A precarização do ensino superior privado no Brasil e a prática do ensalamento

Angie Catiuscia Costa Miron[1]

 

“Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez mais hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? Lavar as mãos em frente da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele.” Paulo Freire

 

Foi inaugurado um lindo mural em São Paulo, na lateral de um prédio, no recente dia de comemoração do centenário de Paulo Freire. Pensei que se assim construíssemos nossas paredes e pintássemos nossas vidas, o mundo realmente seria diferente. Paulo Freire já tanto nos disse sobre encontrarmos as saídas pela educação. É comum um sentimento de felicidade quando sabemos que existem mais pessoas esperançando por aí.

Porém, os últimos tempos da educação no Brasil têm sido os mais tristes, daqueles que nos deixam quase sem ar. Que dirá, então, com esperança. Sem investimento, sem incentivo, em um projeto maior de metabolismo social do capital, a educação deixou de ser prioridade e passou a ser um grande negócio, onde o resultado é o lucro e não a efetiva entrega de qualidade para nosso povo. Os últimos semestres têm sido devastadores para os professores da rede privada de universidades. Em razão da pandemia, as grandes corporações de ensino optaram por acumular turmas para um mesmo professor, por matéria e até de diferentes cursos, considerando que os aplicativos utilizados para aulas por videoconferência, no ensino remoto da pandemia, assim permitiram, retirando emprego de uma vasta quantidade de professores em todo o país, que, além da crise em razão da pandemia, se viram reféns de um sistema autofágico na educação. Coordenadores de curso passaram a ter que atuar em mediação entre a direção das universidades e seus pares, e as mudanças vieram sem aviso prévio e tampouco possibilidade de preparação por parte dos docentes. Algumas universidades, por exemplo, com unidades espalhadas pelo país, nos cursos de Direito, elegeram um professor para ministrar determinada cadeira para todas as possíveis turmas em um mesmo horário. O calendário passou a ser regionalizado ou até nacionalizado, e os alunos perderam muito em qualidade, didática, aproximação com o professor e colegas, pagando e exigindo aulas em EAD – adiantando inclusive a autorização do MEC para que cursos de direito passem a ser na modalidade à distância (o que ocorreu apenas para alguns cursos até agora, a partir de julho do corrente ano).

O ensino remoto, acelerado pela pandemia, já mostra as inúmeras dificuldades de um aprendizado de qualidade por meio virtual. A precarização, portanto, não é apenas dos contratos de trabalho dos professores, mas da educação.

Algumas universidades, como a que estou vinculada, passaram a ter um professor para trabalhar para suas unidades em todo o País. Cheguei e a ter 128 alunos em sala de aula, de sete unidades diferentes (distintas cidades), de quatro Estados da Federação (que sequer poderiam estar simultaneamente na sala do google meet, que permite apenas 100 participantes), sem qualquer aviso prévio, consulta ou mesmo aditamento do contrato de trabalho – que segue apenas com uma das filiadas. Nesse tempo, pude ver de perto que os professores, além de terem sofrido despedidas em massa (inúmeros colegas foram desligados), também perderam inúmeras cadeiras, tiveram seus salários reduzidos drasticamente – sob a justificativa de que a carga horária de trabalho no ensino híbrido é menor e que a crise justifica tal medida. Na minha pequena experiência como docente de uma universidade privada, eu já tive minha carga de horário reduzida duas vezes, meu número de alunos triplicado e meu salário também reduzido à metade. Estão todos paralisados, sem ação de protesto. E me ocupo, ainda que timidamente por minha voz, de não reforçar o poder do opressor, inspirada por Paulo Freire, convidando-os a refletir sobre qual o tipo de educação queremos.

Aos demais professores que seguem vinculados a estas instituições (categoria em que me incluo), observo que a oferta de mão de obra é tanta que reclamar significa perder o pequeno espaço que lhes sobrou – estão tomados de medo. Carreiras inteiras dedicadas à academia, professores brilhantes, premidos e recortados pela necessidade de manterem o mínimo de dignidade que lhes resta: a sobrevivência.

O nome dessa prática é ensalamento e, mesmo tendo chegado há pouco tempo nesses espaços, por ser exatamente da área trabalhista, tenho inquieto meu coração Freiriano. Não vale mais a pena o tempo de estudo e dedicação?

Ser professor vai ser luxo de quem pode ter essa árdua tarefa como bico? Vai ser profissão relegada a um segundo plano, com preparação de aulas na madrugada, num esforço inominável, de poucos que seguem acreditando na transformação pela educação? Para depois haver utilização em massa do material elaborado, num isomorfismo sem fim de uma educação acrítica. Darcy Ribeiro também muito alertou que a crise da educação do Brasil não é uma crise, mas sim um projeto. O ensalamento faz parte deste projeto.

Viver na pele, do lado de cá do espelho, o que vejo acontecer com os trabalhadores e com o trabalho no Brasil dentro do TRT4, como servidora por 15 anos, reforça a necessidade de pensarmos o direito fora das estreitas linhas de uma decisão judicial. Algumas das grandes universidades sequer pagam direitos trabalhistas sem uma ação judicial movida para tanto, esperam ser cobradas no judiciário, se assim forem corajosos os professores e, ainda, se esquivam de todas as formas permitidas pela retórica argumentativa dos advogados dos grandes escritórios contratados para gerirem seu passivo. O judiciário e o poder coercitivo da lei sequer são limites à prática e seu custo, aliás, vem embutido no pacote cobrado dos alunos.

E percebi que, realmente, nunca temos a noção suficiente, ao propor a solução de um processo por meio de uma decisão judicial, de qual o tamanho da dor de quem tem seu salário drasticamente reduzido e que perde espaço de trabalho para uma mão invisível do capital sob o pretexto da crise que retroalimenta o sistema nessa forma mais agressiva. Se tais condutas não forem inibidas, dificilmente teremos no judiciário, posteriormente, uma efetiva reparação. O dano já está quase consumado e se estende aos professores, aos alunos e à sociedade. Corre-se o risco, ainda, de sequer se reconhecer judicialmente a evidente alteração lesiva dos contratos de trabalho, afastando a incidência do art. 468, caput, da CLT, considerando-se a normalização dessa prática que, sem dúvidas, está fazendo por sufragar uma das mais importantes categorias de trabalhadores, talvez única com real possibilidade de mudar o curso da nossa história. Os sindicatos nem se dão mais ao trabalho de levar a pauta adiante, apesar do evidente o dano coletivo e dumping social. Os professores que contestaram ou reclamaram seus direitos não mais estão trabalhando nas universidades que se utilizam da prática. Aquela história de que existe possibilidade de negociação direta entre empregado e empregador (mesmo no caso de professores universitários que já tiveram grandes salários), que foi um dos objetos tão exaltados na reforma trabalhista, sabemos todos nós que é uma falácia. Vence o capital e perde, talvez, minha carreira na docência privada, mesmo que como professora de direito do trabalho, pois não posso dizer que não escrevi com medo de que seja curtíssima em razão da crítica ora exposta.

 

Prática do Ensalamento – em resumo: Reestruturação das instituições privadas de ensino superior, que tem apoio em portaria do MEC de dezembro de 2019 para substituir ensino presencial por ensino remoto, que acaba por importar em “ensalamento”, prática que consiste em juntar turmas diferentes numa única aula e corta o emprego de centenas de professores.

 

[1] Mãe da Cecília e da Lavínia. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2006), mestranda em Sociologia na UFRGS. Com Pós-Graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Uniasselvi (2013) e Especialização em “Fundamentos criticos: los Derechos Humanos como proceso de lucha por la dignidad humana” pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha – ES) (2018). É Assessora de Desembargadora do TRT da 4ª Região. É professora universitária das disciplinas de Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e Prática Trabalhista. Tem experiência na área de Direito do Trabalho e Direitos Humanos com ênfase em Teoria Crítica, Terceirização, Controle de Convencionalidade e Contratos de Trabalho com a Administração Pública. Professora Voluntária no Projeto Pescar, na comunidade jurídico trabalhista. http://lattes.cnpq.br/5680201278030897

 

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