Antígona: a morte do Direito

 

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

 

 

 

 

O presente artigo “Antígona: a morte do Direito” faz parte de um projeto em desenvolvimento, em construção, um work in progress, in fieri, denominado UNFINISHED∞poiesis – UNDERGROUND RAILROAD POIESIS, que visa a desenvolver uma abordagem parresiasta, surrealista, transgressora e tragicoamorosa do Direito. Trabalhamos na construção de um discurso jusfilosoficopoeticoerótico, uma continuação da Teoria Erótico-Poética do Direito, por um Direito transgressor-liberto, por uma epistemologia transgressora e emancipatória.

O Direito possui uma ligação com as artes e com a filosofia, ligação indissolúvel, a qual na modernidade com o formalismo (e com o humanismo) foi rompida. Esta é uma visão alternativa à visão tradicional do Direito como ciência ou, menos que isso, mera técnica, puro, cartesiano, favorecendo aquela do Direito como poiético, como criação, sendo-lhe essencial o estudo das tragédias gregas, e portanto, um retorno à Antiguidade clássica. A função de transgressão das artes passa a ser entendida como necessária para a autopoiese do Direito. A arte nos permite o assombro, o êxtase, ter de volta a humanidade perdida, a rehumanização do Direito, permitindo-se acessar novos usos e possibilidades para ele. O êxtase, o abandono de si, o desprezo de si de que já falava Nietzsche, ao referir o mais desprezível dos homens como aquele que não despreza mais a si mesmo, foi retomado por Foucault, como essencial no cuidado de si, ao abrir-se assim um espaço, um entre, onde o novo pode se manifestar.

Foto: Pixabay

A tragédia grega revelaria um modo de presença do sujeito no mundo que teria sido calado com e pelo advento da filosofia e, no rastro dela, da ciência moderna. Lacan evoca a tragédia como o berço e o campo próprio da problemática da ética, demarcando, a partir dela, a ética da psicanálise. Na cena trágica as contradições coexistem sem se anularem reciprocamente. As tragédias servem, assim, de material de discussão e estímulo ao pensamento crítico, logo para uma cognição mais aprofundada do direito e da filosofia.

Antígona seria a representante da parresia, fundamento da democracia, do direito, da política, do saber e do conhecimento, ao trazer tal dimensão do cuidado de si, do outro e o conhecer a si mesmo, os quais também estariam presentes na dimensão ética de que Antígona seria o exemplo, da ética da psicanálise com seu imperativo categórico, segundo Lacan, de não se ceder do desejo, negando assim toda ética universalista, em a favor da ética individual, situacional, mas sobretudo do cuidado de si e do outro.

Destaca-se o entendimento poético de Hölderlin, valorizando a fluidez e a sfumato poética, ao valorizar a energia não verbal, que reverbera no que é dito, o alicerce estético da experiência e do conhecimento, conferindo à experiência estética um papel privilegiado. No mesmo sentido entendemos a análise de Foucault ao propor seu interesse pelas heterotopias, não pelas utopias, ou seja, pelos espaços absolutamente outros, nas margens, espaços e indivíduos desviantes, postulando por virar do avesso a narrativa, retomar o não dito, e conseguir outra significação. Uma abordagem que leve em conta o não dito, o resto, possibilitando novos usos, um uso anárquico e dionisíaco, uma ação política revolucionária, dionisíaca, no sentido de dissolução, revogação e desativação das amarras e da distinção entre o profano e o sagrado, não uma forma de sacralização das artes, mas de profanação das artes e profanação do direito, restituindo ao uso comum o que antes estava separado, segregado, pelo sagrado ou sacralização.

Busca-se na esteira de Foucault analisar Antígona como exemplo das experiências-limite, tais como aquelas apresentadas na literatura de Blanchot, Artaud e Bataille, levando-nos a interrogar o que é o ser humano e, especificamente, o que é ou faz-se de si o ser humano atualmente. Neste sentido a importância do estudo da tragédia Antígona já que esta é o exemplo de uma morta-viva, vivendo além da vida e além da morte, além da “até”, local onde o ser humano não conseguiria ficar por muito tempo, além, pois, de todo o limite humano, ou seja, vivendo em uma situação-limite. Na obra “Malfazer, dizer verdadeiro” Foucault vai trabalhar com a análise das tragédias gregas, bem como na obra “Governo dos vivos”, com foco na questão da parresia, sendo fundamental o resgate de tal estudo e da ligação na verdade indissolúvel entre Direito, filosofia e artes (que foi rompida com o formalismo e humanismo da modernidade), a fim de permitir uma cognição mais aprofundada do Direito e do ser humano e um estímulo ao pensamento crítico.

As tragédias trazem ínsitas questões fundamentais, relembrando a necessidade da zetética ao Direito, questões tais como: o que somos nós os humanos? O que é o Direito? O que é o Direito positivo? Quais as condições de um discurso transgressor? Como queremos viver? O que pode um corpo?

Segundo Foucault as tragédias trazem a representação da fundamentação do Direito, com foco em “Édipo-rei”, “Antígona” e “Electra”, trazendo ainda as questões da vingança, da confissão, da origem do tribunal, da fundamentação da lei. “Antígona” e “Electra” no seu entender tratam da questão de como compatibilizar e confrontar o direito familiar dentro do direito da polis.

Em “O Banquete” de Platão, Sócrates afirma temer o ciúme violento de Alcebíades, de forçá-lo ao amor, inspirado por loucura e paixão. Não haveria estabilidade no amor segundo Platão, vindo ele sempre acompanhado de temores da perda e do ciúme, além de o erotismo, a paixão, o desejo e o amor terem um vínculo com a violência, a dor, o sofrimento, a negação, e portanto com a morte, já que a evocariam o desejo de matar ou o suicídio, provocando uma experiência-limite. É o que procuramos com a presente proposta: questionar, e verificar até que ponto a tragédia Antígona, assim como Electra e Medeia, comprovam o jugo de Eros, pois, mesmo sendo heroínas, mulheres fortes e com espírito guerreiro, “parresiastas”, portadoras da coragem da verdade e da vontade de poder, foram sujeitadas e dominadas por um daimon, por um amor que dava sentido às suas vidas.

Antígona, assim como Electra e Medeia representam o feminino, o sagrado, a magia, aspectos fundamentais da política e do Direito, desde sempre, como também atualmente, em especial ante a crise autoimunitária do Direito, que é também epistemo-ecológica, quando ocorre a perversão do Direito, tal como vem sendo trabalhada por filósofos como Willis Santiago Guerra Filho (Direito), Jacques Derrida (Religião), Roberto Esposito (Política). Tomamos tais personagens como exemplos do homo sacer (Giorgio Agamben), do displaced person (Hanah Arendt), revelando-se assim, por trás do véu das aparências, a fragilidade e a ineficácia da Declaração de Direitos Humanos como também dos direitos fundamentais, constitucionais, o embuste da democracia representativa formalista, a farsa do Estado Democrático de Direito e a verdadeira face do Direito – subordinado aos ditames do capital; é o anti-Direito, estado de exceção mal disfarçado, a paródia do Direito, portanto, junto à esquizofrenia da política e à pobreza da filosofia, da experiência humana (W. Benjamin), traumatizada pela igualmente humana, demasiada e desmedidamente humana violência.

Trata-se de verificarmos a questão contemporânea da corrupção do Direito pela lei, do estado de exceção, da força de lei sem lei, da morte do Direito na esteira da morte da TGD – a Teoria Geral do Direito, substituída pela Teoria do Direito, como vem postulando desde 1990 Willis Santiago Guerra Filho -, com foco no conflito Antígona e Creonte, a fim de verificarmos se Antígona poderá ser considerada heroína, rebelde, revolucionária, santa, verdadeira parresiasta, ou criminosa, homo sacer, displaced person, abandonada, banida como uma vítima sacrificial, mas reconhecida como insacrificável, passando também pela questão da repetição: Antígona, ao sacrificar por ele a própria vida, repetiria em certo sentido o gesto “fratersuicida” do irmão-sobrinho diante do tio/pai?

 

Pensemos, então, nas seguintes questões:

O Decreto de Creonte é legítimo, e pode mesmo ser considerado Direito, positivo?

 A conduta de Antígona, por sua vez, de resistência e transgressão, é legítima e amparada pelo Direito, ainda que idealmente considerado?

Qual o papel da transgressão no Direito?

Como as artes poderiam ajudar o Direito em sua humanização, já que sua função é justamente de transgressão e de propor o novo, a criatividade, e também uma forma de cura da doença do homem no mundo, um empreendimento de saúde, tal como dispõe Deleuze com relação à literatura?

Do que se trata, então, é de trazer algumas contribuições para uma reflexão jusfilosoficopoética acerca da relação indissolúvel, coinstitutiva e de simbiose entre Direito, Filosofia e Artes (magia/religião/mitopoética), a fim de respondermos em que medida tais componentes coexistem e se relacionam, tomando como ponto de apoio textos de autores os mais diversos que interpretaram ao longo de dois milênios e meio a tragédia “Antígona”, tais como Aristóteles, Heidegger, Lacan, Hegel, Slavoj Žižek, Judith Butler, Michel Foucault, Hölderlin, Willis Santiago Guerra Filho, entre outros.

O pensar mesmo o entendemos como uma atividade propriamente política, ressaltando-se o vínculo, portanto, entre filosofia e política. O pensamento é subversivo de per si, pois conectado com a resistência ao pensar simplesmente conforme o senso comum, possuindo uma função de desconstrução, de subversão, sendo o filosofar, por isso, no entender de Nietzsche, uma prática poética – além de política, portanto. Busca-se, pois, promover o questionamento e o pensamento crítico, como transgressional, desterritorializante, questionando-se quais seriam as condições de um discurso transgressivo e se é possível uma transgressão efetiva na clausura do sistema.

Foto: Mike Wilson/Unplash

Postula-se, assim, um discurso polifônico, com inspiração em Bakhtin e Warat, quando entre o sujeito e o outro se estabelece o espaço da alteridade, vinculado, portanto, ao discurso e à permanente evolução, respeitando-se a multiplicidade de vozes da vida social e cultural, a pluralidade de consciências equipolentes e o respeito pela alteridade. Bahktin denomina a força dialógica da linguagem de pluridiscursividade, em luta contra a reificação monológica do discurso, como uma única verdade imposta, com respeito à alteridade e ao diferente. Trata-se da “diferença relacionante” de Viveiros de Castro, com o que associamos a Winnicott, ao mencionar este que o relacionar-se exige um respeito à alteridade, e ao “cuidado de si” como atividade relacional, tal como defendeu, por sua vez, em outro contexto, Michel Foucault.

O importante é encontrar novos usos para a linguagem, sendo a poética, a poesia, as artes, para isso, essenciais. Em sentido semelhante postula O. Giacoia pela superação do direito como mera forma (“Agamben. Por uma ética da vergonha e do resto”, São Paulo: N-1 Edições, 2018, p. 170), pela profanação do Direito, na esteira de Agamben, que por sua vez possui influência de Foucault e de Nietzsche, postulando por uma biopolítica menor, pela combinação do cuidado de si com o desprezo de si, mantendo-se no entre, no resto, no afastamento e na distância aberta entre o processo de subjetivação e o de dessubjetivação. Foucault entendia que cada subjetivação implicaria a inserção em uma rede de relações de poder, uma microfísica do poder. Segundo O. Giacoia, ao propor uma filosofia do abandono e uma ética do resto e da vergonha, tal desativação é necessária para a abertura de um novo uso para o Direito, após sua desativação e inoperatividade, que se daria pelo brincar, no jogo da mobilização e ação (ludus) e no jogo discursivo de palavras (jocus). Também deveríamos fazer uso dos corpos no sentido de desativar a divisão entre pensamento (alma, logos, linguagem) e corpo, liberando o corpo para novos usos, em busca da vida como obra de arte (“Agamben. Por uma ética da vergonha e do resto”, ob. ult. cit., p. 79-81; p. 171, p. 225; p. 244). Verbis:

Hoje, especialmente em vista de uma nova biopolítica, só pode ser colocada em termos de processos de subjetivação e de desubjetivação, ou antes, como um resto, um afastamento, uma distância aberta entre processos de subjetivação e de desubjetivação (…).

Ponhamo-nos em busca de uma “justiça poética”, necessária para se atingir a beauté géométrique, a beleza geométrica do Direito, um Direito, portanto, “poético-erótico”, poiético, enquanto uma arte, já que com a poesia voltaríamos à nossa casa, nos encheríamos de “alegria, gozo e prazer”. Com isso conseguiríamos a cura para todos nossos males, já que la cura é venuta in mezzo al gioioso, nos dizeres de Hölderlin, em expressiva tradução italiana, o que relacionamos com Nietzsche, ao considerar, com inspiração também em Schopenhauer, a cura, a salvação na e pela arte, e seu helenismo bem lhe ensinou que qualquer prazer há de ser fundado sobre a proporção, assim como a origem da justiça está na ideia de equilíbrio, como pressuposto de todos os pactos e de qualquer Direito. Já Nietzsche, igualmente, afirmara que o Estado de Direito pode ser somente estado de exceção, enquanto restrição parcial da verdadeira e própria vontade de vida, pois trata-se de um ordenamento hostil à vida, destruidor e dissolvente do homem, uma via oblíqua em direção ao nulo, contradizendo a origem da sociedade como fundada no contrato social, sendo no seu entender, antes, com base na violência que ela se instaura, contrastando com o entendimento de Rousseau, que se referiu ao amor como a origem mais remota da sociedade .

Busca-se, destarte, promover o questionamento e o pensamento crítico, um pensamento desterritorializante, bem como ir em busca dessas explicações, pela mobilização mais ampla possível de conhecimentos que possam ajudar a obtê-las. O objetivo último, portanto, é de natureza pedagógica e investigativa. Pretende-se vir a contribuir para o desenvolvimento de uma teoria/prática sensível à criatividade e à reflexividade inerentes a toda coletividade, na expectativa de despertar o mesmo em quem mais se disponha.

Em suma, é a presente proposta a de (r)estabelecer um diálogo entre o Direito e as Artes, envolvendo a reapropriação e o resgate da função de subversão e transgressão das Artes, contribuindo para a necessária interdisciplinaridade e fertilização mútua dos saberes, analisando-se a influência das Artes no Direito, com foco na interpretação jusfilosofico-poética da tragédia grega “Antígona”, fonte inesgotável de inspiração, pois sempre se renova quanto mais a ela recorremos, apesar de ser uma das obras mais estudadas por juristas e filósofos (ou por isso mesmo), parte da  denominada “trilogia tebana” de Sófocles, representando figura da mitologia grega, filha de um casamento incestuoso de Édipo e Jocasta.

Isto porque Antígona pratica exatamente uma ação transgressora em face de um decreto, na verdade uma lei marcial, um mero ato de força, típico de um estado de exceção. Confirmaria ainda a existência de tal estado de exceção o fato de Creonte, seu tio, tutor e futuro sogro, como tirano, ascendendo ao poder em Tebas, não ter respeitado sequer a própria lei que ele instituíra, pois não aplica, na condenação de Antígona, a sanção prevista normativamente, qual seja, morte por apedrejamento, mas a substitui por morte por emparedamento viva, em uma caverna (Neste sentido, Willis Santiago Guerra Filho, “O conhecimento imaginário do Direito”, Curitiba: Editora Prismas, 2017, p. 44 e ss.), a denotar uma caracterização do que já na Lei das Doze Tábuas romana, de reconhecida inspiração grega, se veio a configurar como o homo sacer, bem estudado por Benveniste em seu “Vocabulário” e tão bem recuperado contemporaneamente por Agamben.

Por meio de uma abordagem jusfilosoficopoeticoerótica visa-se verificar se Antígona poderá ser vista como lídima expressão de um movimento do ser em busca de suas raízes, in fieri, em um movimento do negativo ao positivo, de homo sacer a revolucionária, ao qual se associou em um pacto de sangue seu primo e futuro esposo Hemon, em um movimento de subjetivação, e em assim sendo, teriam sido dados os primeiros passos desbravadores da longa estrada que levaria na modernidade ao pleno reconhecimento dos sujeitos como sujeito de direitos.

 

 

* Paola Cantarini. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.
Se você deseja acompanhar as notícias do Jornal Estado de Direito, envie seu nome e a mensagem “JED” para o número (51) 99913-1398, assim incluiremos seu contato na lista de transmissão de notícias.

 

Comentários

  • (will not be published)