A TERCEIRIZAÇÃO e a ESTUPIDEZ HUMANA
Renato Russo compôs uma música em 1993, ano em que editada a Súmula 331 do TST e iniciada a fase negra de absurda tolerância com a terceirização nas relações de trabalho. Nela, convida-nos a celebrar a estupidez humana, “a estupidez de todas as nações”, formadas por “covardes, estupradores e ladrões”. Convida-nos a “celebrar nosso governo, nosso Estado que não é nação, celebrar a juventude sem escola, as crianças mortas, celebrar nossa desunião”, “nosso castelo de cartas marcadas, trabalho escravo, nosso pequeno universo”. Convida-nos a “celebrar a violência e esquecer a nossa gente, que trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada”. Por fim, nos chama a “celebrar a aberração de toda a nossa falta de bom senso, nosso descaso por educação”. Em 2015, mais de duas décadas depois da composição dessa música, discutimos no Congresso Nacional a redução da maioridade penal, a alteração do conceito de trabalho em condição análoga a de escravo, a terceirização, o financiamento privado de campanhas políticas. O que nos escapa? Por que é tão fácil perceber a estupidez humana e, ao mesmo tempo, tão difícil enfrenta-la? Estamos há mais de dois séculos tentando construir uma realidade minimamente boa, com o reconhecimento de patamares mínimos de sobrevivência digna, mas nada parece suficiente para travar o retrocesso institucional perpetrado não apenas pelo congresso, mas também pelo governo e pelo próprio Poder Judiciário, anunciado como o bastião das garantias fundamentais no século XXI.
Na mesma música, Renato Russo nos convoca: “Venha, meu coração está com pressa, quando a esperança está dispersa só a verdade me liberta; chega de maldade e ilusão”. Chega de ilusão no discurso de precarização dos direitos dos trabalhadores, chega dessa maldade perversa que retira direitos, piora concretamente a condição de vida de milhares de trabalhadores e segue afirmando proteção. Quando a esperança está dispersa é a verdade que liberta. Por isso, precisamos – como referiu o colega e amigo Souto Maior em uma palestra não tão recente – “dar nome aos bois”. Enunciar as grandes empresas que exploram trabalho escravo e infantil. Ter coragem de afirmar que o capital não protege o trabalho; o esmaga. A terceirização é feita de morte, doença e miséria. Arrasta consigo adultos e crianças, promove o rebaixamento das condições de vida, torna os vínculos precários, cria uma subespécie de seres humanos: pessoas que trabalham para sobreviver. Trabalham doze, quinze horas, recebem salários ínfimos, não tem garantia de emprego, sofrem com doenças silenciosas, mas extremamente agressivas. Hoje, iniciando mais um dia de trabalho, fui surpreendida pela atualidade dessa música. O título, Perfeição, revela um caminho de busca constante do que nos torna melhores. Ao mesmo tempo, nos revela o quanto ainda precisamos caminhar, reconhecer nossos erros e evitar repeti-los. As décadas de terceirização nas relações de trabalho legaram ao país (bem) mais de doze milhões de trabalhadores invisíveis, precários, cuja situação pode facilmente ser reconhecida como incompatível com o bem estar, a tranquilidade, o conforto e a segurança que a Constituição nos impõe como busca concreta. Está na hora de enfrentá-la, rejeitando-a definitivamente. É hora de escolher em que tipo de sociedade queremos viver e decidir se seguiremos a celebrar nossa própria estupidez.
Valdete Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Européia de Roma – UER (Itália), Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutoranda em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS