COVID-19: implicações bioéticas e de biodireito

Edison Tetsuzo Namba, Juiz de Direito, articulista do Jornal Estado de Direito

Introdução

        Depois de algum tempo de ausência, volto a escrever para refletir sobre alguns aspectos da pandemia que assolou o mundo, provocada pelo Coronavírus. A abordagem será feita sob a ótica da bioética e do biodireito.

        Pandemia, conforme a OMS (Organização Mundial da Saúde), é a disseminação mundial de uma nova doença. Isso ocorre quando uma epidemia, grande surto que afeta uma região, espalha-se por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa (https://ladoaladopelavida.org.br/detalhe-noticia-ser-informacao/saiba-o-que-e-uma-pandemia. Consulta em 11.11.2020).

        Atualmente, uma série de precauções são necessárias, para não se contrair a doença, que pode levar a óbito, em razão da inexistência de vacinas para combater a moléstia.

        No mundo, computam-se, até 10.11.2020, 50.676.072 casos confirmados e 1.261.075 mortes (https://www.paho.org/pt/covid19. Consulta em 11.11.2020). Por isso, todo cuidado é necessário para evitar o contágio.

        A saúde, direito essencial para todos, é, segundo a Carta da República “(….) direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196).

        Em razão disso, todas as informações necessárias para prevenir a doença e amenizar seus efeitos devem ser proporcionadas pelo Estado, sob pena de haver responsabilização, a nível federal, estadual ou municipal.

        Restrições estão sendo impostas e outras medidas para amenizar a disseminação da doença também estão sendo feitas. Na contraposição delas e dos direitos de cada um, por vezes, deve-se ter cuidado para não ultrapassar o inviolável.

 

Calamidade pública

        O Decreto nº 6/2020, editado pelo Congresso Nacional, reconheceu, para fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4.5.2020, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República, encaminhada pela mensagem 93, de 18.3.2020, entrou em vigor em 20.3.2020, com prazo até 31.12.2020.

        Com isso, dispensou-se o atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11.11.2019, e a limitação de empenho do art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4.5.2020 (art. 1º).

        Sendo assim, uma Comissão Mista no âmbito do Congresso Nacional composta por seis (6) deputados e (6) senadores, com igual número de suplentes, acompanha, avalia e faz relatórios circunstanciados sobre a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública de importância internacional.

        O Executivo, em outras palavras, gasta mais do que o previsto e desobedece às metas fiscais para custear ações de combate à pandemia.

        O estado de calamidade pública é inédito em nível federal.

        Segundo o governo federal, isso é necessário para proteger a saúde e os empregos dos brasileiros e da perspectiva de queda da arrecadação.

        Vê-se, pois, a preocupação com os princípios da não-maleficência e beneficência, buscados no âmbito bioético. Não causar mal a milhões de brasileiros, para que tenham higidez na saúde, e garantir o emprego de muitos.

        Todavia, na prática, a saúde do brasileiro não estava e não está muito bem (https://www.anahp.com.br/noticias/noticias-do-mercado/como-esta-a-saude-do-brasileiro/ Consulta em 11.11.2020). Além disso, a taxa de desemprego aumentou, 13,5 milhões, cerca de 3,4 milhões a mais que em maio, o que representa uma alta de 33,1%, a taxa de desempregado, em outubro de 2020, ficou em 14% (https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/23/no-de-desempregados-diante-da-pandemia-aumentou-em-34-milhoes-em-cinco-meses-aponta-ibge.ghtml. Consulta em 11.11.2020).

 

Liberdade de ir e vir

        A liberdade de ir e vir, igualmente, compreende de permanecer em determinado lugar. Todos podem locomover-se livremente, em sendo limitados nesse direito podem utilizar-se do “habeas corpus”, se decorre de ilegalidade ou abuso de poder (art. 5º, inciso LXVIII).

        A autonomia, princípio bioético, das pessoas de ir ou vir, ficou restrita nessa situação também.

        Orientou-se a população para ficar em casa. Não sair. De um momento para outro, a rotina tão assimilada por muitos foi mudada.

        Não era possível ir ao trabalho, à escola, a todos os comércios, cinemas, teatros, shoppings etc.

        De outro lado, com o passar de algumas semanas e de alguns meses, algumas pessoas ficaram impacientes, até mesmo não desejavam usar máscara, pois isso, segundo elas, seria de seu livre arbítrio (Lei nº 14.019/14.7.2020 – determina a obrigatoriedade do uso a nível federal).

        Atualmente, houve mais maleabilidade. Está-se permitindo turnos para comparecimento pessoal ao trabalho. Gradativamente, o comércio começa a estender o horário de atendimento. Cinemas, teatros e áreas públicas, com restrições, começam a ter novamente o acesso liberado. Existe o risco, antecipe-se, de tudo voltar, alguns alardeando a necessidade de um “lockdown”, fechamento total, face ao crescimento de internações em hospitais.

        É importante prevenir que alguém contraia a doença. O problema maior é até que momento pode-se impor restrições. A situação dura de março de 2020 até agora, novembro de 2020, oito (8) meses, sem uma previsão para se produzir vacina eficiente.

        Mesmo com a produção de uma vacina, a distribuição será limitada, conforme se veicula.

 

Direito ao trabalho

        O exercício do trabalho, além de ser reflexo da liberdade de escolher a atividade produtiva que deseja, é um direito humano importante para a completude da dignidade de cada um. Sem sua execução, não se aufere ganhos para ser totalmente livre e optar pela melhor forma de conduzir a vida de cada um.

        Basta alguns exemplos para se constatar isso: a alimentação, a saúde, a educação, aquisição da cultura, lazer dependem dele. Sem uma fonte para se auferir o necessário para subsistência e desenvolvimento, o próprio direito à vida fica comprometido.

        Quando a pandemia iniciou, vieram regulamentações para restringi-lo: não se poderia trabalhar presencialmente, comércios e empresas deveriam cessar suas atividades, a circulação de pessoas ficou restrita e, consequentemente, de consumidores, enfim, apenas os serviços essenciais poderiam, sob certas regras, ficar em funcionamento.

        Houve queda na arrecadação de tributos; pessoas de um momento para outro ficaram sem seus empregos; houve redução da jornada de trabalho e salários.

        Essa excepcional restrição é possível, está prevista no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 4º. Pacto promulgado e com entrada em vigor no Brasil em 24.4.1992, na forma do art. 27, § 2º; cuja execução e cumprimento, da maneira de seu teor, foi veiculado pelo Decreto nº 591, de 6.7.1992).

        Novamente, publicou-se decreto, em 17.11.2020, para prorrogar a quarentena no Estado de São Paulo, mesmo com as medidas de reabertura e adiou-se a reclassificação de flexibilização (Decreto nº 65.295, de 16.11.2020 – ocorreu extensão dos termos e condições do Decreto nº 64.994, de 28.5.2020, até 16.12.2020, a medida em estudo, instituída no Decreto nº 64.881, de 22.3.2020 e a suspensão de atividades não essenciais no âmbito da Administração Pública estadual, em razão do Decreto nº 64.879, de 20.3.2020).

        Pode-se ter, portanto, novamente, as restrições já realizadas no passado, em razão de saúde pública.

 

Saúde e experimentação com seres humanos

        Quando a saúde está comprometida, muito se faz para curar-se de algum mal. Todavia, isso não pode comprometer limites impostos pela bioética.

        Um deles é a impossibilidade de não se seguir alguns protocolos de segurança quando se cria uma vacina. A experiência em seres humanos, para verificar a eficácia de algum procedimento de imunização, deve ser cercada de todos os cuidados possíveis.

        Um membro da sociedade não é meio e, sim, fim de todo um encadeamento de valores. Ninguém pode se submeter a tratamento experimental sem ter consciência de todos os efeitos adversos, colaterais. Ademais, não pode candidatar-se a uma experimentação se não estiver com plena capacidade para entender o que lhe aconteceu ou pode ocorrer.

        Pessoas acometidas pelo Coronavírus, pelos diferentes sintomas de um e outro indivíduo, podem ficar tentados a serem “cobaias”, mesmo com pouca efetividade da criação da ciência.

        Um outro aspecto que não pode ser deixado de lado, que prejudica os princípios da beneficência e não-maleficência – causar bem para todos e não prejudicar terceiros -, é a disputa das grandes indústrias farmacêuticas para serem as pioneiras na descoberta de alguma vacina eficaz. Mesmo com a promessa de distribuição regular para todos, em algumas oportunidades, o lucro será o móvel para o fornecimento a um ou outro Estado.

        A farmacêutica Pfizer anunciou que sua vacina contra o covid-19, elaborada em parceria com a empresa alemã BioNTech, é segura e tem 95% de eficácia. É o resultado final da terceira fase de testes. Elas buscarão aprovações de agências reguladoras e terão de desenvolver soluções de logística. No Brasil, não há acordo de compra da vacina. O Ministério da Saúde reuniu-se com a Pfizer em 17.11.2020 (se as informações da Pfizer forem confirmadas, com autorização da FDA – “Food and Drugs Administration”, agência reguladora de medicamentos nos Estados Unidos, o desenvolvimento da vacina será muito célere, procedimento que geralmente leva anos). Outras vacinas também estão sendo preparadas: a da empresa norte-americana Moderna, com 94% de eficácia; a russa “Sputnik V”, de 92,5%; a vacina CoronaVac, produzida em parceira com o Instituto Butantan, ainda não apresentou resultados parciais de eficácia, está também na terceira fase de teste (https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/11/18/pfizer-diz-que-vacina- contra-covid-19-e-segura-e-tem-95-de-eficacia.htm. Consulta em 18.11.2020).

        Deve-se ter os instrumentos jurídicos cabíveis para que, frente à pandemia, um dos princípios importantes da bioética efetive-se: o da justiça. Com isso quer-se dizer, que haja a vacinação de milhões de pessoas, afastando-se da humanidade uma moléstia que deixou todos atônitos e preocupados.

 

Convivência social

        Modificaram-se as regras da convivência social. Deve-se usar máscara, como lembrado, mas, além disso, manter uma certa distância de uma pessoa a outra; não realizar aglomerações; ter número limitado de pessoas em um comércio ou lugar de trabalho; lavar as mãos constantemente; usar álcool gel; não colocar as mãos em boca e nariz; quando se espirrar ou tossir, não voltar-se para alguém; usar luvas para manipulações diversas; dentre outros comportamentos.

        Preferem-se as comunicações por WhatsApp, telefones, aplicativos virtuais; comprar e vender, igualmente, por meio eletrônico; consultas médicas por aplicativos e, até mesmo, sessões com psicólogos, psicoterapeutas e psiquiatras.

        A educação é por meio audiovisual. Cultura, por acesso, igualmente, informático.

        Enfim, o distanciamento de amigos, colegas, familiares, profissionais, é a regra. A presença física fica em segundo plano.

        Esse isolamento social afeta a cada um de maneira diferente. Se por um lado, deseja-se restringir-se o contato presencial para não haver disseminação da doença, de outro, prejudica-se a evolução dos sentimentos nobres da pessoa, tais como, compaixão, empatia, solidariedade, entre outros.

        O prejuízo da falta de espontaneidade e liberdade que o Coronavírus causará só será sentido depois de se contornar o problema emergencial de não o ter mais como a doença que atormenta e mata.

        Uma das características humanas não tão utilizadas aflorará, qual seja, a da tolerância. Deve-se tolerar mudanças, comportamentos, realidades diversas. Na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948, Resolução XXX, Ata Final aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948, insere-a como dever de todos (art. XXIX).

        Uma verdade, novamente, se instalará no espírito de todos: não há possibilidade da instrumentalização do ser humano. Sua vida é primordial. É o pressuposto para que sua dignidade seja percebida.

 

Conclusão

        A pandemia, provocada pela COVID-19, causou surpresa ao mundo. De um momento para outro, uma calamidade pública instalava-se.

        Em razão disso, hábitos foram modificados, a autonomia teve de ser restringida, exemplificativamente, na cultura, na educação, na saúde e no trabalho causando transtornos para todos.

        No afã de se buscar uma vacina, não se pode relativizar a importância do ser humano. Ele não pode, mesmo que acometido pela doença, sujeitar-se, sem desejar ou não ter consciência, a uma nova iniciativa.

        A convivência humana restringiu-se, sobrelevou-se os princípios da beneficência e não-maleficência. Isso, contudo, não retira a importante lição de que a vida é primordial, substrato para a dignidade humana, que, mais do que nunca, deve ser prestigiada.

Edison Tetsuzo Namba
Edison Tetsuzo Namba é  Articulista do Estado de Direito. 50. Juiz de Direito em São Paulo. Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Docente Formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Docente Assistente da Área Criminal do Curso de Inicial Funcional da Escola Paulista da Magistratura – EPM (Concursos 177º, 178º, 179º e 180º). Docente Assistente da Escola Paulista da Magistratura (9º CDPP e 10º CDPP – especialização). Docente Civil da Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB). Ex-representante do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no Comitê Regional Interinstitucional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – São Paulo. Membro do Instituto de Direito de Família. Autor do livro Manual de bioética e biodireito, São Paulo: Atlas, 2ª ed. 2015.

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