Inseminação caseira: você sabe o que é isso?

Renata Malta Vilas-Bôas, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

Renata Malta Vilas-Bôas

 

O sonho de ter um filho ou uma filha leva às pessoas a buscar soluções para que isso ocorra. Contudo, nem sempre o caminho tradicional é o caminho para aquela família.

Para a formação de uma família existe diversos caminhos, e podemos citar a adoção como um deles.

Ocorre, porém, que algumas pessoas desejam ter o seu filho com a sua genética e nesse caso recorrem a procedimentos médicos. A reprodução assistida, amparada pelo médico, nem sempre é acessível aos brasileiros, pois o custo é muito alto e o SUS não tem como atender à demanda existente.

Enquanto o procedimento para a reprodução assistida e regulada pelo Conselho Federal de Medicina, e a ANVISA e responsável por fiscalizar o banco de sêmen, pois a doação é anônima, na inseminação caseira não se tem nenhuma dessas etapas.

Por considerarem o valor da inseminação artificial longe de suas posses, e com isso, o sonho de ter um bebê, algumas pessoas e/ou casais estão partindo para a realização da inseminação caseira.

A inseminação caseira não é amparada por nenhuma legislação e com isso o Poder Judiciário tem recebido demandas para regularizar a situação do bebê quando ele nascer.

A realização da inseminação artificial caseira ocorre quando a mulher – que é fértil – em seu período de ovulação introduz o sêmen doado por alguém.

Enquanto que na inseminação artificial realizada nas clínicas na inseminação artificial caseiro sabe-se quem é o doador.

A parte física é até relativamente fácil de ser realizada, pois demanda basicamente de uma mulher fértil, um doador de sêmen e um instrumento para levar o sêmen até o útero – normalmente se utiliza uma seringa para isso.

Mas, e as questões jurídicas ?

O nosso ordenamento jurídico não trata dessa possibilidade e dessa forma as pessoas que optaram por fazer a inseminação caseira precisam recorrer ao Poder Judiciário para que seja reconhecida a dupla maternidade, por exemplo.

Aos poucos o Judiciário tem sido demandado para responder a processos em que casais buscam regularizar a inseminação artificial caseira. Para isso devem demonstrar que estão casados ou que possuem união estável, que a gravidez decorreu da inseminação artificial caseira, sem qualquer afetividade com o doador do esperma.

No caso temos uma decisão proferida por um magistrado do Rio de Janeiro, que não só reconheceu a inseminação artificial caseira como também reconheceu o direito da criança que irá nascer a ser registrada com o nome de suas duas mães.

Vejamos a decisão:

Sentença

Em 10 de setembro de 2021, na JI – MARÉ, perante o MM. Juiz, Dr. ANDRÉ SOUZA BRITO, presentes o Ministério Público, a Defensoria Pública e o(s) requerente(s),

realizou-se a presente audiência. XXX e YYYY relatam que YYYY está grávida, através de inseminação caseira, porém, apesar da relação afetiva e a constituição familiar, necessitam de intervenção do poder judiciário para que, ao nascer, o filho do casal possa ser registrado em nome de ambas as requerentes.

Pelo Ministério Público foi dito que não se opõe ao pedido formulado, eis que concede melhor proteção à criança, já que fruto do núcleo familiar constituído pelas requerentes.

Pelo MM. Juiz foi proferida a seguinte sentença: Trata-se de pedido formulado por XXXX e YYYY para que ambas as partes que compõem o núcleo familiar constem como genitora da criança que nascerá, concebida através de inseminação artificial caseira realizada por YYYY. Foram anexados os documentos que instruem a inicial, comprovando a existência do casamento entre as partes e o exame comprovando a gravidez (atualmente com 12 semanas de gestação em 19/08/2021).

É o RELATÓRIO, FUNDAMENTO E DECISO.

Presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, não há impedimento para apreciação do mérito. As partes comprovaram que são casadas, declarando que a gravidez de uma das integrantes da unidade familiar se deu através de inseminação artificial caseira, sem qualquer afetividade com o doador do esperma.

A inseminação caseira é uma realidade que deve ser reconhecida pelo poder judiciário, permitindo que casais homoafetivos possam ter filhos, apesar das dificuldades financeiras, eis que os altos custos da reprodução assistida afastam uma imensa parcela da população brasileira, pois tal serviço não é amplamente fornecido pela rede de saúde pública.

Por certo, a decisão de gerar uma criança se deu com o apoio de ambas as requerentes, conforme decisão mútua de terem seu próprio filho. Como consta da petição inicial, não mais se define o parentesco em razão da identidade genética, eis que a verdade biológica foi ultrapassada pela realidade vivencial. Não obstante, o sistema jurídico ainda está baseado no modelo binário (homem e mulher) como padrão de família, mesmo diante das plúrimas configurações familiares.

Se estivéssemos diante de um casal típico, homem-mulher, as partes não necessitariam recorreu ao Poder Judiciário para reconhecimento da filiação.

Assim, reconhecendo os direitos de duas pessoas do mesmo sexo constituírem casamento, devem as mesmas serem tratadas com base no princípio da igualdade, reconhecendo que a criança gerada é de responsabilidade dessas mesmas pessoas, ampliando a rede de amparo e cuidado da criança.

Vale citar os Princípios de Yogyakarta – legislação internacional de direitos humanos relacionada à orientação sexual e identidade de gênero – dentre os quais se prevê o direito de constituir família:

Princípio 24: Direito de constituir família Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. Os Estados deverão:

  1. Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o direito de constituir família, inclusive pelo acesso à adoção ou procriação assistida (incluindo inseminação de doador), sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero;
  2. Assegurar que leis e políticas reconheçam a diversidade de formas de família, incluindo aquelas não definidas por descendência ou casamento e tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que nenhuma família possa ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros, inclusive no que diz respeito à assistência social relacionada à família e outros benefícios públicos, emprego e imigração;
  3. Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que em todas as ações e decisões relacionadas a crianças, sejam tomadas por instituições sociais públicas ou privadas, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, o melhor interesse da criança tem primazia e que a orientação sexual ou identidade de gênero da criança ou de qualquer membro da família ou de outra pessoa não devem ser consideradas incompatíveis com esse melhor interesse;
  4. Em todas as ações ou decisões relacionadas as crianças, assegurar que uma criança capaz de ter opiniões pessoais possa exercitar o direito de expressar essas opiniões livremente, e que as crianças recebam a devida atenção, de acordo com sua idade e a maturidade;
  5. Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que nos Estados que reconheçam o casamento ou parceria registrada entre pessoas do mesmo sexo, qualquer prerrogativa, privilégio, obrigação ou benefício disponível para pessoas casadas ou parceiros/as registrados/as de sexo diferente esteja igualmente disponível para pessoas casadas ou parceiros/as registrados/as do mesmo sexo;
  6. Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que qualquer obrigação, prerrogativa, privilégio ou benefício disponível para parceiros não-casados de sexo diferente esteja igualmente disponível para parceiros não-casados do mesmo sexo;
  7. Garantir que casamentos e outras parcerias legalmente reconhecidas só possam ser contraídas com o consentimento pleno e livre das pessoas com intenção de ser cônjuges ou parceiras. Devemos considerar que o exercício dos direitos reprodutivos e do direito de constituir família, são correlatos à efetivação do direito à realização da dignidade humana, hão de ser respeitados pelo Estado.

O Juízo ouviu as partes requerentes, restando demonstrado que a criança em desenvolvimento é, afetivamente, filha de ambas, e biologicamente, filha de uma delas, sendo que compete à sociedade respeitar a vontade das partes e a determinação judicial, tratando-os com todos os direitos inerentes à nova situação social.

Os genitores devem ser tratados com respeito e podem, em verdade, DEVEM, exigir que todos os demais membros da sociedade os respeitem, sem que haja qualquer tipo de discriminações, de qualquer espécie, eis que os direitos personalíssimos são irrenunciáveis.

O pedido visa a proteção das requerentes, efetivamente genitoras da menor, e da própria criança que nascerá, e estão diretamente vinculados aos direitos e liberdades fundamentais. No caso em tela, devemos aplicar a presunção de paternidade no casamento homoafetivo também.

O vínculo genético oriundo da reprodução natural, é reconhecida pelo ordenamento jurídico como modalidade de filiação a inseminação artificial heteróloga consentida, como forma de proteção dos direitos reprodutivos da pessoa, quando haja qualquer circunstância que inviabilize a concepção pelos meios naturais.

Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, trata-se de um caso típico de filiação socioafetiva no qual, inclusive é negada a possibilidade de impugnação da paternidade com base em prova pericial biológica, já que considera-se formado o vínculo no instante em que se concedeu aquiescência para o procedimento fertilizatório no cônjuge/companheiro.

A mesmíssima ratio legis autoriza o reconhecimento da dupla maternidade na situação vivenciada pelo casal homoafetivo, que se utilizou da técnica de auto inseminação caseira para realização do projeto familiar comum.

A Constituição prevê a punição a qualquer discriminação atentatória a esses direitos e liberdades (art.5º XLI) e assegura seu cumprimento através do Judiciário em face da possibilidade legal de se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, inclusive com reclamação de perdas e danos, nos termos do art.12 do Código Civil. Tornou-se essencial para sua existência proteger este direito personalíssimo de que a criança tenha uma certidão de nascimento que não venha a gerar duvidas e constrangimentos, se o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu ser possível a alteração de nome e gênero no assento de registro civil mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo (Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 DF) como não permitir que os genitores figurem como pai e mãe independente do gênero que ostentam. A legislação constitucional e a infraconstitucional preveem que sejam adotadas todas as providências necessárias para evitar todo constrangimento que possa a ser direcionado à criança, afastando qualquer tipo de discriminação em razão da condição sexual dos genitores.

Por todo o exposto, não há qualquer óbice e deve ser autorizada a emissão de certidão de nascimento como pretendida, eis que claramente compatível com a previsão constitucional e legal e que tal pleito tem por objetivo garantir a dignidade humana de todas as partes envolvidas, genitoras e filha.

No tocante ao registro público, cabível a emissão da certidão de nascimento da criança em nome de ambas as requerentes. Note-se que o Provimento 63 do CNJ, de 14/11/2017, que instituiu modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, não contém qualquer referência a quem seria pai ou mãe, posto que apenas identifica os genitores com o campo “filiação”.

Em razão do exposto, na forma do art. 487, I, do CPC, JULGO PROCEDENTE o pedido e determino a expedição de ALVARÁ JUDICIAL autorizando que o feto que está sendo gerado (com 12 semanas em 19/08/2021) por YYYY, portadora da carteira de identidade de  por ocasião de seu nascimento com vida seja registrado junto ao RCPN competente em nome de ambas as requerentes, figurando a mãe biológica e XXXXX em FILIAÇÃO, com a indicação dos respectivos avós da criança.

DETERMINO ao Responsável pelo Expediente do RCPN que vier a emitir a certidão de nascimento proceda a devida lavratura, devendo ser aplicada a Lei Estadual 6225/2012, que estabelece que a declaração do interessado suprirá a exigência do comprovante de residência. Sem custas em razão da gratuidade de justiça deferida, sendo esta extensiva a todos os atos cartorários necessários ao cumprimento da presente sentença, de acordo com o aviso 400/2002 da CGJ. Pelas partes foi dito que renunciavam ao prazo recursal.

Pelo MM Dr. Juiz foi dito que homologava a renúncia, transitando a sentença na presente data. Vale a presente como ALVARÁ JUDICIAL.

P.R.I.

Arquivem-se com baixa.

A audiência deu-se por encerrada às 12:20 horas.

Nada mais havendo, foi dada por encerrada a audiência, cuja ata segue assinada pelos presentes. Rio de Janeiro, 10/09/2021.

Código de Autenticação: 41AH.3IQD.BK1Y.V453 Este código pode ser verificado em: www.tjrj.jus.br – Serviços – Validação de documentos

 

 

renata vilas boas
*Renata Malta Vilas-Bôas é Articulista do Estado de Direito, advogada devidamente inscrita na OAB/DF no. 11.695. Sócia-fundadora do escritório de advocacia Vilas-Bôas & Spencer Bruno Advocacia e Assessoria Jurídica, Professora universitária. Professora na ESA OAB/DF; Mestre em Direito pela UPFE, Conselheira Consultiva da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Acadêmica Imortal da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Integrante da Rete Internazionale di Eccelenza Legale. Secretária-Geral da Rede Internacional de Excelência Jurídica – Seção Rio de Janeiro – RJ; Colaboradora da Rádio Justiça; Ex-presidente da Comissão de Direito das Famílias da Associação Brasileira de Advogados – ABA; Presidente da Comissão Acadêmica do IBDFAM/DF – Instituto Brasileiro de Direito das Familias – seção Distrito Federal; Autora de diversas obras jurídicas.

 

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