Conselho aos Governantes

       

Conselho aos Governantes. Isócrates… [et al.]. 4ª Impressão. Apresentação:  Walter Costa Porto. Brasília: Senado Federal. Edições do Senado Federal, volume 15, 2009,  844 p.

          Recuperei para este Lido para Você a bem cuidada edição de Conselhos aos Governantes, pensando a conjuntura e nesse movimento do espírito, lembrando com saudade do dileto amigo Walter Costa Porto, que a apresenta e terá sido um de seus organizadores.  Saudade sobretudo de sua erudição enciclopédica e de seu perspicaz senso de humor.

            Como esquecer, nas reuniões da Congregação dos Professores na Faculdade de Direito na UnB, seus interlúdios. Pernambucano de raiz ria da autoimagem que os seus fazem de si em sua Recife onde “o Beberibe se junta ao Capibaribe para formar o Oceano Atlântico”. Ou da manchete de uma gazeta da mesorregião do agreste pernambucano, em setembro de 1939: “Se o Senhor Hitler tivesse dado atenção aos nossos editoriais não teria engolfado o mundo no desastre que se anuncia”.

            A saudade aqui está grafada em letras de seu próprio punho, na dedicatória que me fez de exemplar da obra logo que publicada e que me levou em visita ao meu Gabinete: “Ao Reitor José Geraldo, que não precisa de conselhos, com a admiração e a estima de Walter Costa Porto, nov/2009”.

            Bem que nunca negligenciei conselhos, atento entretanto, conforme o próprio Costa Porto na abertura de sua Apresentação de que “há governantes e governados. Mas há, também, os que, sob o poder do príncipe, tentam orientá-lo, moldar-lhe a conduta”.

            Mas os há, também, estamos aprendendo hoje a duras penas, aqueles impermeáveis, rasteiros, moucos, impossíveis ou mesmo que não lhe valham qualquer conselho, tal se pareçam a um Dionísio insano, anota Walter Costa Porto, sobre Platão e as “suas frustradas intervenções na política de Siracusa”.

            Eu já havia feito algumas incursões nessa obra de consulta obrigatória, refletindo sobre conjunturas eleitorais recentes em nosso País, como se pode conferir em coluna de opinião que assinei por anos na antiga revista do Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União (Conselho ao Governante, Ano XVIII, nº 70, novembro de 2010, p. 4).

Foto: Reprodução/Commons

           Então destaquei, com base em registros dessa obra, que desde Sócrates, passando por Platão, Maquiavel, Erasmo de Roterdã, e até D. Pedro II, com suas exortações paternais dirigidas à filha regente, a literatura organiza uma série de predicações que formam um impressionante legado de conselhos aos governantes.

           Dom Pedro II, por exemplo, numa de suas cartas a Isabel, aludia ao sentimento inteligente do dever como o melhor guia, mas chamava a atenção para que a princesa observasse que o sistema político do Brasil funda-se na opinião nacional, que, muitas vezes, não é manifestada pela opinião que se apregoa como pública e, pode-se dizer, muito menos a que é cotidianamente publicada.

          Se, em Maquiavel, as notas são para indicar as coisas pelas quais os homens, e mormente os príncipes, são louvados ou censurados, os conselhos vão desde a prodigalidade e a parcimônia à crueldade e à clemência, ou seja, sobre saber se é melhor ser amado ou temido.

          Até mesmo nos grandes sistemas religiosos, do confucionismo ao judaísmo, passando pelo cristianismo, pelo islamismo e pelo budismo, é possível extrair um guia moral-prático tendo como centro ético o conselho de que o dever do governante é proteger o seu povo, contribuir para despertar a sua consciência e fazê-lo na condição de que a melhor maneira para um governante administrar o seu país é, antes de tudo, governar-se a si próprio.

          O Brasil hoje amadureceu uma experiência democrática que já é a mais longeva em sua história republicana. E nela, a partir das mobilizações que levaram à Constituinte de 1988, o princípio de cidadania demarca as relações entre povo e governantes, num processo de participação ativa que sobrepõe o poder popular a todos os poderes constituídos. Nenhum governante se legitimará, ou sobreviverá politicamente, mesmo sufragado eleitoralmente, se não preservar esse princípio.

          Abrir-se, pois, à opinião sensata e à divergência, proporcionada por um povo educado, é uma condição para a boa governança – para lembrar o conselho do estadista indiano Kautilya, que viveu 1.800 anos antes de Maquiavel.

          Tratando de Maquiavel, é sempre bom guardar seu conselho sobre o perigo de coligações com quem seja mais poderoso, porque na vitória corre-se o risco de dependência aos seus caprichos.

          Daí a importância da educação, se não para assegurar o melhor preparo para o exercício da função dirigente, ao menos para livrá-la de outro perigo nefasto que é a adulação. Cercar-se de gente bem-educada, com capacidade crítica, é afastar, propõe Erasmo, as artimanhas do fingimento ou da mentira cujo fim derradeiro é assegurar favores.

          O próprio Erasmo, interpretando Diógenes, imagina que o que este tinha em mente (quando replicou à pergunta “Qual o animal mais perigoso de todos?” com a resposta “Se te referes a animais selvagens, o tirano; se falas de animais domesticados, o adulador”) era revelar, nesse protótipo de depravação da política, a sua expressão venenosa que se manifesta como praga.

          É a educação que permite substituir o favor pelo direito. Com ela, pode-se realizar plenamente a condição republicana pela mediação da democracia ou, como na interpretação pertinente de Antonio Cândido, em prefácio a uma das edições de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, o exercício da cidadania contra práticas políticas que se sustentam nos extremos do personalismo e nas relações de família ou de simpatia.

          Com a educação, de simples votantes, que permitem a continuidade da política tradicional, os membros ativos da comunidade passam a ser protagonistas permanentes da administração pública. Além de contribuir para o aprofundamento do exercício da democracia na relação entre os cidadãos e o poder público, significa uma possibilidade ampliada para que o bom governante saiba ordenar prioridades de desenvolvimento sustentável e promover justiça social.

          A outra razão pela qual voltei ao livro está ligada ao belo projeto que a querida Carmela Grüne, dirigente do Jornal Estado de Direito, que abriga a coluna Lido para Você, agora na forma de Conselhos de Dom Quixote à Administração da Justiça Brasileira. Convidado a integrar o projeto em sua 2ª edição anunciada para 19 de novembro, formulei o meu conselho no seguinte enunciado: “Não Esvaziar a Promessa da Justiça”.

          E o fiz porque na compilação estão reunidos – p. 427-441 – os Conselhos de Dom Quixote a Sancho Pança, quando “nomeado” governador da ilha de Concusión, os primeiros (Capítulo XLII) e os segundos (Capítulo XLIII), entre os quais aqueles sobre a administração da Justiça, que formam um conjunto de recomendações numa disposição que o exaltam como um momento alto da obra-prima. Penso que daí provêm a inspiração da querida Carmela Grüne, para o projeto:

“Primeiramente, filho, hás de temer a Deus, porque no temor de Deus está a sabedoria, e, sendo sábio, em nada poderás errar.

Em segundo lugar, põe os olhos em quem és, procurando conhecer-te a ti mesmo, que é o conhecimento mais difícil que se pode imaginar. De conhecer-te resultará o não inchares como a rã, que se quis igualar ao boi: que, se isto fizeres, virá a ser feia base da roda da tua loucura a consideração de teres guardado porcos na tua terra.

Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de agudos.

Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as queixas dos ricos.

Quando se puder atender à equidade, não carregues com todo o rigor da lei no delinquente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo.

Se dobrares a vara da justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia.

Quando te suceder julgar algum pleito de inimigo teu, esquece-te da injúria e lembra-te da verdade do caso.

Não te cegue paixão própria em causa alheia, que os erros que cometeres, a maior parte das vezes serão sem remédio, e, se o tiverem, será à custa do teu crédito e até da tua fazenda.

Se alguma mulher formosa te vier pedir justiça, desvia os olhos das suas lágrimas e os ouvidos dos seus soluços, e considera com pausa a substância do que pede, se não queres que se afogue a tua razão no seu pranto e a tua bondade nos seus suspiros.

A quem hás de castigar com obras, não trates mal com palavras, pois bem basta ao desditoso a pena do suplício, sem o acrescentamento das injúrias.

Ao culpado que cair debaixo da tua jurisdição, considera-o como um mísero, sujeito às condições da nossa depravada natureza, e em tudo quanto estiver da tua parte, sem agravar a justiça, mostra-te piedoso e clemente, porque ainda que são iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece e triunfa aos nossos olhos o da misericórdia que o da justiça”.

          Quase poderia dizer que uma boa síntese dessas recomendações se encontra num enunciado com inusitada circulação, atribuída ao Quixote: “Cambiar el mundo, amigo Sancho, no es locura ni utopía. Sino justicia.”, não fosse a consideração de que em geral transcrita sem localização, por mais que procurasse, tanto eu quanto algumas outras indagações, não foi dado encontrá-la na obra de Cervantes, tanto quanto a palavra utopia que também se diz entre estudiosos, não aparece em seus escritos.

          Assim que a minha própria síntese, ou ao menos o enunciado de aconselhamento que formulei: não esvaziar a promessa da Justiça, vai se esboçando em minhas leituras sobre o tema, conforme aparece em publicações da Coluna Lido para Você, no sentido mais geral – https://estadodedireito.com.br/o-que-e-justica-uma-abordagem-dialetica/; https://estadodedireito.com.br/o-que-e-justica-uma-abordagem-dialetica-2/; https://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/;https://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/; https://estadodedireito.com.br/o-judiciario-entre-a-modernidade-e-a-contemporaneidade/; https://estadodedireito.com.br/porteiro-ou-guardiao-o-supremo-tribunal-federal-em-face-aos-direitos-humanos/; ou quando inferidas de biografias e percursos –  https://estadodedireito.com.br/pelos-caminhos-da-justica-e-da-solidariedade-estudos-de-homenagem-miguel-lanzellotti-baldez/; https://estadodedireito.com.br/o-salao-dos-passos-perdidos/; https://estadodedireito.com.br/para-alem-do-direito-alternativo-e-do-garantismo-juridico/; https://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/.

          De tal sorte, que em todas essas aproximações, tratei desses temas em debate acerca do papel e das funções de juízes e do Judiciário, em seminário realizado na última década do século XX e, posteriormente em livro de cuja organização participei (padre José Ernnanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo Dinis e Plínio de Arruda Sampaio (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1ª. edição, 1996), mostrando que as profundas alterações que se dão na sociedade e nos valores que estruturam as bases éticas das instituições, afetam igualmente o Judiciário e os juízes, postos diante da necessidade de compreender essas mudanças. O claro esgotamento do modelo ideológico da cultura legalista da formação dos juristas e da função adjudicatória que lhe é consequência, caracterizando o agir dos magistrados, quando já entre eles se assiste um franco questionamento ao papel e à função social que exercitam, e que não poucas vezes tem empurrado seus principais órgãos e operadores à inusitada situação identificada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual, “faz-se da lei uma promessa vazia”, fonte direta de minha formulação ampliada para a própria Justiça em seu duplo alcance, conceitual e sistêmico.

          Ela também interpela os agentes públicos responsáveis pela formulação de políticas públicas legislativas, funcionais e judiciárias, na medida da oferta de análises críticas às modernizações meramente funcionais do aparato, sem levar em conta novas subjetividades sociais que abrem perspectivas para outros modos de considerar o próprio Direito ou a estabelecer soluções não judiciais e até mesmo comunitárias para conhecer, mediar e resolver conflitos.

          Um pouco desse processo pode ser demonstrado nos estudos que compõem a série Pensando o Direito que a Secretaria de Assuntos Legislativos, do Ministério da Justiça promoveu em seus editais dirigidos aos grupos universitários de pesquisa. Num desses trabalhos, que tive a oportunidade de liderar (Observatório do Judiciário, Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009), foi possível estabelecer pesquisa com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.

          No fundo, o que está em causa, não é só reivindicar acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as Reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de justiça como estrutura de poder mas não o abre à participação social democrática. O tipo de acesso à justiça que tem sido debatido é ainda o “acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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