Criminalização do aborto  e a opção pela morte de mulheres

 

 

Luciane Toss[1]

        No último dia 28 de setembro as mulheres latino-americanas e caribenhas chamaram atenção das autoridades e  da sociedade de seus países sobre a importância de descriminalizar o aborto.  Mesmo nos casos do chamado aborto legal, as mulheres denunciam dessassistência e/ou a precariedade dos sistemas de saúde no atendimento de mulheres que abortam.  O aborto clandestino é a quarta causa de morte de mulheres no Brasil. O Dado consta da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 442, que ainda tramita no STF e pede a não criminalização de mulheres que abortam co gestações de até 12 semanas.

        A ADPF 442 discute  a questão relativa à recepção, pela Constituição Federal de 1988, dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que instituem a criminalização da interrupção voluntária da gravidez, pela ordem normativa vigente. Os autores da Ação (PSOL e …)  argúem não observância de preceitos fundamentais tais como: a dignidade,  a cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade, a proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante, a saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

 

        A criminalização do aborto no Brasil remonta ao Código do Império, em 1830, com a condenação da gestante que o praticava (art. 199 e 200).   O Código de 1940 acentuou as diferenças entre o aborto praticado por terceiros e aquele induzido pela própria gestante (vide arts.124 a 128). Em 2004, com o julgamento da ADPF 54  se modifica o âmbito de possibilidades de interrupção da gravidez:

 

 Código Penal Brasileiro

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

        Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:  (Vide ADPF 54)

        Pena – detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro

        Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

        Pena – reclusão, de três a dez anos.

        Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:  (Vide ADPF 54)

        Pena – reclusão, de um a quatro anos.

        Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

Forma qualificada

        Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas      causas, lhe sobrevém a morte.

        Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:  (Vide ADPF 54)

Aborto necessário

        I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

        II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

 

O Aborto nas Américas

        Na  América se pratica o maior número de abortos anuais dentre os continentes e, por consequência, é o maior número de registros em interrupções de gravidez inseguras, 76% no total[2]. Apesar dos números, o aborto só foi descriminalizado por completo no Uruguai, na Guiana, em Cuba e, no mês de setembro passado, no México. O aborto também é permitido, sem restrições até a 12ª semana da gestação, em Porto Rico, território norte-americano no Caribe.

        Em El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Suriname o aborto é totalmente criminalizado. No restante dos países a lei permite o chamado aborto legal em poucos casos, na maioria das vezes, apenas quando a vida da mãe está em risco.

        Cabe uma referência específica à Colômbia, lugar onde as brasileiras realizam um número significativo de procedimentos (foram 10.517 abortos em 2017[3]). Aqui, a legalidade é limitada a casos de estupro, risco de vida da mãe ou feto anencéfalo, mas as leis  colombianas consideram a proteção da saúde física e mental da mãe. “Uma colombiana que deseje abortar porque se sente ansiosa ou deprimida com a gravidez necessita apenas dizer isso para o médico ou psicólogo que a atender. Nenhum deles poderá lhe pedir um laudo psiquiátrico ou algo do gênero“, afirmou à revista piauí Luz Janeth Forero, gerente de projetos e investigações da ONG Profamília.

        A Guiana, um dos primeiros países a aprovar o aborto, permite a interrupção da gravidez até a 8ª semana sem restrição de motivo e por medicamento. Se for feito sem intervenção cirúrgica não é preciso ir até uma instituição autorizada. Até a 16ª semana se houver risco grave para a vida e saúde mental e física da mulher, estupro, HIV ou falha no uso de método contraceptivo dela e do parceiro. Nesse período é preciso autorização médica. Mesmo assim, por escassez de atendimento adequado da rede pública, o atendimento ainda é feito de forma privada e em clínicas clandestinas, o que faz com que o país tenha uma das mais altas taxas de mortalidade materna das Américas[4].

 

Dados do Aborto no Brasil

        No Brasil, conforme já apontamos,  o aborto é permitido em três situações: se a gravidez é decorrente de estupro, se a gravidez representar risco de vida à mulher e se for caso de anencefalia fetal (ADPF 54, 2004). Fora estes casos, a mulher que comete o aborto é enquadrada no artigo 124 do Código Penal, ou seja, é criminalizada pelo Estado.

        Qualquer hospital que preste atendimento ginecológico e tenha equipe obstétrica deve atender mulheres que buscam o aborto legal, apesar de muitos  ainda se recusarem a fazer o procedimento. É a chamada  “objeção de consciência”  autorizada pelo Ministério da Saúde aos médicos por razões morais ou religiosas. Além do serviço precário, as mulheres enfrentam preconceito, desinformação e falta de treinamento adequado das equipes de saúde.

        Em 2017, foram feitos 1.636 abortos legais[5]. É difícil determinar a qual permissivo legal se enquadra cada um dos procedientos. Dados do IPEA de 2011 revelam que 19,3% de vítimas de estupro adultas realizaram o aborto previsto em lei. Essa proporção cai para 5,0% entre adolescentes e 5,6% entre crianças.

        Vale lembrar que o procedimento em crianças e adolescentes deve ter autorização dos responsáveis legais. Entre 2011 e 2016, 4.262 adolescentes de 10 a 19 anos tiveram uma gestação resultante de estupro com nascimento do bebê.  Entre as meninas de 10 a 14 anos, 1875  foram violentadas sistematicamente, quase 73% do total. As outras 2.387 jovens tinham entre 15 a 19 anos. Em 68,5% das ocorrências o autor da violência é um familiar.

        Não há dados oficiais sobre aborto ilegal.  Mas o Datasus informa o  registro de 177.464 curetagens pós-abortamento (raspagem da parte interna do útero) e 13.046 esvaziamentos do útero por aspiração manual intrauterina, ou seja, foram 190.510 internações de procedimentos relacionados a possíveis abortos. Conforme dados médicos, apenas 1/3 destas internações são de abortos espontâneos.  Significa dizer  que cerca de 2/3 do número de  internações anuais pós interrupção da gravidez estão relacionadas ao aborto ilegal. Dados do Ministério da Saúde informam que entre 2008 e 2017 o SUS gastou 486 milhões de reais com abortos provocados. Foram mais de 2 milhões de mulheres. O Brasil perdeu, por morte,  a cada dois dias em  2017, uma mulher  por complicações  decorrentes de abortos clandestinos.

 

Porque ainda perdemos mulheres para o aborto clandestino?

         A questão que envolve o aborto não deve ser discutida a partir de ser ou não favorável à prática.  Os abortos acontecem e continuarão acontecendo. A questão  social é a morte de mulheres por aborto clandestino, porque a prática é considerada ilegal e pode leva-las  à prisão.

        No Brasil a discussão sobre aborto sempre se desloca da mulher para outras questões como a religião e a moralidade. Mas a realidade é que a sociedade e o Estado brasileiro seguem optando pela morte de mulheres. Mulheres, na maioria pobres, na maioria negras.

        Quase 1 em cada 5 brasileiras de áreas urbanas, dos 18 aos 40 anos já realizou, pelo menos, um abortamento. Há uma maior frequência entre mulheres de menor escolaridade. O índice é de 22% para aquelas com até quarta série/quinto ano e de 11% para quem tem nível superior. Quanto à renda, o percentual é de 16% entre as brasileiras com renda familiar de até 1 salário mínimo e cai para 8% nas famílias com mais de 5 salários mínimos. Quase a metade das mulheres necessita de internação após o aborto (48%) o que aponta para o risco do aborto clandestino fora da rede de saúde.

        O aborto é a 5ª causa de morte materna no País.

        Os dados estatísticos são importantes porque, além de revelar a questão social no qual devemos inserir políticas de Estado, eles também definem quais políticas púbicas podem conter, reduzir ou evitar a repetição ou piora de dados negativos.

        A atual Ministra das Mulheres, não só se manifestou contra toda e qualquer forma de aborto, incluindo aqui o aborto legal, como a favor da supressão da palavra gênero de toda e qualquer política pública e educacional.  Há um sério risco aos direitos reprodutivos e à saúde das mulheres se o Estado deixa de investir em educação sexual, em métodos anticonceptivos e em atendimento na rede pública de saúde para mulheres que buscam o sistema.  O resultado será o aumento da gravidez precoce infantil e juvenil, do número de abortos clandestinos e do número de mortes de mulheres.

        O aborto é uma realidade no Brasil entre mulheres de diversas classes e credos. A discussão que deve ser feita é sobre descriminalização do aborto, ou seja, entre aborto legal e aborto clandestino. A criminalização alcança basicamente mulheres em situação de vulnerabilidade.

        Por fim, considerando que o aborto é uma questão de saúde pública, a saúde da mulher deve ser uma questão de Estado, uma política pública e não uma definição pautada por uma crença religiosa e por moralismos.

 

 

[1] Luciane Lourdes Webber Toss, Consultora de Gênero e Direitos Humanos na Ó Mulheres!, Advogada, Professora Universitária, Mestre em Ciências Sociais e Especialista em Direito Privado pela Unisinos, Especialista em Nuevos Rectos de Derecho Público pela Universidad de Burgos – UBU (ESP) , em Derechos Humanos y Derecho del Trabajo pela Universidad Castilla La Mancha de Toledo – UCLM (ESP) e em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Fundação Escola da Magistratura Trabalhista – FEMARGS. Atualmente cursa especialização em Direitos Humanos e Políticas Públicas, também pela Unisinos. Integra o grupo de pesquisas CNPQ UFRGS Trabalho e Capital: Retrocesso Social e Avanços Possíveis. É professora na  FEMARGS e na Fundação do Ministério Público – FMP. Ocupa a Vice-Presidente da Associação Gaúcha de Advogados Trabalhista – – AGETRA e é Membro das Comissões de Relações de Trabalho e de Feminismo da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas – ABRAT.

[2] Dados do “Abortion Worldwide 2017 – Uneven Progress and Unequal Access“.

[3] ONG Profamília- Colombia.

[4] Fonte: reportagens especiais sobre aborto na Huffpost

[5] Dados Oficiais do Ministério da Saúde.

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