A proposta de extinção da FZB e o direito à memória afetiva

Por Jorge Barcellos – Doutor em Educação

Em 1932, o filósofo Walter Benjamin, escreveu o texto “Infância Berlinense por volta de 1900”, um misto de crônica, memória, ficção e autobiografia. É uma das peças mais notáveis sobre   direito à memória,  inspiradora para os operadores do direito  imaginarem o que perderemos com a extinção da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.

Entre o pacote de medidas para recuperar o estado gaúcho, o governo José Ivo Sartori propõs a extinção da Fundação Zoobotânica Gaúcha. Responsável pelo Jardim Botânico, Zoológico de Sapucaia do Sul e por um Museu,  a instituição é responsável por  inúmeras pesquisas e estudos. Sua importância é notável para a avaliação dos impactos sobre a fauna e a flora de inúmeros empreendimentos no Estado, através de seus Pareceres. Só sua importância na construção de políticas ambientais já justifica sua permanência.

A par dos diversos argumentos em sua defesa, desejo falar de um aspecto pouco explorado, o significado da Fundação para o direito à memória afetiva dos porto alegrenses.O direito à memória é um tema recente dos operadores do direito. Ele se verifica de muitas formas, quase sempre marcadas pela subjetividade. O que o texto benjaminiano inspira neste campo é pensar nos muitos que já passaram pelo Parque Jardim Botânico e que somente as crianças que tiveram ali sua infância poderão compreender o que o filósofo Walter Benjamim pretendeu resgatar em seu escrito. Em primeiro lugar, a ameaça que paira sobre o parque evoca a mesma questão central apontada por Benjamin: que faremos de nossa herança cultural para as novas gerações? Pois o grande “barato” de ter passado a infância no parque Jardim Botânico,  como de praxe também para outras praças da capital como o Parque Farroupilha,  é a visão das correrias e brincadeiras que um parque como esse possibilita. Elas fazem parte de nossa memória, fazem parte das coisas que criam uma infância feliz e a ameaça que paira ao parque é da mesma natureza apontada pelo personagem  “narrador”, tão comum em Benjamin: como faremos para transmitir aos nossos filhos a experiência de ter passado a infância no Parque Jardim Botânico? Quer dizer, a primeira coisa que faz a ameaça da extinção da Fundação Zoobotânica é que ela coloca a possibilidade de roubar do cidadão a possibilidade de narrar uma experiência, a de passar para nossos filhos o que é circular por entre os caminhos do Parque Jardim Botânico. O fim da Fundação anuncia algo pior, o fim do Parque Jardim Botânico, espaço de sociabilidade e lazer da capital. Ou alguém duvida dos interesses do capital imobiliário para a região?

A razão é que memória e narração são essenciais para qualquer cidadão. Como Benjamim intuia, é difícil recuperarmos na vida adulta nossa memória de infância, pois afirma o autor, temos “ consciência do caráter precário de nossa memória” . Daí, para Benjamim, é necessário  “evocar as imagens de uma experiência capaz de formar uma geração, uma descendência.” A possibilidade de perdemos a Fundação da qual o Parque Jardim Botânico faz parte, é o fato de que, em primeiro lugar, essas novas medidas ameaçam a fisionomia do parque, as exposições e os espaços administrativos que podíamos ver na infância e que não veremos mais após sua extinção.Esta não é apenas a transmissão de uma experiência pessoal, é uma experiência necessária e social para quem viveu no parque.  Somos nós todos Benjamins angustiados com o trabalho da memória e o esquecimento que o fim da FZB provocará: quem se lembrará de suas coleções, quem se lembrará do serpentário? Como passaremos para nossos filhos a experiência de olhar o Parque Jardim Botânico como elemento de  nossa infância? Como Benjamim, só tendo consciência da importância da FZB hoje é que damos novos significados as experiências que tivemos em nossa infância no Parque Jardim Botânico. Assim como há uma infância berlinense para Benjamim, há uma infância botaniquense para os cidadãos portoalegrenses.

Benjamin foi o primeiro a elevar a cidade a objeto filosófico. Mas, nesse sentido, como elevar os parques da capital a um objeto de conhecimento? Há, em primeiro lugar, a constatação do  processo galopante de extermínio de nossos parques e praças pela especulação imobiliária. Primeiro foi o Parque Farroupilha, que cedeu parte de seus terrenos para a construção da quadra entre a Rua José Bonifácio e Venâncio Aires, prova irrefutável das transformações de uma cidade que começa a crescer. Depois vieram a transformação da chácara ao lado do Iguatemi em Parque Germânia, com a consequente  loteamento “ venha morar perto da natureza”. Enfim, agora o capital, que já havia transformado uma extensa região nas proximidades do Jardim Botânico em novo foco de verticalização, com a previsão de construção de um shopping center, vê ameaçar o Jardim Botânico com a possibilidade de sua desativação. Você conhece o projeto em andamento: é o da privatização pura e simples, entrega da gestão do espaço público a iniciativa privada. Mas quem garantirá o Museu, quem garantirá a pesquisa, coisas que não dão lucro imediato mas apenas no longo prazo? Alguém duvida que o próximo passo é a construção de prédios no parque? Quer dizer, mais do que a proposta da cidade como tema, é preciso também pensar a evolução de nossos parques e praças  no processo vertiginoso de expansão urbana que os transforma em capital .

Como descreve Benjamim sobre  Berlim, é o próprio Parque Jardim Botânico que é o labirinto do portoalegrense,  um espaço de aprendizagens pelos seus caminhos, suas plantas, seus ambientes. A descoberta privilegiada que se fazia é que naquele parque, outras instituições também viviam ali: havia um notável museu natural, um projeto educativo – que veio a desaparecer . Quantos meninos não caminharam a esmo pelo Jardim Botânico, quantos não tiveram despertados ali pela primeira vez sua paixão pela natureza, quantos ali não empreenderam uma descoberta de si e descoberta do mundo? O parque pelo qual as crianças passeiam, com sua plantas e animais, da mesma forma que fez o jovem de Benjamim, se oferece a decifração. O adulto, ao retornar ao parque, experiência novamente a sensação da criança que um dia foi, a polarização entre a casa e rua de Benjamim é substituida pela polarização entre  casa e parque do portoalegrense.

Não tenhamos dúvida: não se trata apenas de um crime contra a pesquisa gaúcha e as políticas ambientais de nosso estado que a proposta de extinção da FZB carrega. É muito pior: é a possibilidade de fim do próprio Jardim Botânico que acolheu gerações de habitantes de nossa cidade. Em breve, o capital o transformará em mais novo conjunto habitacional, que valorizará pela proximidade do verde pela extinção do próprio verde da região. Que virá depois? O Parque Farroupilha? Onde essa caminhada aos extremos da especulação financeira irá terminar?

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