Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Título original – NELSON VICENTE PORTELA PELLEGRINO. A EFETIVIDADE DA POLÍTICA URBANA DE INCENTIVO AO INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO PARA CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO BRASIL: UMA ANÁLISE DO PLANO DE RECUPERAÇÃO E REVITALIZAÇÃO DO CENTRO ANTIGO DE SALVADOR E DO FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – FII CAS (2012-2014). Dissertação defendida e aprovada no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica do Salvador – UCSal . Salvador, 2025, 186 fls.
Depois de ter participado da Banca de Qualificação, me vi convidado para a Banca de Defesa da Dissertação, pelo seu presidente e orientador professor Tagore Trajano, do Programa de Pós-Graduação (Direito) da Universidade Católica de Salvador, participando da arguição juntamente com o professor Heron Gordilho, docente da UCSal.
Do que trata a Dissertação, diz o seu resumo:
Este trabalho destina-se ao estudo de caso do processo de implantação do Fundo de Investimentos Imobiliários (FII) para recuperação e revitalização do Centro Antigo da Cidade de Salvador (CAS), Bahia, questionando a imprecisão de sua abordagem, os possíveis impactos urbanos, habitacionais e sociais, além do risco de aprofundamento do racismo ambiental com a população negra e mais pobre. Dentro desse contexto, pretende-se abordar, na perspectiva da função social da propriedade, dos elementos constitucionais do artigo 182 e 183, tratados pelo Estatuto da Cidade, do direito à cidade, como o FII pode promover a gentrificação do espaço urbano, aliado ao aprofundamento do racismo ambiental, notadamente pelo contexto de patrimonialismo histórico na qual a cidade foi formada, evidenciando os entraves ao processo emancipatório dos cidadãos marginalizados, o atendimento à função social da propriedade e o direito constitucional à moradia.
Sobre esse tema mais geral, a partir da realidade de Salvador, tenho tido uma atenção frequente e uma intensa interlocução. Bem recentemente acompanhei o estudo Cidadania e Territorialidade Periférica: a Luta pelo Direito à Cidade no Bairro do Calabar em Salvador/BA de Raique Lucas de Jesus Correia. Dissertação de Mestrado (Exame de Qualificação). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador (UNIFACS), sob a orientação do Professor José Euclimar Xavier de Menezes – Orientador (UNIFACS).
De um modo mais cultural, para compreender a dinâmica social das redes de sociabilidade que neles se tecem, vale mergulhar no universo midiático dessa realidade assistindo o documentário “Projeto Cienciart V – A Cidade pelo Avesso: Territorialidade e Resistência Cultural nas Favelas de Salvador/Bahia/Brasil”. Uma iniciativa do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPEC/UNIFACS/CNPq), com financiamento público viabilizado por meio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), conforme Edital nº PG02/2023 – Produção Audiovisual Web da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SECULT-BA). O objetivo do documentário é lançar luz sobre as histórias e vivências dos territórios periféricos da cidade, explorando suas riquezas culturais, as formas criativas de resistência e as práticas de autodeterminação que emergem desses espaços. São as “cidades invisíveis” (veja a epígrafe de Pellegrino na sua Dissertação) que apesar de negligenciadas e excluídas dos processos hegemônicos da produção da cidade dominante, ocupam a maior parte do território habitado, moldando a paisagem urbana e (re)construindo os sentidos que atravessam o asfalto, principalmente por meio de estratégias de resistência política, manifestações simbólicas e criação artística.
Convocando artistas, ativistas, pesquisadores, moradores e outros agentes de transformação – eu próprio compareço com uma intervenção – o documentário se propõe a ser um veículo para a mobilização social, cultural e acadêmica em torno dos Direitos Humanos, promovendo um diálogo aberto que envolva as diversas sensibilidades, projetos de vida e trajetórias emancipatórias que fazem do território urbano um espaço vivo, autêntico e heterogêneo. Desafiando as narrativas dominantes sobre o espaço urbano, o documentário visa, fundamentalmente, promover uma maior conscientização pública sobre as favelas, em que se possa pensar a cidade de baixo para cima; em que as vozes e histórias dos marginalizados assumam a centralidade da produção de narrativas desde e sobre este espaço. Esse é o avesso da cidade e essa é a cidade pelo avesso (conferir o documentário em https://www.youtube.com/watch?v=X6IReFEMKGI&t=4s).
Voltando à Dissertação de Raíque, em meu exame – https://estadodedireito.com.br/cidadania-e-territorialidade-periferica-a-luta-pelo-direito-a-cidade-no-bairro-do-calabar-em-salvador-ba/ – indiquei que o meu acervo de reflexão para diálogo com o Autor da Dissertação (Raique), muito sintonizado com o que ele desenvolve, pode ser conferido no prefácio que elaborei para o livro organizado por Enzo Bello e Rene José Keller – Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018). Nesse prefácio faço uma balanço de contribuições que guardam pertinência com os achados de O Direito Achado na Rua. Relevo para a própria Adriana e também para um trabalho que interessa de perto ao estudo de Raíque – Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador (Elisabete Santos [coordenação geral], Roseli de Fátima Afonso…[et al.]. Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012, 196 p.), de cujo seminário de apresentação participei e cujo prefácio elaborei a convite dos organizadores (cf. o meu http://estadodedireito.com.br/atlas-sobre-o-direito-de-morar-em-salvador/).
Todo esse acervo sinaliza a condição de protagonismo que designa a subjetividade coletiva instituinte de direitos, sobretudo quando se instala em movimentos sociais, concorda Raíque que provêm de processos “de insurgência e de reivindicação de direitos, tanto mais projetivos, quando desde a realidade de carências (tal como considero com citação do Autor, tornando, diz ainda Raíque “o cidadão periférico o montador de sua trincheira de combate organizando novas formas de vida e projetos emancipatórios”.
Reconheci esse mesmo protagonismo quando analisei o trabalho de Tiaraju Pablo D’Andrea, em Lutas Populares em Periferias Urbanas e Favelas (cf. anoto em minha resenha de Direitos Humanos no Brasil 2022, e mais detidamente em sua tese doutorado, conforme (http://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/). Elas apontam para aquela que é, a meu ver, a principal conclusão do trabalho: atestar “a importância da luta dos moradores do Calabar para um redimensionamento a propósito da noção estrita de cidadania, deslocando-a de uma compreensão estática, para uma concepção viva, enriquecida pelos movimentos contínuos, permanentes, de (re)apropriação territorial e reivindicação do direito à cidade”.
E ainda mais, apontei para outra novidade que foi descobrir em áreas cuja designação não revela de imediato a complexidade de seus conteúdos, e poder encontrar, na área de Arquitetura, já precedida de premiação originária, a tese de Adriana Nogueira Vieira Lima, “Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade: porosidades, conflitos e insurgências em Saramandaia”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016, sob a orientação da Professora Ana Fernandes.
Impedido de deliberar, por ter participado como examinador tanto da banca de qualificação quanto da de defesa da tese, neste último estágio compartilhando argumentos com uma banca multidisciplinar, na qual esteve presente Raquel Rolnik, pude aquilatar no debate no seio da Comissão de escolha do Grande Prêmio, o reconhecimento à qualidade da autoria e à atualidade do tema, que associa de modo muito qualificado, o diálogo entre o urbanismo e luta social por direitos, tal como revela o bem elaborado resumo.
A tese de Adriana, diz o seu resumo, “busca analisar a produção de direitos urbanos pelos sujeitos coletivos de direito em um contexto assimétrico de acesso à cidade. Para isso, adota a teoria da pluralidade jurídica como instrumental analítico. Parte-se do pressuposto de que o processo instituinte de direitos urbanos é interescalar e envolve complexas fontes de legitimação que têm na sua base relações de conflito, reciprocidade e autonomia. A pesquisa, que adota uma perspectiva interdisciplinar, foi desenvolvida com base no trabalho de campo realizado no Bairro de Saramandaia, localizado em Salvador, Bahia, Brasil. A etnografia foi eleita como método privilegiado de apreensão da realidade. Essa opção refletiu-se nas relações travadas em campo construídas através de interações e diálogos. Os pressupostos da pesquisa foram analisados através de três eixos que se interconectam: os direitos autoconstruídos pelos moradores face à ausência do Estado na prestação de serviços urbanos; constituição de direitos urbanos através de relações ambíguas com o Estado; e a (des)construção de direitos urbanos: insurgências, conflitos e disputas pelo espaço urbano. A pesquisa revelou que os direitos urbanos autoconstruídos encontram na necessidade de morar o seu principal parâmetro de legitimação social, emergindo daí as características do que denominamos Direito Autoconstruído: flexibilidade, reciprocidade e atrelamento entre forma e substância. Ficou evidenciado ainda que o Direito Autoconstruído ganha força nos processos de interação social, levando os sujeitos coletivos de direito a participarem da construção de um projeto político de transformação social que repercute no modo como ocorre a interação entre as escalas de juridicidades. Os resultados apontam também que as relações de porosidade entre as escalas de juridicidade são marcadas por conflitos, transgressões e permeabilidades e se nutrem das táticas potencialmente insurgentes praticadas pelos moradores. A partir dessa constatação, verificou-se que essas características se comportam de forma diferenciada em Saramandaia a depender do momento e do espaço do Bairro em que ocorrem, predominando relações de conflitos nas fronteiras e limites entre o Bairro e a Cidade. As análises evidenciaram a necessidade do fortalecimento de uma visão plural e democrática do Direito que contribua para o fortalecimento dos sujeitos coletivos e sua capacidade infindável de inventar novos direitos e caminhar em direção ao Direito à Cidade”.
A mim não se revelou tão só uma expressão atualizada de um tema com o qual venho me envolvendo desde os começos dos anos 1980 (“Fundamentação Teórica do Direito de Moradia”, in Direito & Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Ano I, n. 2, 1982), mas a constatação, primeiro incluída na pesquisa pioneira (Joaquim Falcão, Invasões Urbanas: Conflitos de Direitos de Propriedade), organizada a partir da Fundação Joaquim Nabuco, quando então já se identificavam as estratégias sociais de acesso à terra urbana traduzidas em demandas às institucionalidades e ao direito positivo legislado e exegeticamente adjudicado, na forma do discurso de legitimidade de um direito justo contra o formalismo de enquadramento dessa matéria no direito civil, no direito processual, no direito administrativo, no direito constitucional e até no direito internacional dos direitos humanos que, ao impulso dos novos movimentos sociais e de direitos achados na rua, insurgentes, abrindo ensejo à constituição de novos campos – o direito urbanístico, de novas formas de reconhecimento cogente em declarações (Habitat) e de um constitucionalismo achado na rua (Silva Junior, Gladstone Leonel da e Sousa Junior, José Geraldo de. O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.4, 2017, p. 2882-2902).
Os anos seguintes foram pródigos na construção de um campo demarcado pela construção do chamado direito à cidade, num percurso de formulação de muitos instrumentos técnicos, jurídicos, políticos, institucionais demarcado pela organização do Instituto Pólis em São Paulo e sua importante revista de estudos em que cuja organização muitas referências contribuíram para o adensamento desse campo – Ana Amélia Silva, Raquel Rolnik, Nelson Saule Jr, Emília Maricato – servindo à metodologias de pesquisa, de formulação de políticas públicas e de modos de governar, de organizar assessorias jurídicas populares (lembrando aqui o exercício genético e político dos Alfonsins – Jacques e Betânia -, culminando com o desenho que a Constituição de 1988 recepcionou, acolhendo as formulações dos movimentos sociais difundidos pelo país.
Encontro na abordagem que desenvolvi em Prefácio para o Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador (Elizabeth Santos, coordenação geral et al., Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012), a condição ontológica a que já me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito (Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Editora Nair, ano I, n. 2, Brasília, 1982; Um Direito Achado na Rua: o direito de morar, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 1, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alayde Sant’Anna, O Direito à Moradia, Revista Humanidades, Ano IV, n. 15, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alexandre Bernardino Costa, orgs., Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Brasília, 1998).
Elas dão base, seja enquanto processo para impulsionar a exigência de função social que a propriedade deve realizar, seja para ressignificar a semântica das lutas sociais por acesso à própria propriedade, descriminalizando o esbulho por meio da recusa a se deixar tipificar invasor e politizando o acesso com a retórica da ocupação, desde que atendendo à promessa constitucional de realizar reforma agrária e reforma urbana, tal como referiu referiu Ana Amélia Silva, aludindo à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades” (Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 1996), consoante ao que indicou, nesse passo, Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995).
Trata-se de não se perder o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, Coimbra, 1998), autor de referência de Nelson Pellegrino, não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender as regras jurídicas e de alargar “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
É desse modo que Adriana Lima em sua tese premiada pela Capes, fala de um “direito achado nos becos de Saramandaia em Salvador”, para inferir a luta pela cidade, a partir de incursões singelas que revelam o protagonismo cotidiano para inserir no social novas juridicidades. Aqui é “o direito de laje”, agora positivado e enfim adjudicado a partir de novas decisões judiciais abertas “à exigência do justo, inspiradas em teorias de sociedade e de justiça”. No caso, registre-se recente decisão do judiciário pernambucano, na qual o magistrado constata que casa construída na superfície superior à do pai da autora da ação, carrega a pretensão de aquisição da propriedade e se coaduna ao direito de laje, previsto no art. 1.510-A do Código Civil, incluído pela Lei n. 13.465/2017, que dispõe: “O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.
Para o magistrado Rafael de Menezes, autor da sentença pioneira nesse reconhecimento, é “óbvio que o ideal na sociedade seria todos terem suas casas separadas e registradas, diante da importância da habitação para a dignidade do cidadão. Mas em face do déficit habitacional que existe no país, o legislador acertou em adaptar o direito a uma realidade social. A sociedade cria o fato pela necessidade, e cabe ao direito regulamentar em seguida. O direito é testemunha das transformações sociais, ele regula o que já existe. A sociedade precisa ter o protagonismo sobre o Estado, não o inverso”.
Também participa da organização do livro Introdução Crítica ao Direito Urbanístico, Sabrina Durigon Marques, cuja tese Direito e a Colonialidade da propriedade: uma Análise Interseccional da legislação de Acesso à Terra Urbana no Brasil. Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2025, se investe também de uma perspectiva contracolonial.
A tese – https://estadodedireito.com.br/direito-e-a-colonialidade-da-propriedade-uma-analise-interseccional-da-legislacao-de-acesso-a-terra-urbana-no-brasil/ – confirma a qualificada capacidade de análise que a Autora vem demonstrando, não apenas no campo de sua expertise como interprete dos fundamentos que balizam o direito à cidade mas no ativismo que a inclui entre os que dão organicidade a esse campo (âmbito de sua atuação no IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico).
Não admira, pois, que o Grupo de Análise de Conjuntura Social que serve à CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), focalizando na moradia o tema de sua análise oferecida aos bispos, tenha buscado, também em Sabrina, fonte de fundamentação para localizar em seu texto, o entendimento hoje, sobre o que poderia ser tomado como um balanço da política de moradia no Brasil nos últimos 20 anos, emprestando dela uma síntese levada para a redação do texto.
Tomo do texto de Nelson Pellegrino o roteiro que ele traça para desdobrar o seu estudo:
Partindo desse contexto, o presente trabalho pretende trazer questionamentos sobre o Projeto de Recuperação e Revitalização do Centro Antigo de Salvador, apresentado em 2012 à população soteropolitana, à luz da função social da propriedade, do direito à cidade e do direito social à moradia.
Isso porque a luta pelo direito à cidade – enquanto conceito social e como um direito reconhecido pela ordem constitucional brasileira – está longe de ser um movimento exclusivamente jurídico. Perpassa por um processo de intensas lutas políticas urbanas e rurais das camadas populares por dignidade de existir e ocupar o espaço urbano de forma igualitária às camadas da população historicamente privilegiadas.
Este trabalho também aborda, de forma mais específica, como a consolidação das lutas por moradia e pelo direito à cidade foram acontecendo no Brasil e, mais especificamente, na Bahia e em sua capital, Salvador, notadamente com a promulgação do Estatuto da Cidade e dos seus instrumentos de política urbana, que poderiam permitir a concretização da participação popular nas tomadas de decisão sobre o solo e espaço público.
Considerando a relevância do projeto e os apontamentos sobre possíveis benefícios da gestão patrimonial dos imóveis na região do CAS, expostos no Plano de Reabilitação Participava, notam-se que houve parcial desarticulação entre programas habitacionais que já tinham se mostrado exitosos, como o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), o Programa Minha Casa Minha Vida. aliado à falta de clareza sobre seus benefícios, além da prioridade dada na comercialização de imóveis dentro da faixa de renda acima de cinco salários mínimos.
E é dentro deste olhar que o presente trabalho pretende dar enfoque, questionando se a proposta de implantação do FII CAS, no lugar de privilegiar a função social da propriedade privada, o interesse público e a eficiência para garantir o bem-estar dos cidadãos, acaba por contribuir com o processo de exclusão e segregação do espaço urbano historicamente ocupado cidadãos de baixa renda, abordado por parte da doutrina como, além de aprofundar problemas como racismo ambiental
Encontro no trabalho de Nelson Pellegrino os fundamentos atualizados de um campo ainda em construção, conforme ele próprio formula, fixando os contornos conceituais do ele caracteriza como direito à cidade, em cujo âmbito ele localiza a sua pesquisa.
Com efeito, em Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico] / organizadoras e organizadores, José Geraldo de Sousa Junior… [et al.]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p. – (Série O Direito Achado na Rua; vol. 9). Formato: PDF. ISBN 978-85-230-0930-4. 1. Direito à cidade. 2. Movimentos sociais. 3. Direito urbanístico. I. Sousa Junior, José Geraldo de (org.). II. Série. CDU 34:711(81), é desse modo que focalizamos o campo.
A obra referida, com mais de 100 autores, autoras e co-autores e co-autoras, tem uma versão digital no repositório da Editora UnB para acesso livre: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17.
A sistematicidade da coletânea, eu anoto em síntese que publiquei nesta Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/), pelos textos inéditos que a constituem está uma estrutura de cinco partes, que procuram agrupar algumas reflexões. Isso não significa que a divisão proposta pelo grupo organizador seja estanque ou que os artigos tenham um alinhamento absoluto. Pelo contrário, os textos da obra inteira dialogam entre si na perspectiva de construção de um Direito Urbanístico crítico. Ainda que subsistam algumas discordâncias ou contradições, elas não são antagônicas, posto que há um compromisso ético comum que norteia toda obra.
Na Parte I, busca-se apresentar a relação entre a teoria de O Direito Achado na Rua e o conjunto de princípios, normas e fundamentos históricos e sociais do Direito Urbanístico no Brasil. Os textos aqui reunidos buscam fazer uma interface entre os fundamentos teóricos que lastreiam o Direito Urbanístico e O Direito Achado na Rua. Neles também são evidenciadas as disputas entre as diversas escalas de juridicidades, pondo em cheque, à luz da hipótese sociológica do pluralismo jurídico, o Estado como um único produtor da norma jurídica.
Na Parte II, estão concentrados textos que aportam reflexão e análise sobre o direito à cidade em seu aspecto teórico e prático, como núcleo fundante e paradigma do Direito Urbanístico. Considerando a perspectiva crítica da obra, é importante afirmar que o compromisso do Direito Urbanístico deve ser com a realização dos direitos humanos, com a radicalização da democracia e com o enfrentamento das desigualdades. O direito à cidade, como ethos jus-político, viabiliza essa concepção alinhada com O Direito Achado na Rua. Importante anotar que há referências ao direito à cidade em textos presentes em todas as partes do livro, o que reforça seu papel de paradigma fundamental. Os textos reunidos nesta Parte II são aqueles que, de forma mais aprofundada, propõem uma reflexão sobre esse direito, seja a partir da matriz lefebvriana, seja a partir da crítica de outros autores e também da práxis dos movimentos sociais.
Na Parte III, os textos reunidos abordam formas concretas de lutas e experiências sociopolíticas que buscam efetivar o direito à cidade a partir das mais diversas óticas. Encontram-se aqui importantes reflexões sobre práticas, mas também sobre grupos sociais oprimidos e vulnerabilizados no processo de urbanização. A abordagem da atuação do Poder Judiciário e das assessorias jurídicas e assistência técnica também é foco dos trabalhos apresentados. Em grande medida, os textos apresentam uma agenda de pesquisa e de estratégias de ação para o desenvolvimento teórico e prático do Direito Urbanístico. Apontam caminhos para descentralizar o Direito, pondo em cheque a sua visão colonial, patrimonialista, patriarcal e racista que opera como dispositivo silenciador de relações sociais emancipatórias e autônomas em busca de novas formas de produção do urbano.
Na Parte IV, estão reunidos textos que avaliam criticamente a experiência da construção e efetivação do marco jurídico-urbanístico no Brasil, a partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade. Os artigos trazem um balanço da aplicação de instrumentos para efetivação da política urbana à luz das perspectivas abertas, dos retrocessos recentes e dos desafios futuros. É conferido um destaque especial para a participação social para a formulação das políticas públicas urbanas (notadamente planos diretores e orçamentos participativos), experiências de regularização fundiária e tensionamentos em torno da efetivação do direito à moradia.
A Parte V reúne alguns documentos históricos de difícil acesso. Assim, além dos documentos produzidos na escala nacional e internacional que refletem o processo social e político de construção do Direito Urbanístico no Brasil e no mundo, selecionamos, a título exemplificativo, documentos produzidos na escala local, a fim de demonstrar a interconexão e influência recíproca entre diferentes escalas de produção de direitos. Esse material revela concepções e reivindicações de movimentos sociais articulados em torno da reforma urbana e do direito à cidade, em diferentes contextos, confirmando que o processo de lutas permanece vivo e atualizado.
Em síntese, esse nono volume de O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico vem ampliar a série e é apresentado em um momento político que as liberdades democráticas, núcleo central do direito à cidade, encontram-se fortemente ameaçadas. Esperamos, assim, que as palavras aqui escritas ganhem vida e sirvam como repertórios de legitimação para as práticas insurgentes de resistência e de reinvenção das formas de sociabilidade democratizantes e libertárias em que nossas trajetórias pessoais e coletivas se inserem.
Considero que é também esse o cuidado de Nelson Pellegrino quando prossegue nos desdobramentos de seu estudo depois de delineado o escopo da pesquisa. Diz ele:
Para tanto, a primeira etapa da pesquisa consistirá em definir e correlacionar os princípios administrativos constitucionais da eficiência e da função social da propriedade, conjugados com os demais valores que edificam a supremacia do interesse público e que foram elencados de forma expressa na Constituição Federal.
Em seguida, serão tecidas considerações teóricas e legislativas sobre as formas que o Estado da Bahia, enquanto representante da Administração Pública e detentor do poder coercitivo para preservar o interesse público, expediu quatro Decretos de Desapropriação sob o fundamento da utilidade pública, buscando destrinchar de forma mais detalhada como essas ram elaboradas e sob quais fundamentos as regiões neles elencadas foram privilegiadas em detrimento de outras localidades do CAS.
Nesse contexto e em paralelo às pesquisas bibliográficas e legislativas, o acesso aos decretos exige, para o aprofundamento do trabalho, acesso à íntegra do processo administrativo da CONDER de recuperação e revitalização do CAS (o que ainda não foi possível). Com isso, essa etapa demandará, além da pesquisa teórica, também a empírica, permitindo a compreensão de todo o procedimento e elaboração do projeto desenvolvido pelo Estado de forma quantitativa e qualitativa.
Após a obtenção do projeto, caberá, num terceiro momento, a abordagem sobre o Fundo de Investimentos Imobiliários, explicitando de que forma ele foi criado e como ocorreu a sua recepção do ordenamento jurídico pátrio, para fins de otimização da atividade econômica estatal. Em seguida, serão expostos os motivos pelos quais esse modelo de gestão patrimonial seria, em tese, mais eficaz e atenderia melhor aos interesses da Administração Pública na Bahia.
Apresentado esse panorama, o quarto momento da pesquisa se debruçará sobre um rol de questionamentos envolvendo os possíveis impactos negativos no processo de implantação do projeto de recuperação e revitalização do CAS, especialmente do Fundo Imobiliário. Para tanto, será necessário abordar institutos ainda pouco trabalhados no direito brasileiro, a exemplo de gentrificação e racismo ambiental, que se apresentam como variáveis dependentes e que podem ser conjugados com pesquisa qualitativa no direito comparado.
Ainda, o trabalho pretende fazer uma abordagem complementar através de estudos de outras áreas do conhecimento como arquitetura e história sobre o CAS, avaliando a possibilidade de existirem convergências entre as conclusões expostas nas pesquisas, com visitação à região do Centro Antigo de Salvador para avaliar características gerais dos seus imóveis (habitacionais e comerciais), permitindo uma melhor compreensão social e geográfica do local.
Para avaliar, compreender e esclarecer os principais problemas e questionamentos sobre a implantação desse Fundo, a pesquisa que subjaz o presente trabalho fará uma abordagem metodológica prospectiva inicial sobre os procedimentos para a elaboração e delimitação dessa pesquisa, demonstrando as justificativas da escolha do tema, a hipótese central a ser explorada e as etapas que irão compor os estudos envolvendo as inconsistências encontradas no plano de revitalização e recuperação do Centro Antigo de Salvador, notadamente do FII CAS.
Ao final, apresentam-se considerações finais sobre as sugestões de possíveis melhorias envolvendo a elaboração e execução do projeto, destacando a relevância de que haja uma maior aproximação entre o FII e políticas públicas de cunho majoritariamente social e que busque também justiça ambiental, aptas a tornarem efetiva a melhoria de vida da população e a dignidade humana de cada cidadão.
O estudo desenvolvido por Nelson Pellegrino, não fosse o resultado de uma motivação acadêmica, nele se desvenda mais ainda a instigação ativista do sujeito político que o guindou ao protagonismo parlamentar, nos planos estadual e federal, com participação em comissões de alta pertinência ao social, notadamente as de Constituição e Justiça e de Cidadania e a de Direitos Humanos e Minorias e, atualmente, na Corte de Contas do Estado da Bahia.
Basta ver as conclusões a que chega, numa confecção certamente alinhavada conforme o molde inferido de sua referência político-epistemológica posta em em relevo na epígrafe que abre o seu texto, extraída de Milton Santos: “O mundo é formado não apenas pelo que existe, mas pelo que pode efetivamente existir”. “Esse é o grande mistério das cidades: Elas crescem e se modificam, guardando porém sua alma profunda. Apesar das transformações do seu conteúdo demográfico, econômico e da diversidade de suas pedras”:
O Direito à Cidade surge como um direito fundamental diretamente relacionado com valores que estão intimamente relacionados às garantias constitucionais e humanas, a exemplo da dignidade, igualdade, liberdade, felicidade, prosperidade, vivência em comunidade nos centros urbanos, direito à moradia, trabalho, lazer e mobilidade.
A realidade altamente compartimentada experimentada pela sociedade brasileira em virtude do grande abismo entre pobres e ricos derivado da concentração de riquezas que existe em na sociedade traz consigo a impossibilidade de convivência entre determinadas classes sociais.
A sofisticação é incompatível com os populares, e nesse sentido o local que antes era visto como perigoso e sombrio para os economicamente mais abastados passa a ser visto como local de distanciamento e não pertencimento para os que ali viviam. Esta incompatibilidade social carrega consigo a segregação social e desigualdade econômica dentro do contexto urbano, e os processos de revitalização podem corroborar com essas desigualdades sociais e econômicas.
Políticas que são coercitivamente paternalistas e, em certa medida, violentas e segregadoras, lembram à população que parte dela ainda é marginalizada pela sociedade e pelo próprio Estado, cooptado por interesses privados e submetido à uma lógica cada vez mais securitizada do do mercado imobiliário.
A restauração de bairros antigos e sua ressignificação enquanto patrimônio cultural não deveria ser um processo socialmente excludente: é nesses mesmos espaços públicos que as diferentes coletividades, grupos estratos socioeconômicos e culturais poderiam – e deveriam – contribuir com a tão festejada diversidade cultural soteropolitana.
Contudo, onde as localidades potencialmente reposicionadas se transformam em locais de moradia para novos grupos sociais, mais privilegiados, as facilidades e comodidades propostas pelos projetos de recuperação e revitalização não devem ser ofertadas apenas às castas mais abastadas, ainda que de forma velada – quando o custo do viver e do desfrutar impedem que grande parcela dos grupos viventes em determinadas regiões possa custeá-lo. O problema urbano, passados mais de quatrocentos e cinquenta anos de Salvador, persiste razoavelmente o mesmo: diminuir a exclusão socioespacial da maioria da população para ter uma vida urbana minimamente digna.
Atualmente, dentro da lógica adaptada ao capital neoliberal, cuja iniciativa privada pauta mais a produção da cidade do que do Estado, a mão invisível que civiliza o espaço urbano vem atuado em novos formados, mas, ao que parece, preserva uma mesma lógica excludente. Dentro desse planejamento urbano modernizado, há uma tendência de adesão das cidades a um planejamento estratégico de produção urbana, que atua como um instrumento do neoliberalismo, em que a cidade deve ser vista como um ente privado, que compete eproduz junto ao mercado internacional de cidades globalizadas
Tendo participado da banca de qualificação da dissertação, encontrei nessas referências para inferir diretrizes de análise que pudessem se prestar, como de fato se prestaram, para assentar os termos da Análise de Conjuntura Social oferecida sistematicamente à CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, por Grupo do qual faço parte e que neste fevereiro cuidou do tema justiça e moradia – https://repam.org.br/wp-content/uploads/2025/02/FEV.-2025.-ANALISE-DE-CONJUNTURA-SOCIAL-JUSTICA-E-MORADIA-CONSEP-FEV-2025.pdf.
Cuida-se ainda de dar a essa realidade gritante, do quadro habitacional brasileiro, a mesma atenção que lhe atribui Pellegrino, para fazê-la um fator determinante de escolha de tema assim como fez a CNBB, mas, na perspectiva de muitos que atuam nos serviços pastorais de apoio à luta pela moradia e pelo direito de morar, é “uma grande oportunidade para refletirmos em todo Brasil sobre este tema tão essencial para vida do povo brasileiro e também fortalecer ainda mais a nossa luta pelo direito à moradia digna e pela reforma urbana”. Além de conteúdo da Análise de Fevereiro apresentada aos bispos na reunião de fevereiro do Conselho Episcopal Permanente da CNBB, o tema já foi escolhido e está em preparação visando a Campanha da Fraternidade 2026 – Direito à Moradia. 16 de maio de 2024. https://unmp.org.br/campanha-da-fraternidade-2026-tera-como-tema-direito-a-moradia/. Acesso em 15/03/2025.
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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |