A cruel pedagogia do vírus

 

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

A Cruel Pedagogia do Vírus. Boaventura de Sousa Santos. Coimbra: Edições Almedina, 2020, 32 p.

Créditos: PixaBay

     No distanciamento social, que impõe um necessário recolhimento, os que não se rendem ao imobilismo depressivo, mas que sabem exercitar suas angústias, ao invés de a elas sucumbir, disse Boaventura de Sousa Santos, há algum tempo, acabam construindo no isolamento um campo fecundo para a criatividade e para a reflexão em profundidade.

       Diz-se que William Shakespeare escreveu o Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra, em quarentena, ou pelos menos para vencer as dificuldades da ocasião, ao tempo da peste bubônica que se alastrou em Londres, por volta dos 1606 quando, em conformidade com as posturas os teatros foram fechados, incluindo o The King’s Men, do qual era ator e acionista.

       Outro dramaturgo, seu contemporâneo, Thomas Nashe, também durante a febre bubônica que atingiu Londres em 1592, retirou-se para o interior da Inglaterra para evitar infecções. Data desse período a peça Summers’ Last Will and Testament, na qual expõe suas experiências durante a pandemia.

       Nessa mesma época, um pouco mais à frente, em 1665, Isaac Newton, também em quarentena retirado de Cambridge e confinado na propriedade da família em Woolsthorpe Manor, teria, nessa ocasião, esboçado a Teoria da Gravidade. Nesse período, um quarto da população de Londres morreu por causa da doença.

       Antes deles, o escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio foi pessoalmente afetado pela peste bubônica. Quando atingiu Florença em 1348, seu pai e madrasta sucumbiram à doença. Boccacio sobreviveu ao surto fugindo da cidade e se refugiando na zona rural da Toscana. O Decamerão conta as estórias de amigos que vivenciaram a quarentena durante a peste.

       Outro artista, Edvard Munch, pintor do célebre quadro O Grito, não só testemunhou, mas sofreu a pandemia da gripe espanhola, ao contrair a doença no início de 1919, na Noruega. O seu autorretrato figura-o com as feições ainda abatidas, à frente do leito de doente.

       Ninguém atravessa uma condição tão avassaladora e permanece insensível ao que ela interpela, no que somos e no que vivenciamos, mesmo após o amainar da condição tormentosa. Não será extravagante supor que a voz de Próspero, em A Tempestade, (Ato IV), de Shakspeare, não carregue esse sentido de uma reflexão sobre a vida humana, tanto quanto sobre os escombros de um mundo em necessária transformação. Algo que não escapou à observação de Marx e sua aplicação depois, no manifesto para um mundo futuro.

       Aqui está a fala de Próspero, na tradução de Bárbara Heliodora (Nova Aguilar, 2006), com grifos meus, em negrito e em itálico:

       “Próspero [dirigindo-se a Ferdinando] – Você parece, meu filho, consternado, como se estivesse preso de algum temor. Anime-se, senhor. Nossa diversão chegou ao fim. Esses nossos atores, como lhe antecipei, eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio.”.

       Um tanto dessa prodigalidade interpretativa, soa amplificada pela velocidade atemporal das redes sociais, em geral, sem o sentido crítico que Paul Virilio prognosticava para os novos espaços da pós-modernidade, e que permanecem indiscerníveis nessa condição que Boaventura de Sousa Santos designou como era dos coletivos de solidão.

       Ainda que, à força de chamados de solidariedade, de fraternidade, de sonoridade, seja possível tecer coletivos de comunhão. Com o semestre letivo suspenso em minha universidade preocupo-me deixar à deriva, no limbo angustiante que fragiliza estudantes novatos, meus alunos de primeiro ano da turma de Pesquisa Jurídica. Propus então converter o espaço pedagógico formal num espaço virtual crítico solidário, mantendo um ambiente voluntário de impressões e diálogo sobre a agenda desse tempo. Entre as atividades, inspirado na criatividade dos personagens que lembrei acima, sugeri que escrevessem “Cartas da Quarentena”. Não foi surpresa para mim que esses jovens logo preenchessem esse enjoo de existência com suas cogitações num exercício de enfrentamento às incertezas. Selecionei algumas dessas cartas que estão sendo publicadas no Blog do Coletivo O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com).

       Há aí, registros sensíveis, percucientes, confiantes na reconstrução de novos possíveis futuros. Um excerto, de uma dessas cartas, dirigida à “prezada comunidade”: Carta de Daniela Rocha. Brasília, 30 de março de 2020. Prezada comunidade,… É sabido por todos que o momento atual não é nada reconfortante. Correm soltas notícias de pandemia, crises econômicas, transmissões em massa, e tantos outros infortúnios por aí. Apesar de ser um direito, nem todos podem ficar reclusos na segurança de seu lar e acabam tendo que sair às ruas diariamente, sem saber ao certo se voltarão plenamente saudáveis ao fim do dia. E é a partir dessa perspectiva que desejo iniciar minha carta aos senhores e senhoras. A partir da perspectiva daqueles que não tem garantidos os Direitos que são seus por definição. A partir da triste realidade da desigualdade presente não só no contexto brasileiro, mas também no contexto internacional. É o momento ideal para pensar numa reestruturação ética e social da realidade que nos cerca….”. Futuros são ainda possíveis.

       Entretanto, na algaravia da avalanche de opiniões, o que mais aturde são os muitos ruídos. São vozes dissonantes, umas porque fora do diapasão da dramaticidade da conjuntura; outras porque perplexas em face do angustiante que impregna o real; muitas apressadas para se fazerem presentes no debate que busca reconhecimento; muitas porque são o dernier cri daquilo que já se chamou com charme de intelligentsia, entre elas as mais agudas e bem postas, mas elas próprias indo e vindo porque, nessa conjuntura de dessacralização, como lembram Shakspeare seguido por Marx, tudo que é sólido desmancha no ar, e, o que se afirmou categoricamente ontem, precisa ser reconsiderado hoje, diante de um real que filosofa, conforme advertia Kosik.

       É nesse emaranhado que mais confunde do que esclarece, que leio esse precioso texto de Boaventura de Sousa Santos – A Cruel Pedagogia do Vírus – que, tal qual a metáfora do unicórnio que o autor encontra em Leonardo da Vinci, só dominável se uma aproximação sutil, cativante e segura contiver todos os impulsos de sua disposição inquieta, porque é capaz de identificar todas as representações que eles mobilizam, se fazendo discernível, inteligível, confiável e bem orientado; assim o texto ora Lido para Você.

       Para aguçar o interesse dos leitores, recupero no texto, no capítulo 2, a configuração do que ele chama reino das causas, reino das mediações entre o humano e o não humano, para cuja compreensão ele se vale da metáfora do unicórnio. Citando da Vinci – “O unicórnio, através da sua intemperança e incapacidade de se dominar, e devido ao deleite que as donzelas lhe proporcionam, esquece a sua ferocidade e selvageria. Ele põe de parte a desconfiança, aproxima-se da donzela sentada e adormece no seu regaço. Assim, os caçadores conseguem caçá-lo”. Ou seja, aduz Boaventura: “o unicórnio é um todo-poderoso feroz e selvagem que, no entanto, tem um ponto fraco, sucumbe à astúcia de quem o souber identificar”.

       Escrito nesse momento de pandemia instalada com a propagação do Coronavírus, o Professor Boaventura se distanciou em Quintela, (agradeço a estimada Lassalete Paiva a localização topográfica do recolhimento do professor) uma aldeia que fica a cerca de 40km de Coimbra, uma viagem de mais ou menos 30 minutos de carro, para a Quinta que foi a casa dos pais, onde continua-se a cultivar legumes para a casa e também criar animais: galinhas, coelhos e cabras (exercitando por antecipação, a utopia de Marx: fazer a crítica, arte e poesia de dia e apascentar o rebanho à noite), o texto vale como um mapa de orientação para a inteligibilidade de todas essas vozes.

       De fato, recorro à noção de mapa porque o autor sempre se esmerou no exercício cartográfico como método para articular as várias dimensões do real. E essas dimensões se apresentam desde logo, nas escalas e nas projeções que organizam o livro, nos cinco ensaios ou capítulos que o compõem: Capítulo 1 Vírus: tudo o que é sólido se desfaz no ar; Capítulo 2 A trágica transparência do vírus; Capítulo 3 A sul da quarentena; Capítulo 4 A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições; Capítulo 5 O futuro pode começar hoje.

       Não é coincidência que eu tenha recuperado em Shakspeare e na sequência, em Marx, a metáfora do esvanecimento, que alude ao trânsito ruinoso das transformações que o curso da história provoca, não para naufragar na liquefação dos seus escombros, mas para projetar novos futuros possíveis. Por isso que o livro começa com o capítulo do desfazimento do que parece sólido e se completa com pistas para esses novos futuros alternativos.

       Já na abertura, uma questão fundante. Ei-la: “Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise. Talvez os dois tipos de situação sejam igualmente indutores de conhecimento, mas certamente que nos permitem conhecer ou relevar coisas diferentes. Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?”.

       Para enfrentá-la, ao seu estilo elegante e dialético, ele se propõe conferir um conjunto de pontos de partida para o desafio de suas contradições interpel antes: 1) A normalidade da excepção. Para ele a contradição está em que a “atual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade”, porque o que parece normal é, com efeito, um estado de crise permanente dissimulada sob a ilusão de normalidade, que é a realidade de permanência instável do próprio modo de produção capitalista. 2) A elasticidade do social. Se, conforme ele constata, “em cada época histórica, os modos de viver dominantes (trabalho, consumo, lazer, convivência) e de antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana”, somente uma razão preguiçosa (outra categoria analítica do autor, conforme o seu A Crítica da Razão Indolente. Contra o Desperdício da Experiência), se conforma à “ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hiper capitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível”. 3) A fragilidade do humano. A pandemia colapsa a percepção de segurança promovida pelas ofertas mercadológicas do comércio do social e o surto viral pulveriza esse comum. Porque “Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela uma consciência de comunhão planetária, de algum modo democrática. A etimologia do termo pandemia diz isso mesmo: todo o povo. A tragédia é que neste caso a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos outros e nem sequer nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não serão possíveis outras?”. 4) Os fins não justificam os meios. Enquanto dá-se um forte arrefecimento da dinâmica produtiva do modo de acumulação, com as consequências negativas inter sistêmicas, emergem consequências positivas para o equilíbrio social e planetário, em apoio à vida. Há capacidade política para construir respostas democráticas para estabelecer um relação de precedência da vida inclusive de toda a vida planetária sem que ela precise ser consumida. Ao contrário, o autor problematiza: temos condições de “imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo”. 5) A guerra de que é feita a paz. Não se pode perder de vista o modo de construção da narrativa da pandemia, mesmo nos meios de comunicação, que não disfarçam o sentido de sua mobilização entre dois contendores assentados numa disputa econômico-ideológica competindo por hegemonia: EUA e China. Essa narrativa arma a disposição para tomar partido entre que se espera ser o vencedor ou o vencido. 6) A sociologia das ausências. Aqui outra categoria de análise que se completa com a sociologia das emergências. Uma exigência para divisar os dramas que se desenrolam de modo muitas vezes difuso nas sombras que a visibilidade vai criando, a exigir atenção para as condições que se degradam nas zonas de invisibilidade que se descortinam em muitas regiões do mundo e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um de nós, bastando abrir a janela.

       No Capítulo 2 – A trágica transparência do vírus, o ponto de partida está em que “debates culturais, políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao quotidiano vivido pela grande maioria da população, os cidadãos comuns– «la gente de a pie», como dizem os latino-americanos. Em particular, a política, que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem vindo a demitir-se dessa função. Se mantém algum resíduo de mediação, é com as necessidades e aspirações dos mercados, esse mega cidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu nem tocou ou cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever. É como se a luz que ele projeta nos cegasse. De repente, a pandemia irrompe, a luz dos mercados empalidece, e da escuridão com que eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem emerge uma nova claridade. A claridade pandêmica e as aparições em que ela se materializa. O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos. Estas aparições, ao contrário de outras, são reais e vieram para ficar”.

       Capítulo denso, no qual as principais chaves de explicação que o autor desenvolve em suas obras se conjugam para sustentar um posicionamento inteiramente orientado para sustentar o valor da vida humana e planetária: “sujeita a uma ordem escatológica e aproxima-se do fim. A intensa teologia que é tecida à volta dessa escatologia contempla vários níveis de invisibilidade e de imprevisibilidade”.

       Nesse passo é que, em face da pandemia, o autor desvenda os modos de dominação principais que subordinam o humano, reduzindo as dimensões emancipatórias do civilizatório de modo feroz e destemperado como o unicórnio selvagem de da Vinci: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. No enlace dessas forças poderosas e alienadoras do humano e de coisificação da vida, pondo à mostra sua fauce canibalizadora, revelando a fúria selvagem, na moldura de “duas paisagens principais onde é mais visível e cruel: a escandalosa concentração de riqueza/extrema desigualdade social e a destruição da vida do planeta/iminente catástrofe ecológica. É ante estas duas paisagens brutais que os três seres todo-poderosos e suas mediações mostram aquilo a que nos conduzem se continuarmos a considerá-los todo-poderosos”. Mas exatamente aí, onde hiberna o perigo, esse Cérbero de três cabeças, é que se coloca uma perspectiva de alternatividade que deriva da alegoria do vírus, conforme indica o autor: “Mas serão eles todo-poderosos? Ou não será a sua omnipotência apenas o espelho da induzida incapacidade dos humanos de os combater? Eis a questão”.

       O desafio é então dirigido ao pensamento crítico e a sua disponibilidade para apreender a realidade interpelante. Para ele, nessa passagem, que designa como a realidade à solta e a excepcionalidade da excepção, o autor afirma a pandemia “confere à realidade uma liberdade caótica, e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente está condenada ao fracasso, dado que a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar ou escrever sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa linguagem à beira do abismo”. Enorme desafio para os intelectuais, pois, “tal como aconteceu com os políticos, os intelectuais também deixaram, em geral, de mediar entre as ideologias e as necessidades e as aspirações dos cidadãos comuns. Medeiam entre si, entre as suas pequenas-grandes divergências ideológicas. Escrevem sobre o mundo, mas não com o mundo. São poucos os intelectuais públicos, e também estes não escapam ao abismo destes dias. A geração que nasceu ou cresceu depois da Segunda Guerra Mundial habituou-se a ter um pensamento excepcional em tempos normais. Perante a crise pandêmica, têm dificuldade em pensar a excepção em tempos excepcionais. O problema é que a prática caótica e esquiva dos dias foge à teorização e exige ser entendida em modo de sub-teorização. Ou seja, como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos impedisse de ler e muito menos reescrever o que fôssemos registando no ecrã ou no papel”. Trata-se, diz o autor, de exercitar a função intelectual “atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar”.

       No capítulo A sul da quarentena, o caráter discriminatório da pandemia é acentuado, indicando o autor como é “mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população”. O sul, metáfora epistemológica recorrente e estruturante do pensamento emancipatório do autor, em toda a sua vasta obra, não designa, sabemos, um espaço geográfico. Ele esclarece: o sul “É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual. Proponho-me analisar a quarentena a partir da perspectiva daqueles e daquelas que mais têm sofrido com estas formas de dominação e imaginar, também da sua perspectiva, as mudanças sociais que se impõem depois de terminar a quarentena”. Sem esgotar o rol, exibindo dados designativos, ele mostra as situações mais agudas, que recaem sobre as mulheres; os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos; os trabalhadores da rua; os sem-abrigo ou populações de rua; os moradores nas periferias pobres das cidades, favelas, barriadas, slums, caniço etc; os internados em campos de internamento para refugiados, imigrantes indocumentados ou populações deslocadas internamente; os deficientes; os idosos. Assevera que a lista dos que estão a sul da quarentena está longe de ser exaustiva, aludindo aos presos e às pessoas com problemas de saúde mental, nomeadamente depressão e justifica que o elenco selecionado mostra duas coisas: “Por um lado, ao contrário do que é veiculado pelos media e pelas organizações internacionais, a quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam. Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis em face do pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele”.

       Penso que aqui no sul do sul, no Brasil e em toda a região americana (norte, centro e sul), a questão indígena toma uma dimensão que na pandemia se aproxima do genocídio. Com Renata Carolina Corrêa Vieira tratei desse tema (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589513-o-direito-achado-na-rua-como-horizonte-democratico-participativo-do-espaco-institucional-a-rua; https://www.comissaojusticaepazdf.org.br/do-peru-profundo-os-povos-indigenas-trazem-de-suas-lutas-pelo-bem-viver-uma-proposta-de-pacto-para-renaturalizar-os-direitos-humanos/; https://constitucionalismo.com.br/democracia-e-bem-viver/) e aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, mais recentemente: http://estadodedireito.com.br/coronavirus-covid-19-tome-cuidado-parente/).

       Em todas essas intervenções, o autor foi sempre uma referência para melhor pontuar o tema no seu apelo de afirmação e reconhecimento, de modo a acentuar a condição limite de sobrevivência em todos os âmbitos, dos povos indígenas originários (SOUSA SANTOS, Boaventura. Um Acontecimento Histórico para a Organização Indígena. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 11. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, abril de 2007, p. 24): “Foi então que os povos indígenas redescobriram o seu carácter transnacional originário e resolveram pô-lo ao serviço da constituição de um novo sujeito e de uma nova ação política internacional plasmados numa agenda política contra a investida do neoliberalismo e contra o violento e avassalador processo de desnacionalização dos Estados e das economias…”. Ou para disputar a narrativa que os situassem como identidade de sujeitos sem se deixar reduzir à condição de sub-produto da dimensão ecológica, silvícolas conforme eram designados no constitucionalismo pós-colonial (SOUSA SANTOS, Boaventura. Raposa Serra do Sol – Brasil. Demarcação de Território Indígena em Perigo, petitiononline. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 24, Brasília: Faculdade de Direito da UnB, julho de 2008, p. 2: “reconhecimento da diversidade étnico-racial cultural como valor fundante do ‘processo civilizatório nacional’ e da própria unidade do país e a função socioambiental da propriedade, com distintas formas de manejo sustentável dos territórios pelas variadas comunidades culturais existentes no Brasil”.

       Na continuidade do livro, o capítulo 4 – A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições. São elas: o tempo político e mediático condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre. Aqui é lição que expõe o modelo “que está hoje a conduzir a humanidade a uma situação de catástrofe ecológica, por meio da exploração sem limites dos recursos naturais”. E esta exploração que agora leva o planeta a se defender da tremenda violação que sofre. E esta violação “traduz-se na morte desnecessária de muitos seres vivos da Mãe Terra, nossa casa comum, com defendem os povos indígenas e camponeses de todo o mundo, hoje secundados pelos movimentos ecologistas e pela teologia ecológica”, como mostra a carta encíclica do Papa Francisco Laudato Si’. Sobre o Cuidado da Casa Comum. A Lição 2, é a de que as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga, mais uma vez que junto com outras violências, a pandemia discrimina tanto na prevenção, como na sua expansão e mitigação, os trabalhadores empobrecidos, as mulheres, os trabalhadores precários, os negros, os indígenas, os imigrantes, os refugiados, os sem abrigo, os camponeses, os idosos, as vítimas sacrificiais no altar do darwinismo social, no Brasil, de modo explicitamente declarado pelas principais autoridades, a começar pelo Presidente da República. A Lição 3, salienta que enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro, porque na crise revela que os seus agentes, entre eles os governos, degradam as políticas sociais em benefício de uma austeridade que sacrifica a cidadania e os direitos humanos. A resenha dessa lição, diz o autor, está em ser “aqui que a pandemia opera como um analista privilegiado. Os cidadãos sabem agora o que está em causa. Haverá mais pandemias no futuro e provavelmente mais graves, e as políticas neoliberais continuarão a minar a capacidade do Estado para responder, e as populações estarão cada vez mais indefesas. Tal ciclo infernal só pode ser interrompido se se interromper o capitalismo”. Na Lição 4, A extrema-direita e a direita hiper-neoliberal ficam definitivamente (espera-se) desacreditadas, projetando a descrença na possibilidade de um capitalismo de rosto humano, até porque o seu fundamento é preservar a economia, correndo os seus agentes “riscos irresponsáveis pelos quais, esperamos, serão responsabilizados: a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia, nem como trabalhadores nem como consumidores, ou seja, populações descartáveis como se a economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres ou de corpos desprovidos de qualquer rendimento”. A Lição 5 – O colonialismo e o patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda, chama a atenção para os corpos racializados e sexualizados, que se tornam corpos vulneráveis, não só pelas condições de vida impostas socialmente pela discriminação a que estão sujeitos e que, na pandemia, ficam ainda mais expostos na seletividade dos cuidados. Finalmente, a Lição 6 – O regresso do Estado e da comunidade. O autor retoma os princípios de regulação na sociedade moderna já fortemente trabalhados em suas obras – o Estado, o mercado e a comunidade, para desafiar a um aprendizado de alternativas que recuperem, em face dos défices desses modelos, as que sejam credíveis de novas solidariedades e formas de emancipação.

       Assim que, nos espaços comunitários, ali onde a justiça avança conforme propunha Luis Alberto Warat, barro adentro, experimentos de auto-gestão da crise estão sendo mediados, menos com o Estado e até mesmo em negociação com frações do chamado crime organizado (que o recentemente demitido ministro da saúde, em depoimento público coberto pelos meios de comunicação, indicou como interlocutor possível). Tanto quanto nas articulações de intensa concertação política de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a exemplo da Carta Pública Pela Defesa dos Direitos da Mãe Terra e Pela Vida da Amazônia com seus Povos, aqui no Brasil, com proposta de dezenas de subscritores e com adesões em aberto, visando mudar a forma de vida e as leis para garantir os direitos da natureza – Mãe Terra, porque, diz a Carta: “…Anos e anos de pressão, especialmente das insistentes mobilizações dos povos originários e da publicação da Carta da Terra no ano 2000, fruto de um processo internacional participativo com adesão de mais de 4.500 organizações da sociedade civil e organismos governamentais, levaram a ONU a declarar, em 2009, o dia 22 de abril como Dia Internacional da Mãe Terra. Agora, no ano 2020, a celebração do Dia da Mãe Terra está sendo realizada com a humanidade vivenciando uma dura experiência de globalização: em meses, um denominado “novo coronavírus” está afetando todos os povos do Planeta. Levado pelos diversos caminhos do mercado, desde o do turismo até o de mercadorias, sua rápida capacidade de contágio só encontrou a estratégia de isolamento de todas as pessoas como medida capaz de diminuir a sua velocidade e evitar o colapso dos serviços públicos e privados de saúde.

       O orgulhoso mercado globalizado experimentou seus limites e contradições, e hoje a economia capitalista, cultuada como um ídolo todo-poderoso, revira-se no esforço de prever o tamanho da sua queda. As pessoas, contudo, estão refazendo o aprendizado de viver a partir de sua casa – ou da falta dela -, e com tempo para refletir sobre o sentido da correria, do desgaste e exploração a serviço do um crescimento econômico sem limite num planeta limitado, e num sistema que concentra riqueza em poucas mãos e multiplica inseguranças e miséria para a maioria da espécie humana…”.

       Assim que chega ao capítulo final: o futuro pode começar hoje. Se a pandemia e a quarentena revelam que são possíveis alternativas, que as sociedades podem se adaptar ou inventar novos modos de viver quando isso é necessário, se se pode, como exortou o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, redescobrir a política como dimensão sublime da caridade (n. 205), “só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios”, será possível alternativas para uma nova humanidade. E essa nova articulação, o autor conclui, “pressupõe uma viragem epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no planeta”.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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  1. Carmenisia

    Excelente reflexão. Ajuda-nos a compreender e buscar serenidade para o enfrentamento da pandemia, as questões humanas, sociais e econômicas que implica.

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Comentários

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