade de outra forma de humanidade”(p.41).

Civilização Islâmica | Créditos: Al Jazeera English – A packed house, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=17509806

Um ataque bárbaro que exige uma resposta civilizada

É a impossibilidade de reconhecer a humanidade em sua diversidade que define o terrorista em solo americano como bárbaro, ele acredita – e os depoimentos dão prova de sua homofobia – que somente uma forma de comportamento de gênero é possível, mas para mim a questão é que não se trata apenas de gênero, a questão é que para o E.I. somente uma forma de humanidade é possível: nesse instante é sua recusa aos comportamento LGBT, e isto não significa diminuir sua importância, ao contrário, é aponta-la como parte integrante de uma recusa maior à diversidade humana.

É o tipo de perfil conservador que recusa manifestações de mulheres, negros e todos os grupos sociais admitindo apenas uma voz, a sua. Esse é exatamente o perfil da direita americana, que lembra, ao longe, mas não muito, a emergente direita brasileira, com seus José Feliciano e seu Congresso Conservador, estes também, bárbaros a sua maneira. A negação do direito de ser LBGT, mas também cigano, judeu, tutsi e mulher, como afirma Wolff, é uma rejeição que revela a impossibilidade de aceitar o diferente, preceito básico para civilizações ditas democráticas.

O assassinato de Orlando tem portanto, uma dura lição para as sociedades civilizadas e democráticas: a de que precisam continuar acreditando nas diferenças sociais, o que inclui, de certo, a recusa de todo o xenofobismo que o atentado pode originar ao mesmo tempo que se repudia a barbárie do Estado Islâmico, que não responde pela civilização islâmica e nem pelos cidadãos islâmicos que buscam a convivência pacifica.

Chamamos de “tolerância” a possibilidade de convivência entre os diferentes, palavra que não parece existir no universo do Estado Islâmico. Como o 11 de setembro, o ataque a danceteria de Orlando é um ataque bárbaro, porque organizado com base da ideia de bem absoluto, mas exige uma resposta civilizada, ou seja, uma resposta que preserva as conquistas da civilização, como a diferença.

 

 downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe