Justiça Transformativa: a Participação da Comunidade na Transformação das Violências

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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GLÁUCIA FALSARELLA PEREIRA FOLEY. Justiça Transformativa: a Participação da Comunidade na Transformação das Violências. Tese de doutorado defendida e aprovada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília. Brasília, 2025, 345 fls.

A tese foi defendida e aprovada por uma banca examinadora de grande peso, na qual me incluo como contra-peso: Professores Menelick de Carvalho Netto – UnB, Orientador; Fabio Costa Morais de Sá e Silva – University of Oklahoma, Examinador externo – Fábio é o candidato do Brasil para membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, eleição na assembleia da OEA em setembro (desenhei o perfil do Fábio em artigo: https://brasilpopular.com/a-importancia-e-a-urgencia-de-o-brasil-ter-protagonismo-no-sistema-interamericano-de-direitos-humanos/); Manuel Eugenio Gándara Carballido, UFRJ, Examinador externo e a estimada e admirada professora Gisele Guimarães Cittadino – PUC-RJ, também Examinadora externa.

Começo pelos subentendidos, extraindo nos elementos pré-textuais – os agradecimentos – dois muito importantes, o primeiro a suas colegas magistradas e a seus colegas juízes, no singular e no plural, individualmente e organizados: “Às minhas queridas amigas e juízas, parceiras na Coordenação da Justiça Comunitária, Carla Patrícia Lopes, Caroline Lima e Lília Vieira. Desde que vocês chegaram com potência, inteligência e sensibilidade, a gente nunca mais sentiu medo. Gabriela Jardon, Fabio Esteves e Maria Isabel da Silva, vocês regem nosso refúgio pleno de acolhimento e resistência. E isso nada tem de poquito… Agradeço aos companheiros da Associação Juízas e Juízes para a Democracia por me acolherem e me embalarem nas jornadas que integram afeto à luta por justiça social. Obrigada pelo pertencimento”.

E o segundo, aos agentes comunitários, que, como diz, se constituem condição de “oportunidade de aprender a construir um projeto a múltiplas mãos. Estamos juntos há um quarto de século, modulando aqui e acolá tudo o que foi preciso ser ajustado para que a Justiça Comunitária pertencesse à comunidade e, nessa condição, expressasse, genuinamente, suas vozes e anseios. A autenticidade e legitimidade da Justiça Comunitária vem da força e do compromisso com os quais vocês se dedicam às pessoas. Estou certa de que, no próximo quarto de século, não nos faltará energia e afeto para continuarmos caminhando, transformando e sendo transformados ao caminhar. Seguiremos em busca de terras férteis para alimentar a nossa fecunda inquietude”.

Por que trago essa nota pré-textual para a resenha? Porque diviso um apelo ao discernimento. No fundo a tese percorre um caminho teórico, desde o chão do empírico de uma experiência exemplar de acesso alargado à Justiça – Justiça Comunitária – mas um valor teórico que ainda encontra muitas resistências e incompreensões no campo da gestão política do sistema de organização do modelo judicial, e não só no Brasil (ou em Brasília).

É certo que o programa, no Distrito Federal, continua formalmente indexado na página oficial do Tribunal de Justiça, com um descritivo que remete aos fundamentos de sua origem na organização judiciária local. Mas parece que, enquanto concepção de organização judiciária, perdeu incidência ativa na medida em que, desde a instalação da nova gestão do Tribunal, a partir de 2025, operou-se um esvaziamento de suas condições ativas para alcançar sua finalidade de ampliação (democratização) do acesso à própria Justiça.

Tomei conhecimento de manifestação de juízas que integram a Coordenação do Programa Justiça Comunitária – PJC, pedindo desligamento de suas funções, em razão de decisão, (autos do PA 41619/2024, acessível pelo SEI) que determinou o imediato deslocamento de todos os servidores lotados no PJC para outras unidades do Tribunal. As razões expostas na determinação de encerramento do PJC foram basicamente duas: o baixo número de acordos homologados em processos de mediação e a sobreposição de atividades com outras unidades do Tribunal, em especial, a Central do Idoso, o Juizado de Proteção à Mulher e a Justiça Restaurativa. Como se vê, uma correlação própria de que permanece um viés burocrático para a administração da Justiça, que limita a própria compreensão de acesso, quando restringe a discussão da própria justiça a que se quer acesso.

A tese vem num momento teoricamente crítico. Ela oferece fundamentos para superar esses obstáculos, que além de tudo podem carregar objeções ideológicas, contra os quais são necessários bons fundamentos conforme os que são trazidos na tese.

Eu próprio, em muitas ocasiões, tercei argumentos nesse sentido, em leituras anteriores sobre esse modelo de acesso à justiça. Remeto à recensão que fiz ao livro Justiça Comunitária. Por uma justiça de emancipação, autoria Gláucia Falsarella Foley. Belo Horizonte. Editora Fórum, 2010 (https://estadodedireito.com.br/justica-comunitaria/). Em meu texto, aliás, para além dos elementos intrínsecos que balizam a discussão trazida no livro, aludo a iniciativa da  então Deputada Distrital (hoje com mandato fedeal) Érika Kokay, de firme trajetória na defesa dos direitos humanos e cidadania, a identificar na Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, a intérprete sensível capaz de reconhecer e assegurar as condições de mediação institucional para o acolhimento do protagonismo social coletivo que se move para realizar direitos, e assim, a ela conceder o título de cidadã honorária de Brasília, festejado em sessão solene na Câmara Legislativa do Distrito Federal – CLDF, em cerimônia marcante em 3/5/2013.

Lembro que tive o ensejo de ser convocado como orador na cerimônia e de poder ter destacado os avultados méritos da homenageada, mas principalmente de mostrar que por meio do Projeto Justiça Comunitária, inicialmente Justiça Itinerante, ela desencadeou os procedimentos institucionais para instalar, na organicidade do Tribunal de Justiça do DF, uma proposta, diz ela, em livro no qual relata a experiência, de uma justiça emancipatória. Prática reconhecida e premiada (Prêmio Innovare de 2005 (Escola de Direito da FGV-Rio, Associação dos Magistrados Brasileiros, Secretaria de Reforma do Judiciário, do MJ e Associação do Ministério Público), o modelo traduz, nas suas próprias palavras em artigo elaborado em co-autoria com o Secretário de Reforma do Judiciário Flávio Crocce Caetano (http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2013/justica-para-todos-2013-juiza-glaucia-falsarella-foley, acesso em 02/05/2013), a proposta de “democratizar radicalmente o acesso à Justiça, mitigando a sua clássica associação com acesso ao Judiciário. Afinal, se os conflitos emergem onde a vida acontece, as possibilidades de sua resolução não podem se limitar aos rígidos pilares da liturgia forense. E é somente por meio das múltiplas vozes que ecoam nos diálogos plurais e, sobretudo acessíveis, que a justiça e a paz estarão ao alcance de todos”.

Por isso me rejubilo com inciativas recentes, e certamente não por coincidência mas por se constatar, certamente, riscos à continuidade material do programa, de Sessão Solene e homenagens da Câmara dos Deputados, a se realizar em maio, exatamente em homenagem aos “25 anos do Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT)”. Note-se que o requerimento que precede a convocação da Sessão anota que Justiça Comunitária do TJDFT é uma experiência “Laureada com o Prêmio Innovare do Ministério da Justiça, em 2005, a experiência do PJC do TJDFT vem sendo utilizada como modelo para a instalação de novos núcleos em outras unidades da Federação”. E também em maio, homenagem semelhante promovida pela Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Remeto a trabalhos anteriores de Gláucia Foley para recuperar os fundamentos teóricos e práticos de sua avaliação político-epistemológica do modelo de justiça comunitária que se desenvolve nessa perspectiva de trazer o sistema judicial para uma incidência de modernização desdemocratizadora do sistema judiciário pelo alargamento participativo de acesso à Justiça.

Na tese, esses são pressupostos, mas o foco da nova investigação em sede doutoral, salta para um objetivo de mais qualificação. Esse objetivo está sintetizado no resumo da tese:

Este trabalho tem por objeto o estudo da participação comunitária na identificação e transformação de suas violências, à luz das diretrizes da Justiça Transformativa. Por meio desta pesquisa, pretende-se investigar quais são as práticas sociais adequadas para impulsionar o protagonismo das comunidades socioeconomicamente vulnerabilizadas, no processo de mapeamento e escolha de estratégias de enfrentamento das violências, sob uma perspectiva transformadora e emancipatória. A hipótese considerada é a de que os Círculos Comunitários, por sua dinâmica dialógica, cooperativa e democrática, podem constituir uma prática social com potencial para proporcionar esse protagonismo. Isso porque a metodologia circular participativa permite que as comunidades reflitam criticamente sobre as inúmeras dimensões da realidade, ao mesmo tempo que projetam as possibilidades de transformação social, embaladas nos contornos de um futuro ansiado. O que se pretende examinar, por meio de uma pesquisa qualitativa na modalidade participante, é se a prática dos Círculos Comunitários Transformativos pode colaborar para que a reflexão crítica e as ações dela derivadas extrapolem as dimensões interpessoais da violência e possam repercutir em suas esferas simbólicas e estruturais, conforme preconiza a Justiça Transformativa.

Ao exame dos elementos descritivos das práticas e de suas implicações metodológicas todos apoiados em plataformas epistemológicas bem definidas e coerentes no diálogo que proporcionam, cuja validação percebo como aceitáveis à luz das arguições que acompanhei nos debates da banca, retenho, no que para mim é pertinente, a caracterização reafirmada pela Autora da tese sobre o que denomina justiça transformativa:

A Justiça Transformativa tem como ethos a criação de comunidade, a partir do acionamento de seus elementos nucleares: protagonismo popular na interpretação das necessidades; reconhecimento das identidades e referências culturais; e consciência crítica para qualificar a ação política, sob a égide da democracia participativa.

E foi exatamente aqui que este trabalho identificou a possibilidade de diálogo entre os princípios da Justiça Transformativa e a Teoria Tridimensional de Nancy Fraser. A filósofa ganhou centralidade no desenvolvimento desta pesquisa porque, na condição de teórica crítica, sua atenção está voltada à leitura da realidade – o diagnóstico de suas crises e conflitos – para a compreensão de como os movimentos sociais podem desenvolver projetos emancipatórios que assegurem igualdade social, diversidade cultural e democracia participativa, tal qual ansiado nos Círculos Comunitários Transformativos.

Ademais, sua formulação de que a esfera pública é composta por arenas integradas pelos contrapúblicos para a política de interpretação das necessidades e para a emergência de identidades, guarda estreita conexão com a proposta dos Círculos. Em especial, quando se considera que os recursos discursivos que permeiam o diálogo político – os padrões de argumentação disponíveis, os repertórios de narrativas e de retóricas e até mesmo as expressões corporais – devem ser objeto de aprendizado, por meio de uma capacitação para a contra-hegemonia, a partir da politização de necessidades antes despolitizadas, e para a compreensão dos mecanismos de reprodução das opressões.

Assim como Fraser, este trabalho sustenta que se o diálogo sobre as necessidades e identidades não promover contestação política, rompendo com o padrão hegemônico, o resultado a prevalecer é a assimetria de poder em todas as esferas relacionais e a perpetuação da internalização de uma política de necessidades e de identidades que opera em prejuízo do público subalternizado.

Os Círculos Comunitários Transformativos foram projetados para superarem os arranjos que impedem a paridade participativa e, nessa condição, funcionarem como arenas discursivas e plurais para a emergência dos paradigmas populares de justiça, a partir da reflexão sobre as causas e soluções para as injustiças vividas.

Considerando toda essa amplitude, ao contrário dos meios autocompositivos de solução de conflitos, os Círculos Comunitários Transformativos prescindem de conflitos pontuais para serem praticados, porque, embora não haja qualquer impedimento para que atuem como mecanismo restaurativo ou mediador em situações de violação pretérita, os Círculos podem ser prospectivos na construção da comunidade em que se deseja viver.

Trago, como uma nota de singularidade que a Tese tange um ponto forte que aparece na Análise de Conjuntura da CNBB, preparada pelo Grupo de Análise Padre Thierry Linard, do qual sou membro: CONJUNTURA NACIONAL: Desafios e Esperanças, que deveria ser apresentada na 62ª Assembleia Geral da CNBB, de 30 de abril a 9 de maio de 2025, mas que foi cancelada em face do falecimento do Papa Francisco, no dia 21. Contudo, por decisão da CNBB o texto foi encaminhado a todos os bispos brasileiros que formam o maior episcopado do mundo (https://odireitoachadonarua.blogspot.com/).

Nesta Análise, o tema da Justiça e do Poder Judiciário, que já havia sido demarcado nas referências de análises de conjuntura anteriores, com marcadores retirados da teologia prática e desde uma perspectiva político-pastoral, foi ampla e fundamente retomado. A recuperação desta precedência é feita aqui para balizar o percurso hermenêutico desse tema complexo, pondo-se em relevo três pilares para ancorar esse percurso. O primeiro para indicar o acervo de uma reflexão que já nutria preocupações que convocavam o discernimento do episcopado brasileiro. Assim, a organização e realização em Brasília (2, 3 e 4 de agosto de 1996), sob os auspícios da CNBB, do Seminário “Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário”. O encontro cuidou de uma questão relevante para o desenvolvimento da democracia no país: o divórcio crescente entre o sistema judiciário e a demanda de prestação jurisdicional das camadas populares, com o objetivo de fornecer elementos de reflexão sobre a realidade da justiça brasileira, e buscar contribuições visando a reforma do judiciário à luz de critérios éticos e tendo em vista a experiência dos participantes, sem, contudo, esquecer uma abordagem prospectiva da questão mais ampla da relação entre a justiça e o judiciário brasileiro.

O Seminário foi realizado a partir de uma situação concreta: a desconfiança generalizada acerca dos fundamentos que organizam a sociedade e os valores que estruturam as bases éticas das instituições levando a contradições entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais, gerando questionamentos sobre os pressupostos da cultura legalista de formação dos operadores do direito e sobre os fundamentos relativos ao papel e à função social sobretudo dos magistrados.

O que vale assinalar é o quão tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático do Direito, para cuja mediação a justiça é um fator essencial. A Análise valeu-se de pesquisa que analisa o fenômeno de encontro entre movimentos sociais e a função judicial no Brasil, que distingo porque foi conduzida e interpretada por colega nosso da UnB, docente da Faculdade de Direito, o mesmo ambiente de reflexão de que se nutre a tese (ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-EbertStiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDH), maio de 2018; ESCRIVÃO FILHO, Antonio Sergio. Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/31936).

Cuida-se da experiência singular do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos. Neste cenário, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação “Estado-sociedade” inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.

Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, que as análises sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. É de se reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88.

Assim que, se não parece possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos. Certamente, a primeira via é de adoção mais óbvia em um primeiro momento, mas, à medida que avança a neoliberalização da justiça, ela pode tornar-se efetivamente estéril. Os argumentos, provavelmente, serão esvaziados por uma lógica outra de argumentação jurídica.

Essa forma de abordar a racionalidade da atuação do Judiciário pede muita cautela quando as críticas se colocam em espaços de locução nem sempre acessíveis a um debate de posicionamento. Há uma insistente crítica ao Judiciário baseada em três fundamentos principais: liberalismo institucional, racionalidade econômica e defesa do devido processo legal (ESCRIVÃO FILHO, Antonio Sergio. Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/31936).

A Análise da CNBB tem em conta que as injunções que desafiam um recriar-se do sistema de justiça se dá “como expectativa das demandas por direitos e por participação política prometida pela Constituição de 1988, como expressão do projeto de sociedade desenhada pelo protagonismo emancipatório e democratizante que venceu o autoritarismo instalado no Brasil em 1964 e nunca totalmente superado. Uma expressão forte desse processo, com incidência no judicial, é a tensão que se abre entre formas de participação política e de distribuição equitativa da riqueza, numa mediação cada vez mais reivindicada do sistema judiciário e de justiça”.

Nesse aspecto, forma a convicção de que, “da perspectiva dos movimentos sociais, nos quais se instalam os principais protagonismos por participação democrática e por mais equitativa distribuição da riqueza socialmente produzida, essa mobilização por mais forte atuação do Judiciário já havia sido constatada pelos organismos de articulação dos sistemas de acesso à justiça”.

Para afirmar, dirigindo-se aos destinatários da Análise, seguindo o Papa Francisco, da necessidade de convocar “os juízes para se engajarem com a justiça social, é a disputa entre neoliberalização e democratização da Justiça, a sua capacidade de atribuir dignidade e bem viver ou de assegurar a estabilidade dos negócios mesmo à custa de “mercadorização” da existência. Ao cabo, colocar em causa, que a racionalidade não é só reivindicar a modernidade de um sistema, inclusive de acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso, o que modifica muito a percepção sobre modernidade e governabilidade. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema, não só aos sujeitos econômicos no mundo dos negócios, mas à participação popular porque as reformas do judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de justiça como estrutura de poder, mas não o abre à participação social democrática. O tipo de acesso à justiça que tem sido debatido é ainda o ‘acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais’. Uma reforma do judiciário de raiz precisa ser construída com a participação dos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça” (cita “Reforma do judiciário precisa de participação popular”. Disponível em: http://www.jusdh.org.br/2014/12/19/reforma-do-judiciario-precisa-de-participacao-popular/ Acesso em 14 abr. 2025).

Ainda do documento da Análise da CNBB, aqui mencionado porque permite trazer outra referência nela adotada que se desenvolveu no mesmo espaço reflexivo a que vem se agregar o estudo de Gláucia Foley, encontra-se a consideração de que “não é extravagante constatar uma tendência neoliberalizante no sistema judicial, em especial na sua cúpula e chegar a considerar o próprio Supremo Tribunal Federal um tribunal neoliberal, no que toca a avaliação do processo econômico… [com a] identificação de “outra agenda objeto de diversas influências internacionais”, muitas conferidas nos protocolos de financiamento dos Sistemas de Justiça pelo Banco Mundial, não apenas para os interesses de “estabilização dos negócios no período neo-desenvolvimentista” mas para exercitar pressões sobre os tribunais brasileiros, conforme a análise de todos os contratos estabelecido com o Banco Mundial para fomentar as reformas do sistema de justiça no Brasil: “Curioso  – assim está no documento da Análise – que essa salvaguarda ideológica neoliberal possa mobilizar o conservadorismo político contra um sistema que é garante de seu modo de acumulação. Não se trata das diatribes de um arrivismo delinquente que busque apoio para desqualificar o Judiciário na condução da garantia da ordem constitucional alvo de atentados contra a democracia e os direitos humanos, mas de perceber, no local e no global, que se trata de um institucional em disputa”. (as referências remetem a nossa colega da FD/UnB, RAMPIN, Talita Tatiana Dias. Estudo sobre a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina. 2018. 436 f., il. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2018. A tese estuda a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina. Revisa a literatura sobre justiça para conhecer o estado da arte e destaca a emergência de abordagens de resistência, que desenvolvem práxis de justiça nos contextos e deslocam o conflito e as injustiças para a centralidade do exercício de teorização. Mapeia as reformas da justiça enquanto fenômeno nas Américas, para identificar suas características, atores participantes e estratégias. Analisa a participação de instituições financeiras internacionais no direcionamento das reformas da justiça no contexto latino-americano, problematizando as relações que são desenvolvidas entre o centro, a semiperiferia e a periferia do sistema mundial, utilizando a teoria dos sistemas de Immanuel Wallerstein. Analisa o conteúdo de documentos (acordos, relatórios, empréstimos e outros instrumentos normativos) para deles extrair elementos que sinalizem o direcionamento que as instituições financeiras, com destaque ao Banco Mundial, para que os Estados-nacionais latinoamericanos adaptem suas estruturas estatais de justiça, em sentido amplo, aos interesses estabelecidos no contexto de mundialização da economia. Estuda a experiência brasileira de reforma da justiça, problematizando os cenários, os atores e os enredos específicos. Propõe uma abordagem geopolítica ao fenômeno, identificando os elementos geopolíticos que contribuem para uma ampla compreensão da reforma da justiça na América Latina. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/32203).

Valho-me, nesse passo, até  para efeito demonstração, do documento constitutivo da Série Pensando o Direito (Observatório do Judiciário), no qual, depois de chamada em edital, pesquisa levada a efeito, a partir também da Faculdade de Direito da UnB, constata a conjuntura de forte mobilização democrática dentro do princípio de inserção do Estado e de sua alta burocracia no paradigma de governança participativa, nos marcos da Constituição de 1988, uma condição que desde os acontecimentos de 2016 (afastamento da Presidenta da República), entra em refluxo, num claro processo de desconstitucionalização e de desdemocratização do País (Ver o estudo completo em https://www.academia.edu/13191052/Observar_a_justi%C3%A7a  já que o relatório não é mais encontrado nos sítios oficiais incluindo o próprio Ministério da Justiça, o que deve ter algum significado).

Nesse trabalho o que se observou, ouvindo-se as assessorias jurídicas de movimentos sociais, foi extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.

Em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.

Retomo, em face disso, as conclusões de Gláucia, no sentido, de que “portanto, para a Justiça Transformativa, o “nascimento de uma comunidade” prescinde da ocorrência de uma violência direta. Onde houver o desenvolvimento de práticas sociais que envolvam análise crítica da realidade, somada à construção de relações inclusivas e cooperativas e à participação democrática na elaboração de políticas públicas – tal qual delineado na metodologia desta pesquisa –, haverá potencial para que a comunidade seja protagonista dos processos de transformação de suas violências. A construção de comunidade requer, objetivamente, planejamento para a identificação das demandas, organização das ações e busca de parcerias. No entanto, não se cria comunidade sem o desenvolvimento da extraordinária capacidade humana de gerar entusiasmo, afetado pelo interesse de nos encontrarmos, nos ouvirmos e nos reconhecermos”.

Penso que há um desafio a enfrentar, estando de acordo com as conclusões da tese. E esse desafio está em relacionar a articulação necessária que se deva estabelecer entre o âmbito local onde se dá a mobilização de comunidade, com o âmbito nacional (e global), onde se dá a mobilização de sociedade. Retomo a uma questão  que guarda pertinência com aquela filosofia do agir humano, de que fala o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, S.J., no texto com que abriu o Seminário Ética, Justiça e Direito, transcrito aliás, na Análise de Conjuntura da CNBB, já referida: “No momento em que os temas ‘ética e política’ ou o ‘direito de todos e a justiça de todos’ tornam-se temas de sensação nos meios de comunicação de massa, e em que o problema do exercício eficaz da administração da justiça deixa o recinto austero dos tribunais para tornar-se problema social das ruas e dos campos, convém voltar nossa atenção e nossa reflexão para a tarefa primordial da educação ética que é a verdadeira educação para a liberdade. O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização” (As referência estão em PINHEIRO, Pe. José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1996).

Tudo indica que a   Autora, no tempo que se abre a partir da defesa de sua tese, com a sua experiência e o impulso de seus estudos, incluídos os que traz na no trabalho defendido e aprovado, continuará a interpelar as condições de possibilidade para encetar essa dura conquista!

 

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

 

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