Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida

Coluna Lido para Você

cabeçalho

Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de Albuquerque. Natal: Infinitaimagem, 1a. Edição, 2013, 383 pp.

Trago à leitura um livro de circulação muito restrita, de autoria singular porque trabalho biográfico feito pelo filho para homenagear o pai. Além disso, história de vida de uma personalidade genial, porém, vivida por opção na província, somente em lampejos incontidos, restou conhecida por poucos. Esses poucos, contudo, souberam aquilatar no projeto de vida precioso, o alcance exemplar de uma existência pontuada pelo formidável vigor de sua qualidade intelectual e política.

Obra de Marco Aurélio da Câmata Cavalcanti de Albuquerque.

Obra de Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de Albuquerque.

No entanto, para além do zelo filial que registra a biografia de seu pai, seu percurso político, funcional, acadêmico, familiar, desenvolve uma narrativa muito bem definida, inspirada no método narrativo de seu pai, mas modelada numa forma de enquadramento  transformado em estilo desenvolvido em muitos autores de época, que busca situar as personalidades estudadas em seu tempo. Assim, como Jacques D’HONDT fez com Hegel, como se pode ver em seu Hegel en Son Temps (Berlin, 1818-1831). Paris: Editions Sociales, 1968). E também, no próprio Floriano, em Antonio Marinho e seu tempo, Natal: Separata da Revista da Academia Norte-Riograndense de Letras, 1955.

Neto de Floriano Cavancanti e tributário de seu legado intelectual, tal a influência que exerceu em minha formação, compareci ao livro, a convite do autor, meu tio, para um comentário pessoal, em forma de depoimento, no qual (op. cit. pp. 329-338), busco os registros que, a meu ver, o distinguiram como um juiz à frente de seu tempo. Certamente o comentário não exibe, mas o modo de narrar não oculta, outras influências subjetivas, cultivadas na convivência em relação ao modo de escrever, uma nota singular no processo criativo de Floriano.

Em entrevista para o blog do José Nunes, Como Eu Escrevo (http://bit.ly/2MAzkqK), menciono isso:

Sei que há escritores contidos, requintados, sovinas em relação aos seus escritos. Não os libertam enquanto não se convencem de sua exatidão. Flaubert demorou cinco anos para compor sua obra-prima a Madame Bovary. Musil mais de 20 anos para escrever O Homem sem Qualidades e ainda assim a obra não foi finalizada. Meu avô quase nada publicou e escreveu muito. Quantas férias passei datilografando seus discursos de candidato a governador nos anos 1940 e trinta anos depois ele ainda os revisava por não considerá-los perfeitos para publicação. Lembro com respeito, esse aspecto de sua relação com a escrita, sempre indo atrás da formidável expressão de seu pensamento analítico (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Floriano Cavalcanti de Albuquerque, Um Juiz À Frente de Seu Tempo. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 2013, págs. 329-338). Seu grande amigo Luis da Câmara Cascudo o admoestava pelo preciosismo, ao dizer que “nasceu com a fidelidade ao livro e daí a sua história ser essencialmente a história de uma inteligência e não a odisséia de uma ambição humana. Escolheu a tarefa mais solitária e mais alta, aquela de poucos companheiros, a função intelectual que lhe daria, forçosamente, o isolamento pela incompreensão: o culto da Filosofia. Não o culto gráfico, a efabulação, o uso da dialética, a evidência impressa, mas a própria função filosófica…” (CASCUDO, Luís da Câmara. Floriano Cavalcanti, sua evolução intelectual e filosófica. Natal: Separata da Revista da Academia Norte-Riograndense de Letras, 1955, pág. 35).

Volto ao leito de meu comentário e retomo o ponto de partida que nele, ensejou a linha de minhas reminiscências expostas no livro. Ali, eu dizia, vivenciei há alguns anos, a forte experiência de participar, como painelista, de um encontro de juízes no Rio Grande do Sul, convocados por suas entidades associativas para discutir a crise da conjuntura: da ordem econômica internacional, do sistema judiciário, da lei e da subjetividade dos magistrados. Neste painel, chamava a atenção, a presença majoritária de palestrantes psicanalistas.

Lembro desse encontro pela afirmação forte do mais reconhecido expoente entre os seus pares, incumbido da fala de clausura, de que “os juízes se encontravam no fundo da lata de lixo da história”. A afirmação fora feita na confiança de que ali se encontravam alguns poucos convidados não pertencentes à categoria de juízes, mas suficientemente solidários para entenderem que o desabafo não traduzia uma rendição, ou o desalento angustiado mas, ao contrário, um chamado à mobilização por quem dispunha de força e protagonismo bastantes para exercitar a insegurança própria a tempos de crise, sem se deixar sucumbir às suas incertezas.

Obra "Ética, Justiça e Direito".

Obra “Ética, Justiça e Direito”.

Daquele encontro e das constatações que ele permitiu estabelecer, pude extrair referenciais paradigmáticos posteriormente apresentados em livro de cuja organização participei (padre José Ernnanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo Dinis e Plínio de Arruda Sampaio (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1ª. edição, 1996), mostrando que as profundas alterações que se dão na sociedade e nos valores que estruturam as bases éticas das instituições, afetam igualmente o Judiciário e os juízes, postos diante da necessidade de compreender essas mudanças. O claro esgotamento do modelo ideológico da cultura legalista da formação dos juristas e dos magistrados e o franco questionamento ao papel e à função social dos juízes, não poucas vezes tem empurrado seus principais órgãos e operadores à inusitada situação identificada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual, “faz-se da lei uma promessa vazia”.

Desde então, como acadêmico atuante no processo de capacitação de juristas, entre eles os juízes, especialmente nas freqüentes exposições em cursos de formação para efetivação e vitaliciamento, tenho constatado a projeção ainda no presente dessa sorte de agonia funcional em face da persistência daqueles obstáculos a que já me referi, de ordem existencial ou de ordem teórica, que trazem dificuldades ao agir dos magistrados.

Para reter um desses aspectos, aludo, por exemplo, à observação feita pelo notável jurista Antonio Augusto Cançado Trindade, atualmente em exercício na Corte Internacional da Haia, na ocasião, presidente em inédito segundo mandato, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Cançado Trindade se referia ao obstáculo epistemológico do positivismo jurídico, na sua versão mais vulgarizada e empobrecida, responsável por impedir relativamente à proteção dos direitos humanos, um entendimento jurisprudencial mais avançado contido em interpretações dinâmicas ou evolutivas dos tratados internacionais, baldas de respostas criativas da própria ciência do direito impossibilitada de libertar-se das amarras daquele pressuposto explicativo do conhecimento jurídico. Anotei essa passagem no meu livro Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas (Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002).

Nesse livro, chamo igualmente a atenção, já em sede de direito constitucional, para a advertência lançada pelo, a meu ver, mais importante constitucionalista em língua portuguesa J. J. Gomes Canotilho, insistindo na necessidade de que nesse campo de conhecimento jurídico se recupere, diz ele, “o impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias críticas da sociedade”, sob pena de restar “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político”.

Por isso que, num apelo à ampliação das possibilidades de compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do direito constitucional, propõe o publicista português “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”. Trata-se, segundo ele, de “incluir-se no direito constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas”, valendo por em relevo, a este respeito, referência sua que me é altamente lisonjeira: “Estamos a referir sobretudo as propostas de entendimento do direito como prática social e os compromissos com formas alternativas do direito oficial como a do chamado direito achado na rua”, compreendendo nesta última expressão, acrescenta, um “importante movimento teórico-prático centrado no Brasil” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Editora Almedina, 1998).

As alternativas abertas para lidar com as aporias derivadas dessas múltiplas crises tem apontado para a necessidade de reconhecer que, da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais, de um lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os comportamentos e a normatividade concreta aplicada pelos juízes de outro; têm-se acentuado a pertinência de compreender novas condições sociais, como a emergência de movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos, e do pluralismo jurídico que instauram e reclamam reconhecimento.

Estas graves questões atuais em sua complexidade, trazem para mim um eco de extraordinária antecipação, rara em referências autorais porque lançadas no isolamento intelectual dos espaços acadêmicos e funcionais de província, mas que certamente, impressionando a infância de minha própria formação, abriram-me horizontes interpretativos em minhas escolhas teóricas e políticas futuras.

Foto: AP

Foto: AP

Quando mais tarde, já nos bancos acadêmicos da Faculdade de Direito, experimentei a descoberta iluminadora de temas e de autores, reconheci, mais do que conheci, e adotei como modelo, na acepção plena do ideal-tipo, o meu avô Floriano Cavalcanti de Albuquerque.  Acerta seu filho Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de Albuquerque, nesta biografia interpretativa carregada de zelo filial e de admiração intelectual, em circunscrever seu esboço antológico, pelos quadrantes de uma inteligência fulgurante que não esgota o imenso caudal de suas formas de manifestação: magistrado, filósofo, sociólogo, político, advogado, orador, conferencista, professor e humanista. Nele se encarnava, em toda a sua expressão, o alcance da identidade bem formada no melhor sentido da Paidéia grega, que permitisse ao preceptor Fênix tal como esperava de seu pupilo Aquiles, apreciar o resultado da boa educação, tornando-se apto a dizer belas palavras, mas sabendo igualmente agir no mundo para com ética, transformá-lo.

No livro de Marco Aurélio, no qual este depoimento se inclui, todas aquelas facetas estão vibrantemente apresentadas. A mim me motiva, neste momento, por em relevo uma delas, a do juiz. Em parte porque nela se enfeixam todas as outras. Em parte porque, como salientei, nesse momento peregrino em diálogo de formação, me vejo a cada exortação, a cada descrição, a cada citação, tomado pela completude de meu modelo ideal realçando o recorte que ofereço aos meus auditórios. E, sobretudo, porque num tempo de hesitações e de incertezas, encontro no modelo a instigação iluminadora de um pensar em condições que ainda não se pensavam e de um agir sob condições absolutamente inéditas, que somente a percepção de um filósofo por ele tão estimado, poderia indicar para descrevê-lo. Refiro-me às palavras de Schopenhauer, para quem: “A tarefa não é contemplar o que nunca foi contemplado, mas pensar como ainda não se pensou sobre o que todo mundo tem diante dos olhos”.

Assim é que, conforme lembrei acima e repito, diferentemente do método de situação que é tomar o pensador em seu tempo, como fez Jacques D’Hondt (Hegel em son temps, Editions Sociales, Paris, 1968)), ou o próprio Floriano Cavalcanti (Antonio Marinho e seu tempo, Separata da Revista da Academia Norte-Riograndense de Letras, Natal, 1955), nas referências que eu a ele fizer, terei em conta uma autoria para além de seu tempo. Esse projetar-se para o futuro se percebe em cada passagem e em cada tema, e não apenas no recorte judicante que me mobiliza. Um exemplo, para ilustrar.

Estamos em 1928, não se descortinaram ainda os horizontes da emancipação da mulher, como sujeito de direito e detentora de plena cidadania. Esta é uma luta de hoje, do século XXI, com dramas mal resolvidos mesmo à luz da “Constituição Cidadã”, de 1988, com os evidentes limites de aplicação jurisprudencial da “Lei Maria da Penha”. Em 1928, o sufrágio feminino ainda não tinha sido conquistado, em que pese o protagonismo de lideranças que se celebrizaram nas campanhas para a sua realização, entre elas a norte-riograndense Nísia Floresta, até seu reconhecimento, pioneiramente no Rio Grande do Norte e depois, erga omnes com a Constituição de 1934.

Em 1928, oferecendo discurso político-jurídico de legitimação, dizia Floriano Cavalcanti em texto exemplar, cuja íntegra se encontra no livro que o biografa: “Aliás, sob múltiplos aspectos a mulher já se vinha afirmando galhardamente. Depois que as portas das Academias lhes foram franqueadas, ela mostrou que podia exercer bem todas as profissões. Advogada, médica, dentista, farmacêutica, engenheira etc., ela não pede meças ao colega masculino, colocando-se à altura do que mais competente for. E a sua atividade é extraordinária. Reúne-se em associações para tratar dos seus interesses, fundando ligas e clubes com programas políticos e sociais, em que, a par das questões econômicas, desfralda a bandeira política do sufrágio feminino. Não é mais a mulher abúlica de outrora. Em vez de elemento passivo, de mera anfitriã dos salões mundanos, ela sai às ruas e grita pela sua emancipação integral, civil e política”.

Encontro nessa passagem o reverberar de uma representação simbólica do espaço público republicano, lugar de gestação da fonte primária do direito que depois eu procuraria trabalhar com criterioso enquadramento teórico (Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua, vol 1, org., Editora UnB, Brasília, 1987; Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2011), que coloca Floriano Cavalcanti entre os que procuraram figurar, tal como anotei, juntamente com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, buscando compreender o fenômeno atual de mobilizações de rua, o alcance hermenêutico dessa metáfora, utilizada para “caracterizar a esfera pública na qual, em encontros e desencontros, reivindicando a cidadania e os direitos, a multidão transeunte se transforma em povo”(Correio Braziliense, Seção Opinião, Cidadania Achada na Rua, 20/06/2013, pág. 15).

Do juiz Floriano, apenas como começo de representação, eu me valho de um texto célebre de Anatole France, Prêmio Nobel de Literatura de 1921, um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem, notável escritor. O texto se intitula Os Íntegros Juízes e nele o escritor procura transmitir a impressão retida da observação de um quadro de Mabuse (Jan Gossaert), talvez a mesma que se possa perceber na pintura de van Eyck (o Políptico de Gantes), em que são figurados também os juízes íntegros, tal como são conhecidos.

De sua observação, diz Anatole, pode-se concluir ter o mestre dado aos dois juízes o mesmo ar grave de doçura e de serenidade. Mas, vistos os detalhes que caracterizam um e outro, pode-se ver que eles, no entanto, são diferentes, na índole e na doutrina. Um traz na mão um papel e aponta o texto com o dedo; o outro ergue a mão com mais benevolência do que autoridade, como que a liberar um pensamento prudente e sutil. São íntegros os dois, conclui o escritor, mas é visível que o primeiro se apega à letra, o segundo ao espírito.

Esta tensão, entre a letra e o espírito, já havia aparecido em outro texto de Anatole France – Crainquebill –, (A Justiça dos Homens, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978) buscando encontrar um equilíbrio possível entre a ordem e a regularidade e uma expectativa humana e sensível para representar uma justiça justa.

Ainda sobre este tema, em A Lei é Morta o Juiz é Vivo (A Justiça dos Homens, op. cit.), alinha parêmias do célebre magistrado Magnaud erigido, na doutrina e na literatura (Victor Hugo, em Os Miseráveis), em expressão de aplicação equitativa do Direito, com a fórmula, ensina Carlos Maximiliano, “decidir como o bom juiz Magnaud”.

Seu ponto de partida é trazer a Justiça para o social, de modo a permitir um processo de aplicação que leve a ultrapassar as condições limitadoras de seu momento de produção: “Enquanto a sociedade for fundada na injustiça, as leis terão por função defender e sustentar a injustiça”.

No texto mencionado, o sentido de sua crítica é, pois, convocar a integridade do juiz para a necessidade de vencer e de ultrapassar pelo inconformismo transformador, a reprodução, nas leis, da iniquidade social, hierarquizante e excludente. Do contrário, nestas condições, diz ele num texto que depois seria recuperado por João Mangabeira (A oração do paraninfo) em mensagem a estudantes de direito da Bahia, só restará ao magistrado “a missão augusta de assegurar a cada um o que lhe toca: ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza”.

Por isso o chamamento que faz Anatole France ao juiz vivo para se posicionar ativamente em face da lei morta: “A bem dizer, eu não teria muito receio das más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há texto que não se deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma grande vantagem que leva sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com freqüência. Via de regra, faz-se mais morto, mais frio, mais insensível do que o próprio texto que aplica. Não é humano: é implacável. O espírito de casta sufoca nele toda simpatia humana. E vejam que só estou falando dos magistrados honestos”.

Para este chamamento, no entanto, adverte Jean Cruet no livrinho paradigmático publicado em 1908 (A vida do direito e a inutilidade da lei, Editora Livraria Progresso, Salvador, s/d), é preciso que os magistrados ousem “sair fora dos textos, para compreender o mundo social em toda a sua extensão, em toda a sua complexidade e em todo o seu movimento”. Não se trata de desconsiderar os textos legislativos, mas de compreender que a rigidez das fórmulas em que se expressam, não dispensa uma mediação que recupere “o aspecto verdadeiro das coisas” de modo a desvendar o direito que se revela “na sociedade organizando-se por si própria”.

Todos os biógrafos de Floriano Cavalcanti, quando figuram o seu legado judicante guardam a unânime consideração de sua erudição e domínio técnico-doutrinário sobre o cuidado de fundamentar as suas decisões. Nisso que se acentua o apuro dogmático, sobre o saber manejar os pressupostos dos vários campos em que se organiza o conhecimento jurídico, há registros paradigmáticos de decisões suas que se prestaram a fixar o estatuto de determinadas questões. Exemplo disso é a sua sentença sobre a responsabilidade civil do Estado, reorientando o entendimento sobre essa matéria, de modo a admiti-la de forma objetiva. Pode-se estabelecer aí um radical giro de responsabilização, cujo alcance, a partir da Constituição de 1946, foi definitivamente caracterizado, sobretudo pela difusão que se deu a esse entendimento na obra consagrada de um antigo desembargador do Rio Grande do Norte, contemporâneo de Floriano Cavalcanti e que se notabilizou pela defesa desse princípio. Refiro-me a Miguel Seabra Fagundes que se tornou a partir de sua produção doutrinária desenvolvida em sua atividade no Rio de Janeiro, a principal referência para a doutrina brasileira nesse tema.

Certamente, a reflexão do professor fundada na sociologia e na filosofia trouxeram consistência à sua abordagem judicante, uma vez a aplicação embora técnica não pode dar-se desgarrada desses fundamentos e o juiz, por mais que preste tributo à positividade que exsurge da expressão legislada do direito, não pode estiolar-se naquela postura ancilar já denunciada por Orlando Gomes (A Crise do Direito, M. Limonad, São Paulo, 1955), de conformar-se à “navegação de cabotagem ao redor dos códigos”.

UFRN. Foto: Divulgação.

UFRN. Foto: Divulgação.

Como o próprio Floriano indicava (Discurso proferido perante o Conselho Universitário na cerimônia de outorga do título de Professor Emérito conferido pela UFRN), iluminava as suas sentenças, o fio condutor de suas reflexões como professor de Introdução à Ciência do Direito: “Estudioso da filosofia e da jurisprudência, como um dos fundadores da Faculdade de Direito escolhi a cadeira de Introdução, por ajustar-se melhor às tendências do meu espírito. Organizei, então, o programa, distribuindo a matéria num crescendo lógico, desde as noções gerais informativas de propedêuticas, ao discrime dos diferentes ramos do direito positivo. Assim, a par dos prolegômenos da ciência, da filosofia, arte, metodologia, e técnica tratava, também, dos aspectos sociológicos, econômicos e políticos do direito, bem como do mecanismo de sua realização (hermenêutica e processos interpretativos). O fim era oferecer um concepto global da ciência do direito, somente possível pela filosofia, que se erguendo às grandes alturas, de lá domina todo panorama jurídico, determinando o seu lugar no quadro dos conhecimentos e patenteando desde logo ao iniciante a sua unidade na variedade de um currículo de cinco anos. Houve quem estranhasse a extensão dada à filosofia, mas é que não concebo o estudo do direito de outra maneira, e estou convencido de que nenhum jurista é verdadeiramente notável sem ser versado nela”.

Daí a necessidade de os juízes se darem conta, como mostra Bistra Apostolova (Perfil e habilidades do jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília), de que prefigurar o sentido dos conflitos é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer compreender o significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi impõe ao juiz de sua narrativa (A morte de Ivan Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória profissional, social e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.

No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.

Não se trata, nessa referência a uma justiça poética, o que poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico.

Aplicadas aos juízes, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade): como “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.

O juiz assume sim uma missão e nela incorpora a dimensão orgânica que institucionaliza a sua judicatura. Ele o faz, hoje é sabido e aceito, no plano coletivo quando se associa para ampliar a sua participação política. Atualmente, os juízes assumem essa expressão politizada de seu agir coletivo, mas nem sempre foi assim e há registros dramáticos para confinar em sofrimento percursos impulsionados por compromissos de classe. Também nesse terreno Floriano Cavalcanti abriu sendas pioneiras. Tome-se, por ilustração, o discurso pronunciado em 1954, na sede do Tribunal de Justiça, na solenidade de fundação da Associação dos Magistrados Brasileiros no Rio Grande do Norte, da qual foi o primeiro presidente (O Juiz e a importância de sua missão). Depois de estabelecer a relação entre o agir insular , fragmentário e aritmético do juiz que caracteriza a soma quantitativa de seu esforço para determinar o quadro de suas  necessidades e de mostrar  a exigência de cooperação assim articular o prestígio qualitativo do agir enquanto classe, ele elabora um dos mais bem definidos esboços do que pode ser definido como perfil de um magistrado: “Judex, é como os latinos intitulavam a autoridade encarregada de aplicar as Leis. Dizer o Direito, é a sua significação etimológica – Jus discere. Equivale a prestar Justiça, desde que esta é a sua finalidade. O Juiz não é o ‘ente inanimado’, a que aludia Montesquieu, e sim, o ‘oráculo vivo’, como lhe chamava Blakstone. É figura dinâmica e não estática. A sua cultura tem que ser universal, para que dele não se chasqueie, como Lutero, ‘Pobre coisa o juiz que só é jurista!’, ou se reduza a nada, como D’Holbach, ‘Quem só o direito estuda, não sabe direito’. Vê-se que de nós, cuja ‘honrosa e difícil condição é poder tudo para a justiça e nada poder para nós mesmos’, na bela frase de D’Aguesseau, muito se exige e pouco se nos dá. Conhecimentos gerais e especializados, a par de qualidade excepcionais de inteligência, de caráter e moralidade – são os requisitos e predicados ordinários do Juiz. É que somos, na expressão de Carlos Maximiliano, ‘um sociólogo em ação, um moralista em exercício’”.

Anatole France, ainda acrescentava a essas qualidades próprias do bom juiz, certamente inspirando-se no Presidente Magnaud, a combinação entre o espírito filosófico e a simples bondade (A Lei é morta o juiz é vivo, op. cit.).  Algo que permita o salto humanizador que o exalte para além daquele lugar automático que já no século XIV mereceu a reprimenda de Bartolo de Sassoferrato (“I meri leggisti sono puri asini”). Um lugar veementemente recusado por Floriano Cavalcanti (O Juiz e a importância de sua missão): “Assim apercebido, estará a altura do seu nobre ofício, capaz de exercer a função de criador do Direito e humanizador da Lei, dando movimento aos textos imotos dos Códigos, adaptando os velhos preceitos às novas condições sociais. Nesse trabalho reajustativo torna-se ele o artífice da formação e do aprimoramento da norma jurídica, plasticizando-a ou suprindo as suas deficiências e omissões, ou fazendo sentir ao legislativo a necessidade de sua revisão ou reforma. Dessa maneira, o Juiz faz com que o Direito, estratificado na Lei, não se fossilize, e evolva como um organismo vivo. E os julgados proferidos em Tribunal (Jurisprudência), além de fontes documentárias da evolução jurídica, são preciosos repositórios para o estudo da Sociedade, pelos flagrantes das épocas em que foram pronunciados”.

Floriano Cavalcanti, pertence, pois, à estirpe dos íntegros juízes que sabe fazer a jurisprudência andar pelas ruas. E não apenas metaforicamente. Em trabalho publicado na Revista Anual do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, ano 1980 – (Floriano Cavalcanti de Albuquerque – Aspectos de uma Vida) – o Professor João Batista Pinheiro Cabral, meu colega na Universidade de Brasília (Departamento de História), relata um caso, bastante conhecido nos anais da magistratura do Rio Grande do Norte, que ele classifica, do seguinte modo: “Em minha opinião, porém, sua mais profunda sentença não foi passada nas comarcas, nem proferida no Tribunal de Justiça. A maior e a mais bela sentença de Floriano Cavalcanti foi passada na efervescência das ruas, em plena Ribeira. Não foi publicada em nenhuma revista de jurisprudência, mas está escrita no Livro da Vida. Foi a sentença do ‘Episódio de Jonas’”.

O episódio narrado a seguir no ensaio está também reproduzido nesta edição e dá conta do apelo a que acudiu, quando na rua, no cumprimento de um mandado de despejo, o infortunado inquilino invocou “pelo amor de Deus, a existência na cidade de um filho de Deus que o acudisse”, justo no momento em o magistrado Floriano passava pelo local e se deixou tocar pelo apelo, que Henrique Dussel, desde a sua tese de uma Filosofia da Libertação, designa como protopalavra (na origem radical, porque ainda não articulada), que se traduz como grito que clama por justiça. Floriano, narra Cabral, “abre caminho entre o povo e pergunta ao oficial de justiça pelo mandado de despejo. Ao lhe ser mostrado o documento, toma-o e rasga-o”, tornando impossível o seu cumprimento imediato. E depois, buscando as formas dialógicas de mediação, com os representantes oficiais do processo, instaura as condições legítimas que permitiram encontrar, com o acordo de todos – autor, advogados, procurador, juiz – a solução que salvaguardou o direito material posto em causa.

Trata-se de designar uma estirpe de juízes que, na sua judicatura provincial – Floriano Cavalcanti de Albuquerque; ou no Supremo Tribunal Federal – Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, entre eles – souberam exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. Provedores de uma justiça poética é esta estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”.

 

Jose_Geraldo_Fotor_a78f0ed01a284f628e99aa33869f4ce0
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

Se você deseja acompanhar as notícias do Jornal Estado de Direito, envie seu nome e a mensagem “JED” para o número (51) 99913-1398, assim incluiremos seu contato na lista de transmissão de notícias.

SEJA  APOIADOR

Valores sugeridos:  | R$ 20,00 | R$ 30,00 | R$ 50,00 | R$ 100,00 |

FORMAS DE PAGAMENTO

 
Depósito Bancário:

Estado de Direito Comunicação Social Ltda
Banco do Brasil 
Agência 3255-7
Conta Corrente 15.439-3
CNPJ 08.583.884.000/66
Pagseguro: (Boleto ou cartão de crédito)

 

R$10 |
R$15 |
R$20 |
R$25 |
R$50 |
R$100 |

 

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe