Diálogos com Marilena Chauí

Coluna Lido para Você

 

José Geraldo de Sousa Junior*

 

PAOLI, Maria Célia (Organizadora). Diálogos com Marilena Chauí. São Paulo: Editora Barcarolla, 2011, 260 p.

 

Ao final de setembro de 2018, entre os dias 24 e 26, a Universidade de Brasília homenageou a filósofa Marilena Chauí, com um programa triplo: iniciando com a outorga do título de Doutora Honoris Causa, em bela cerimônia no Auditório Memorial Darcy Ribeiro – Beijódromo, presidida pela Reitora Márcia Abraão; seguindo-se a abertura da Semana Universitária e do Colóquio especialmente instalado para lhe prestar o tributo devido Marilena Chauí, o trabalho e a obra: história e engajamento filosófico-político; e, durante os três dias consecutivos, o Colóquio propriamente dito, minuciosamente concebido e preparado por uma qualificada comissão composta por ex-alunos, todos colegas professores: Alex Sandro Calheiros de Moura; Erick Calheiros de Lima –; Ericka Marie Itokazu; Herivelto Pereira de Souza; Maria Cecília Almeida e Raquel Imanishi, todos do Departamento de Filosofia da UnB.

Dadas as circunstâncias, o trabalho inicialmente apresentado pela própria homenageada, cuidou do tema Por uma universidade democrática. No conjunto do Colóquio se fizeram presentes na Mesa-redonda 1: O trabalho do livre do pensamento, com a  mediação de Alex Sandro Calheiros, e as exposições de Henrique Piccinato Xavier (USP), com o tema Marilena Chaui entre obra e vida: o estilo de uma filosofia; eu próprio Marilena Chaui: um pensamento que irradia dignidade política para o Direito;  e Maria das Graças de Souza (USP)

            Na Mesa-redonda 2: A Nervura do Real,  a mediação foi de Alexandre Hahn, com os trabalhos de Luis César Oliva (USP) Chaui e o modelo de natureza humana; Tessa de Moura Lacerda (USP) Singularidade e liberdade e Cristiano de Novaes Rezende (UFG) Sobre Imanência e Geometria em A Nervura do Real I.

Marilena Chaui durante o ato contra o golpe e contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff na noite FFLCH , na Cidade Universitária. Cecília Bastos/USP Imagens

            A Mesa-redonda 3: Espinosa e a política teve a mediação Maria Cecília de Almeida com as participações de Antonio Carlos dos Santos (UFS) Como interpretar as Escrituras? Um possível diálogo entre Espinosa e Locke; de Bernardo Bianchi Barata Ribeiro (Freie Universität Berlin) Uma teoria espinosista da emancipação e de Mariana de Gainza (Universidad Buenos Aires/Conicet) A Filosofia entre as luzes e as trevas.

            Para a Mesa-redonda 4Educação e a democracia brasileira a mediação foi de  Glaucia Figueiredo, compondo a mesa Homero Santiago (USP) Marilena educadora; Fernando Bonadia (UFRRJ O discurso competente e a reforma do ensino no Brasil”

            A 5a. Mesa-redonda teve como tema Escritos políticos e a contemporaneidade; contando com a mediação de  Herivelto Pereira e a presença de Olgária C. F. Matos (USP) Democracia: entre infortúnio e sorte; Stefano Visentin (Università di Urbino) La servitud volutaria nel neoliberalismo e Vittorio Morfino (Univ. di Milano-Bicocca) La tradizione marxista a contropelo. La questione della temporalità plurale.

            A última Mesa-redonda (6): Cultura e democracia teve  a mediação Raquel Imanishi e dela participaram Francisco de Guimaraens (PUC-Rio) Divisão social, direitos e democracia na filosofia de Marilena Chaui; Marine Pereira (UFABC) Entre as linhas que teceram uma nova cultura política: Marilena Chaui na Secretaria Municipal de Cultura e também a ex-Prefeita de São Paulo Luiza Erundina (ex-prefeita de São Paulo), sob cujo mandato Marilena exerceu a Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo.  Erundina, atualmente deputada federal pelo PSOL, abordou o tema A experiência de gestão: democracia e cidadania cultural, que deu identidade a sua gestão e foi marcado pelo trabalho de Marilena Chauí e sua equipe na Secretaria de Cultura. 

            Em breve, os Organizadores e a Editora da UnB prometem a edição de livro contendo o material discursivo do Colóquio, do mesmo modo que, nos Encontros de Londrina e de São Paulo resultou o livro agora Lido para Você.

            Nessa edição de Diálogos com Marilena Chauí, a querida Maria Célia Paoli que organiza o livro lembra que o está em causa no Colóquio e na publicação é o sentimento de compreender o Brasil, que encontra na figura homenageada, confirma Ana Amélia Silva, no prefácio, a pensadora que indica rumos, que enfrenta os desafios do exercício da crítica, interpreta a realidade brasileira e coloca seu engajamento político a serviço da expressão, autônoma, dos movimentos sociais.

            Por isso o Diálogo de trata o livro, mantido autoral e tematicamente no círculo afetivo e de interlocução altiva com amigos e admiradores da grande pensadora: Veneno e Remédio: Marilena Chauí e o Pensamento Sociológico dos anos 1980-1990, de Cibele Saliba Rizek; Novos Sujeitos Entram em Cena, de Edgar Salvadori de Decca; Sobre Sujeitos e Histórias: Barcarola para Marilena, de Marcos A. Da Silva; Culpa e Violência, de Flávio Aguiar; Intelectuais e Militância: o Caso Marilena Chauí, de Maria Amália Pie Andery; Um Fio de uma Outra Meada, de Paulo Eduardo Arantes; Movimentos Sociais e Intelectuais na Construção da democracia Brasileira nos Anos 1980, de Marco Aurélio Garcia; Imaginação e Feitiço: Metamorfoses da Ilusão, de Olgária Chain Feres Matos; Três em Uma: Como e Por Que Estudar Espinosa no Brasil, de Sérgio Cardoso; Marilena Chauí como Professora, de Isabel Maria Loureiro.

            Os temas e os autores, nota-se, têm inscrição no que se chama filosofia da práxis, aquela que exige do intelectual mais que atitude contemplativas, antes, compromisso orgânico com a transformação do mundo, numa aliança com a subjetividade ativa de protagonismos com sujeitos coletivos, inscritos nos movimentos sociais, ainda que trazendo em boa medida, apelos filosóficos, naturalmente espinosianos ao gosto da homenageada e referencia ao seu agir pedagógico, já que é será sempre professora.

            Assim é que durante todo o tempo ela participa e debate com o círculo que se formou para a homenagem. O livro registra essas inscrições, com um resumo do debate final que se formou, mas também, com as intervenções intermediárias da própria Marilena: Sujeitos Sociais e Aporias do Tempo (p. 91-104); Intelectuais e Militância: a Experiência na Secretaria Municipal de Cultura (p. 147-162); Meu Jeito de Fazer Filosofia (p. 203-210); e, em arremate, Sobre a Amizade – Introdução à “Ética e Violência” (p. 211-244).

            Compareci aos dois encontros, de Londrina (UEL) e de São Paulo (USP), compartilhando o diálogo e as homenagens a grande filósofa, professora, política e amiga merece. Como síntese de minhas intervenções fiz o registro que a edição acabou incorporando, com o título por mim proposto (p. 15-28):  MARILENA CHAUÍ: AMOR À SABEDORIA E SOLIDARIEDADE COM A VIDA e que foi o ponto de partida e de continuidade para a minha exposição no Colóquio de Brasília (UnB).

Comecei por assinalar que na biografia que fez de Hannah Arendt, a sua discípula Elizabeth Young-Bruehl alude à atitude de amor ao mundo que caracterizava a grande pensadora, incapaz de ser contida na invisibilidade do pensamento e na intemporalidade da história. Uma interlocução em torno de Marilena Chauí evoca imperceptivelmente sentimento equivalente. A poderosa energia de sua trajetória filosófica, como amor ao conhecimento que, se bem modelo sofisticado e elegante de pensar o mundo, não se deixa jamais alienar das expectativas do real, mantendo-se sempre solidária ao sentido da existência humana projetada na vida.

            Como Arendt, Marilena Chauí parece também conduzir-se ao impulso de uma “vocação para a amizade”, o que em parte explica a pronta acolhida de tão importantes personalidades para uma interlocução em torno do seu pensamento. Mas, se em Arendt o que a movia era a “linguagem da amizade”, na prazeirosidade de boa companhia, a amizade em Marilena Chauí tem ainda a dimensão do compartilhamento, isto é, disposição fraterna e agregadora, apta à comunhão e ao entrosamento de esforços, que se escoram reciprocamente a partir de uma causa comum.

            Por isso, o potencial mobilizador de seu pensamento é capaz, simultaneamente, de orientar a reflexão crítica empreendida em trabalhos de companheiros associados, formando vivo entreposto de trocas intelectuais, enquanto deixa livre a inteligência dos que se associam em engajamento da razão, para reconhecer a legítima influência de quem acumulou mais conhecimento e experiência.

            Uma interlocução com Marilena Chauí é, portanto, um compartilhar fraterno em torno de uma causa comum, tendo como denominador a pujança de seu pensamento filosófico e de seu engajamento político que tornam possível o colóquio com as aproximações históricas, sociológicas, políticas e jurídicas dos que acudiram a essa interlocução.

            Penso que ela própria acolherá esses pressupostos de interlocução, se se recordar da referência que fez – num debate de 1982, com Roberto Lyra Filho a propósito de seu livro “O Que é Direito” – à virtude da amizade, citando La Boétie: A amizade é um momento sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar pela mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a injustiça; e, entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entreamam, mas se entretemem; não são amigos, mas cúmplices.

            A referência é duplamente relevante. Primeiro, no sentido de reafirmar o pressuposto intencional de participação num colóquio de interlocução em torno do pensamento de Marilena Chauí: a amizade, em sentido filosófico, de amor ao conhecimento; e em sentido político, de solidariedade com a vida. Depois, como razão de presença nessa interlocução: a homenagem ao pensamento de escola, influente na crítica e na reconstrução do pensamento jurídico fundante de um agir político para legítima transformação do mundo.

            De fato, no final dos anos 1960, a crise de paradigmas de conhecimento e de ação humanas projetadas no mundo abriu, no campo jurídico, o mesmo debate crítico que se travava nos demais âmbitos sociais e teóricos. Sob o enfoque da crítica, portanto, e ao impulso de uma conjuntura política complexa em sua adversidade, notadamente no contexto social da realidade latino-americana, o pensamento jurídico ocidental buscou reorientar-se paradigmaticamente, rejeitando a matriz positivista da redução da complexidade ao formalismo legalista e de descolamento dos pressupostos éticos que fundam uma normatividade legítima.

            Um pouco por toda parte, no Brasil também organizaram-se núcleos críticos de pensar jurídico, com vocação política e teórica, reorientando o sentido de sua reflexão. Com denominações comuns – critical legal studies, critique du droit, uso alternativo del derecho, direito insurgente – esses movimentos convocavam em manifestos a sua reinserção do direito na política, impulsionados por um protagonismo que derivava em geral da crítica marxista a uma atitude militante, sob a perspectiva ora de um “jusnaturalismo de combate”, ora de um “positivismo ético”.

            A partir de seus estudos desenvolvidos desde os anos 1960 na Universidade de Brasília, em perspectiva dialética, o jurista Roberto Lyra Filho organizou a seu turno uma sofisticada reflexão crítica ao positivismo jurídico, inicialmente inscrita num manifesto, lido na UnB em 1980, no qual formulou os fundamentos de uma concepção de Direito (1982), livre dos condicionamentos ideologizantes dos modelos antitéticos do juspositivismo empiricista e do jusnaturalismo metafísico, entendido este, assim, não como a norma em que se exteriorize, senão como “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.

            Não se trata aqui de fazer a recuperação histórica desse processo, de estabelecer o balanço de seus achados ou a cartografia dos temas que suscitou, senão, para efeito da interlocução com Marilena Chauí, designar pontos de inflexão que, com sua influência, lhe atribuíram configuração e sentido epistemológico relevantes.

            Com efeito, no debate com Roberto Lyra Filho, já referido, enquanto esse autor procurava imprimir à sua reflexão uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia antinômica dos pares ideológicos – jusnaturalismo e juspositivismo –, foi Marilena Chauí, certamente, a referência filosófica para a superação do obstáculo epistemológico:

 Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”, afirmando que: “Se o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde, entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo, pode ou não realizar-se (CHAUÍ, Marilena, Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito”. Revista Direito e Avesso, nº 2, Brasília, 1982. Também publicado em Desordem e ProcessoEstudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986).

A alta densidade do pequeno estudo de Marilena Chauí contido nesse texto influenciou decisivamente o pensamento jurídico crítico brasileiro, constitutivo do que já foi denominado “Nova Escola Jurídica Brasileira”, sendo significativo recolher, para efeito desta interlocução, um aspecto por ela levantado para a compreensão da gênese da própria justiça e do direito em sua apreensão dialética, vale dizer, ou como ela própria diz, a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora.

            Neste aspecto, aliás, os trabalhos de Marilena Chauí estabeleceram um norte seguro para a interpretação dessa ação transformadora, conduzida pela mediação do Direito, enquanto processo dentro do processo histórico.

            Com efeito, a partir da constatação derivada dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais, desenvolveu-se a percepção, primeiramente elaborada pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e das configurações de classes constituídas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.

            Ana Amélia da Silva, em sua tese de doutoramento (SILVA, Ana Amélia. Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLHCH/USP, 1996), referiu-se à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática do direito, tanto em termos teóricos quanto de criação de novas institucionalidades”.

            É disso que trata Eder Sader (Quando Novos Personagens Entraram em Cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988), apontando para a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais e aludindo à capacidade de constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que eles passaram a desenvolver.

            O fato é que a irrupção dos movimentos operário e populares, sobretudo a partir dos anos 70, rompendo em ação coletiva o isolamento determinado por uma ordem autoritária que restringia a mobilização das organizações sociais, fez emergir uma nova sociabilidade, com a marca da autonomia que passou a caracterizar a ação dos sujeitos sociais assim constituídos.

            Vera da Silva Telles (Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos. In: KOWARICK, Lúcio (org). As Lutas Sociais e a Cidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 247-286) referiu-se a esta emergência dizendo: hoje, descobrem-se os trabalhadores como sujeitos autônomos, dotados de impulso próprio de movimentação, sujeitos de práticas cujo sentido político e dinamismo não são derivados dos espaços cedidos pelo Estado e cujas reivindicações não são reflexo automático e necessário das condições objetivas, mas passam por formas de solidariedade e de sociabilidades coladas na vida cotidiana.

            Caracterizados a partir de suas ações sociais, estes novos movimentos sociais, vistos como indicadores da emergência de novas identidades coletivas, isto é, coletividades políticas, sujeitos coletivos, puderam elaborar um quadro de significações culturais de suas próprias experiências, ou seja, do modo como vivenciam suas relações, identificam interesses, elaboram suas identidades e afirmam direitos.

            A análise sociológica ressalta que a emergência do sujeito coletivo pode operar um processo pelo qual a carência social contida na reivindicação dos movimentos, é por eles percebida como negação de um direito, o que provoca uma luta para conquistá-lo. De acordo com Eder Sader, a consciência de seus direitos consiste exatamente em encarar as privações da vida privada como injustiças no lugar de repetições naturais do cotidiano. E justamente a revolução de expectativas produzidas esteve na busca de uma valorização de dignidade, não mais no estrito cumprimento de seus papéis tradicionais, mas sim na participação coletiva numa luta contra o que consideram as injustiças de que eram vítimas. E, ao valorizarem a sua participação na luta por seus direitos, constituíram um movimento social contraposto ao clientelismo característico das relações tradicionais entre os agentes políticos e as camadas subalternas” (Sader, 1998).

            A questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais, em configuração determinada pelos processos sociais e os direitos novos que elas enunciam.

            É, novamente, Marilena Chauí quem vai oferecer a fundamentação filosófica que permite sustentar o sentido projetivo dessa nova identidade social para indicar o seu potencial protagonismo de sujeito instituinte de direitos.

            Em prefácio ao livro de Eder Sader, ela propõe a seguinte questão: Por que sujeito novo? Antes de mais nada – ela própria responde – porque criado pelos próprios movimentos sociais do período: sua prática os põe como sujeitos sem que teorias prévias os houvessem constituído ou designado. Em segundo lugar, porque se trata de um sujeito coletivo e descentralizado, portando, despojado das duas marcas que caracterizam o advento da concepção burguesa da subjetividade: a individualidade solipsista ou monádica como centro de onde partem as ações livres e responsáveis e o sujeito como consciência individual soberana de onde irradiam idéias e representações, postas como objeto, domináveis pelo intelecto. O novo sujeito é social; são os movimentos populares em cujo interior indivíduos, até então dispersos e privatizados, passam a definir-se a cada efeito resultante das decisões e atividades realizadas. Em terceiro lugar, porque é um sujeito que, embora coletivo, não se apresenta como portador da universalidade definida a partir de uma organização determinada que operaria como centro, vetor e telos das ações sociopolíticas e para qual não haveria propriamente sujeitos, mas objetos ou engrenagens da máquina organizadora. Referido à Igreja, ao sindicato e às esquerdas, o novo sujeito neles não encontra o velho centro, pois já não são centros organizadores no sentido clássico e sim ‘instituições em crise’ que experimentam a ‘crise sob a forma de um deslocamento com seus públicos respectivos’, precisando encontrar vias para reatar relações com eles.

            Formulada nesses termos a questão, tornou-se possível para o pensamento jurídico crítico abrir novas perspectivas paradigmáticas, de relevante alcance político, quando se consideram os problemas de legitimação em sede de teoria da justiça, para poder pensar-se em um novo sujeito coletivo que se emancipe enquanto sujeito coletivo de direito, num novo modo de produção do social, do político e do jurídico.

            É que, no paradigma da modernidade, o direito constituiu-se à base de uma noção fundamental – a noção de sujeito de direito –, a partir da qual a pessoa humana que lhe serve de referência antropológica se individualiza e polariza a estrutura abstrata da relação jurídica.

            Na tradição filosófica, o sujeito aí radicado reflete, na sua impregnação iluminista, uma visão de mundo dominada pela racionalidade e a autotransparência do “pensar em si mesmo” que deseja “ser sujeito”, segundo Kant. Nesta sua origem histórico-filosófica, o conceito coincide com a noção aristotélica de substância ou, como em Descartes, com quem começa a tradição moderna do sujeito como “início” em si mesmo do indivíduo – o legislador de si próprio no sentido kantiano.

            As referências trazidas por Marilena Chauí e então apropriadas para o debate do pensamento jurídico crítico vão permitir as condições de intersubjetividade não substancial, mas relacional, do fazer-se sujeito, no processo mesmo no qual este se revela e se realiza.

            Franz J. Hinkelammert (Hinkelammert, Franz J. La Vuelta Del Sujeto Humano Reprimido Frente a La Estreategia de Globalización, Alemanha: Colloquium 2000, Faith Communitie sand Socia Movements Facing Globalisation, Hogeismar), desde uma perspectiva de libertação, sugere que o sujeito não é um a priori do processo, senão que resulta como seu a posteriori. Supõe, portanto, uma intencionalidade solidária no agir protagonista dos novos sujeitos, em alargamento das possibilidades institucionais e da criação de espaços de vivência da “sujeiticidade humana”.

            Penso que em outro viés, mas com resultado idêntico, Patrick Pharo (Le Civisme Ordinaire, Paris: Librariedes Méridiens. Réponses Sociologiques, 1985) propõe um “civismo ordinário” para se referir às formas de sociabilidade constituídas em relações de reciprocidade de um cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.

            No estudo de Ana Amélia da Silva, que toma como base as estratégias sociais para a institucionalização do “direito à moradia”, ela refere à formação de “agendas sociais” e de “espaços públicos” para aí inserir o que denomina “direitos de cidadania”, reivindicando outras leituras aptas a conceber “o horizonte de propostas e lutas pelos direitos de cidadania como um campo social em construção”.

            Trata-se de ampliar “os sentidos da democracia”, de modo a permitir, como lembra Maria Célia Paoli  (PAOLI, Maria Célia. “Apresentação e Introdução”. In: OLIVEIRA, F. & PAOLI, M. C. (orgs). Os Sentidos da Democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global, Editora Petrópolis: Vozes, 1999) recuperar os direitos de uma cidadania que, reinventando a si própria pela discordância e pela sua própria recriação, possa reinventar novos caminhos de construção democrática.

            A noção de democracia como invenção, que Marilena Chauí toma em Claude Lefort para redesignar a cidadania, compreendida como cidadania ativa, é outra importante contribuição que permitiu amplificar o seu diálogo com o pensamento jurídico crítico.

            Por ocasião de sua participação na XIIIª Conferência Nacional da Ordem dos Advogados, realizada em Belo Horizonte, em 1990, propõe: a cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua autoposição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados e cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa, portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política.

            Antecipando o tema da questão democrática, que retomaria depois no último capítulo de seu Convite à Filosofia (São Paulo: Ática, 1994.), ela o associa ao processo de “criação de direitos” e, discorrendo sobre a “liberdade como autonomia”, designa os “sujeitos capazes de dar a si mesmos a lei”, sujeitos, portanto auto-nomos (auto, isto é, a si próprios; nomos, a norma, a lei), referindo-se à possibilidade de que, no interior da sociedade civil, para além do privado e dos interesses, se constitui uma região instaurada pelos direitos, âmbito da cidadania. E, conclui: cidadania – a capacidade de colocar no social um sujeito novo que cria direitos e participa da direção da sociedade e do Estado.

            Até aqui elaborei um esboço de algumas referências destacadas que demarcam o estatuto da interlocução do pensamento jurídico crítico com a potente reflexão de Marilena Chauí. Uma interlocução que abre perspectivas, para recuperar, no dizer do constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1998), o impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade, sob pena de restar o direito, no caso deste autor, o direito constitucional, definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político. Por isso, para Canotilho, há que incluir-se no direito constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas, a partir de um olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de  domínio político-democrático materialmente legitimado.

            É assim que Roberto Lyra Filho passa a entender o direito como modelo de legítima organização social da liberdade. Mas o que significa isso? Conforme ele indica, o direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos, e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito).

            A rua aí, evidentemente, é o espaço público, o lugar do acontecimento, do protesto, da formação de novas sociabilidades e do estabelecimento de reconhecimentos recíprocos na ação autônoma da cidadania (autônomos: que se dão a si mesmo o direito). Por isso mesmo, Marshall Berman (BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1896) fala da rua como espaço de vivência que, ao ser reivindicada para a vida humana, transforma a multidão de solidários urbanos em povo.

            Mas a rua é concomitantemente, lugar simbólico, a impregnar o imaginário da antropologia e da literatura, em arranjos sutis de natureza explicativa dos acontecimentos. Assim em Roberto da Matta, que faz articulação dialética entre a “casa” e a “rua” para esclarecer comportamentos culturais. Assim também na poesia, sempre em antecipação intuitiva de seu significado para a ação da cidadania e da realização dos direitos. Veja-se Castro Alves (“O Povo ao Poder”) e Cassiano Ricardo (“Sala de Espera”). Do primeiro, são conhecidos os verbos: “A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor./ Senhor!, pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu…/”. Do segundo, não menos expressivos estes versos: “… Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de <lá fora>/ Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, republicano, universal./ onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento …

O Direito Achado na Rua”, expressão criada por Roberto Lyra Filho, título que designa atualmente uma linha de pesquisa e um curso organizado na Universidade de Brasília, quer, exatamente, ser expressão deste propósito de compreensão do processo aqui descrito, enquanto reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas de criação de direito e, assim, como modelo atualizado de investigação: 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas.

            Iniciei este texto numa alusão à amizade, citando, por lhe saber dileta, uma passagem de La Boétie. E findo com outra citação também referida à amizade, que é igualmente cara à Marilena Chauí, tanto mais que em palavras de Espinosa: Somente os homens livres são gratos uns aos outros e procuram unir-se pelos laços da mais estreita amizade… Somente os homens livres agem de boa-fé e jamais com perfídia.

            Num colóquio a que acudimos livremente, somos agraciados por uma interlocução com o poderoso pensamento de Marilena Chauí que nos ilumina a todos, e aos de boa-fé engrandece.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

 

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