Filosofia do Martelo: Santificação do Riso e Vias de Fuga – Parte I

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

 

 

 

 

*Paola Cantarini Guerra

O presente artigo faz parte do projeto de pesquisa de pós-doutorado junto a UNICAMP – UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, – Departamento de Filosofia, sob a supervisão do Professor Dr. Oswaldo Giacoia Jr., e visa, em suma desenvolver uma proposta de superação da “forma direito”, ou seja, ultrapassar as concepções modernas, portanto subjetivistas, em que o Direito é pré-suposto como um instrumento à disposição do homem para regular a vida em sociedade, ao ampliar e enriquecer o debate através da interdisciplinaridade e transdiciplinaridade. Pretende-se (re)pensar a relação entre o Direito, a Filosofia, a Arte, a mitopoética (religião/magia), com fundamento, em específico, no pensamento de Nietzsche, bem como a origem religiosa da política moderna, e a afirmação de que o político e a negação se tornam indestituíveis, pois o político invade a estrutura da negação – trata-se da hostilidade absoluta, política e guerra se entrelaçando de forma indissolúvel. Visa-se, assim, trazer algumas contribuições para uma reflexão jus-filosófica acerca da relação indissolúvel, co-institutiva e de simbiose ente tais disciplinas a fim de respondermos em que medida tais componentes co-existem e se relacionam. O objeto principal é ao se analisar as tragédias e as comédias gregas, situando a religião no pensamento de Nietzsche, ou seja, verificar a Religião em (e de) Nietzsche e a origem mágica ou mito-religiosa do Direito. Nietzsche, embora se oponha a qualquer manifestação que se apresente como transcendente, de um “mundo além”, bem como a toda forma de monoteísmo, não nos parece que proponha, simplesmente, o ateísmo como alternativa. Isso porque, para ele, a religião se mostra como parte essencial de toda cultura saudável, ou seja, daquelas do passado e, especialmente, da Antiguidade grega mais recuada, sendo exatamente uma tal saúde que se perdeu na modernidade, e que ele espera possamos alcançar superando-a, reatando vínculos perdidos. Outra forma de cura, portanto, da doença do homem no mundo,em sentido similar ao que já propunha Aristóteles, e depois de Nietzsche, Deleuze, vendo as artescomo empreendimentos de saúde, em busca de uma forma de religião ligada necessariamente às artes, nos dizeres de Nietzsche, que não acreditava em um Deus que não saiba dançar.É para semelhante cura da cultura que seria necessário mobilizar a Filosofia, pondo-a no comando da ciência, da política e também da Religião. A favor de uma Filosofia que não mate nossos corpos, pela recuperação da dimensão corpórea da vida, por meio da experiência. Corporeidades dando surgimento a novas formas de pensar e de ser, uma forma não explorada de produção de conhecimento na área jurídica, uma metodologia de ensino jurídica que envolva essencialmente a Arte e a Filosofia.

O Direito se tornou supérfluo, sendo patente a incompatibilidade entre este e Justiça; a Teologia carece de sentido, todos os valores foram invertidos e vigora agora o ruído, a técnica e a propaganda (Heidegger), o domínio da técnica, e a domesticação do homem, que cada vez menos se relaciona com outros, substituindo todo e qualquer contato pela tela de um computador ou teclado de um celular. Afastando-se do outro, afasta-se cada vez mais de si mesmo, e com isso também se deixa de pensar sobre a questão fundamental de toda filosofia, já colocada na entrada do Oráculo de Delfos da Grécia, dedicado ao Deus Apolo e enfatizada por Sócrates – a do conhece-te a ti mesmo, na medida da tua proporção, bem como por Heráclito de Éfesos, quando escreveu “eu me busco a mim mesmo” (frag. 101).

As tragedias e as comédias gregas, envolvendo os conceitos de “Thémis”, “Diké” e “nomos”, nos ajudariam na compreensão acerca do desvio ocorrido em Roma do Direito e de sua transformação em paródia ou comédia, e a possibilidade de vias de fuga neste sentido da crise autoimunitária do Direito e a comédia como uma possível via de fuga.  Mais do que atribuir, portanto, na maior parte das vezes, importância ao estudo das tragédias, há uma importância fundamental também da comédia nos dias atuais, a qual encontra-se, desde à origem, ligada à política e à Filosofia, possuindo um íntimo significado subversivo ou, destituinte, por colocar em questão o sistema dos lugares comuns e dos valores preestabelecidos que nos governam. Questiona-se: o Direito atual resta ainda indissociável do componente mágico e do religioso, tal como na Antiguidade e também nas sociedades, também ditas, erroneamente, primitivas? Há espaço para um novo tipo de religião mítico-poética, essencialmente ligada ao Direito, a favor de sua reumanização?Para os gregos, assim como que para os romanos e hindus, a lei teria surgido, a princípio, como parte da religião, havendo que se falar em um Direito sagrado e em uma religião transcendente, apoiando-se, pois, em crenças mítico-religiosas e institucionalmente em um clero especializado, com um status bem definido, com a função de reinterpretação dos mandamentos religiosos em regras de conduta, verdadeiros, teólogos-juristas, uma verdadeira estrutura burocrático- administrativa de dominação. Neste sentido, vale lembrar Hans Kelsen, segundo o qual a ideia de causalidade, que estaria na própria base de nossa concepção científica, é na verdade de cunho religioso, assentando se na norma da retribuição (Vergeltung), da pena e do prêmio merecidos, emanada de uma vontade transcendental e todo-poderosa. Assim, na concepção anímica dos primitivos, a natureza é explicada de forma antropomórfica, pelo princípio jurídico basilar da imputação (Zurechnung), e não segundo o princípio da causalidade (Cf. “Society and Nature”, Chicago, 1943; Id., Reine Rechtslehre, Viena: Springer, 1960, ns. 19-20, pp. 86-89, trad. port., Baptista Machado, vv. eds., pp. 127- 132). Por uma religião ou religiosidade mito-poética, ao contrário das religiões instituídas, que em sua grande maioria acabam por demonstrar preocupação maior com as respostas do que com o questionar, colocando-se em um patamar de verdade absoluta, sendo que na nossa sociedade verificamos que tais respostas são cada vez mais insatisfatórias. A religião que antes, durante os primeiros povos, “primitivos”, bem como com as civilizações da África do Norte, orientais e gregas, antes da era do bronze, ligava-se ao elemento mágico, acaba, com o passar do tempo, se tornando desacreditada e insatisfatória como forma de explicação do mundo, sendo então sucedida pela ciência e o positivismo, classificando-se de forma pejorativa e hierarquizada, com inspiração em Comte, três estágios de desenvolvimento intelectual da humanidade, teológica, metafísica e positiva.

Portanto, o Direito primitivo está impregnado do espírito religioso, por um “sentimento mágico”, como se denota, por exemplo, da ideia de empréstimo que seria “acompanhado de fórmulas mágicas, que giravam” em torno da ideia de ‘nó’, de laço, de querer entrelaçante, de vínculo “obrigacional” entre tais partes, um sentido “mágico”. Neste sentido dispõe Miguel Reale, (Cf. “Lições Preliminares de Direito”, São Paulo, 1984, pp. 147-148. “Filosofia do Direito”, 7. ed., vol. II, São Paulo, 1975, n.° 192, pp. 443-444), sendo corroborado por Sílvio de Macedo, segundo o qual o Direito antigo era revestido de um simbolismo religioso sobrenatural, com um ritual que punha em relevo a forma espiritual e que transmitia uma certa força mágica às formas jurídicas (“Introdução à Ciência do Direito”, Rio de Janeiro, São Paulo, 1970, p. 56). Por sua vez, Radcliffe-Brown relembra a existência de uma “sanção ritual”, ao lado da sanção moral e da penal, no direito primitivo, sendo corroborado por Malinowski ao apontar para a existência de sanções sobrenaturais (Cf. “Primitive Law”, in Enciclopaedia of the Social Sciences, vol. IX, pp. 202 ss.).As antigas civilizações do Oriente antigo, com exceção daquela assírio-babilônica, encontravam-se ordenadas por um Direito sagrado e por religiões transcendentes, apoiando-se, pois, em crenças mítico-religiosas e institucionalmente em um clero especializado, com um status bem definido, com a função de reinterpretação dos mandamentos religiosos em regras de conduta, verdadeiros, teólogos-juristas, uma verdadeira estrutura burocrático- administrativa de dominação. De forma similar teria ocorrido com as mais antigas civilizações indo-européia gregas, os minóicos ou cretenses (até 1900 a.C.) e seus sucessores, os micênicos ou aqueus (até o século XII a.C.). Após, com a invasão dos dórios, semibárbaros, oriundos do Noroeste, surge a cultura helênica, iniciando-se a ‘Idade Média’ grega, a idade do bronze, — são os tempos heroicos, a era de Homero com seus poemas ditos, justamente, homéricos, onde não há qualquer referência a leis jurídicas, mas, sim, a duas noções “Thémis” e “Diké”. Posteriormente surge uma terceira noção, “nomos”. A relação mágica com o ambiente é então substituída pelo império da religião e dos deuses voluntariosos, com poder absoluto sobre a sucessão dos eventos, representando também o fim de uma sociedade igualitária. Trata-se da fase agora da “rebelião” contra a Natureza, da qual o homem não se concebe mais como parte, passando a tomá-la como objeto de conquista e exploração. Surge, então, uma estrutura de poder que submete a grande maioria aos desígnios de poucos, dentre os quais sempre estiveram os detentores do “monopólio do sagrado”, institucionalizado em religiões.

A partir do reconhecimento da relação entre senhor e escravo, uma relação originária inclusiva-exclusiva, segundo Agamben, uma comunidade de vida, e ao mesmo tempo o fundamento do Direito, afirmando de que “o que mantém unida a comunidade não é a lei, mas a identificação com uma forma de transgressão da Lei, de suspensão da Lei”. Seria o retorno dos tricksters, ou dos vagabundos, semelhante à figura do palhaço ou bufão cerimonial segundo Georges Balandier, com sua permissividade total, performático, exercendo uma teatralização ritual ( “A desordem. Elogio do movimento”. Bertrand Brasil, p. 145), os quais segundo Agamben seriam os exemplares da comunidade que vem? (“A comunidade que vem”,  Autêntica Editora,2013, p. 19).

* Paola Cantarini Guerra. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.

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