
Marcello Casal Jr Agência Brasil
Autoras Livia Prestes e Paula Nocchi Martins*
O Perigo de uma Única História
Quando Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana, escreveu o livro “O Perigo de uma Única História”, jogou luz sobre o problema do apagamento histórico. Esse fenômeno ocorre quando uma parte da história deixa de ser mencionada e, assim, parece que simplesmente não existe. Mas ela existe, só está deixando de ser contada.
O apagamento de trajetórias foi um mecanismo eficaz, historicamente, para a manutenção do poder. Enquanto o mundo avançava, novas tecnologias surgiam, descobertas científicas eram feitas, parecia que tudo era obra do homem branco – este que seria o protagonista da história.
No entanto, como se sabe, é inconteste que a desigualdade socioeconômica existente entre homens e mulheres, e entre pessoas brancas e negras também é fruto deste apagamento histórico.
Isso considerando, algumas iniciativas fundamentais vêm sendo tomadas para diminuir essas discrepâncias.
No âmbito do sistema judiciário brasileiro, uma iniciativa marcante, que esperamos traga frutos em prol da diminuição da desigualdade, é o protocolo de julgamento de gênero do CNJ. Outra, mais recente é o protocolo de julgamento com viés de raça, do mesmo órgão.
No entanto, em sede do mesmo sistema judiciário, uma outra questão obsta que as histórias de mulheres e de pessoas negras, e mais propriamente a história das violências a que são subjugadas, seja de fato contada e, mais importante, possa ser em sua integralidade ouvida. É o caso da impossibilidade de acessar processos e decisões a respeito de assédio moral de gênero, assédio sexual, racismo e injúria racial no ambiente de trabalho. Sem esse acesso, não se pode entender quais são as razões judicantes e tampouco se pode produzir estatísticas sobre as questões judicializadas.
Por exemplo, no âmbito do TRT 4, boa parte das ações trabalhistas que endereçam questões de assédio moral de gênero, assédio sexual, racismo e injúria racial no ambiente de trabalho estão em segredo de justiça. Por outro lado, as decisões que são acessíveis publicamente registram o nome e outros dados pessoais das vítimas, os relacionando com situações de assédio sexual, constrangimentos, humilhações e outras violências por que passaram.
Ou seja, para as vítimas de assédio ou discriminação que buscam o sistema judiciário há duas alternativas de tratamento: por um lado, é decretado segredo de justiça e sua história passa a ser inacessível e não pode ser contada publicamente; por outro, se mantém a ação publicizada na sua integralidade, o que acaba por expor a vítima e a violência pela qual passou.
Ainda, essa invisibilidade nos processos discriminação racial contribui com o pacto da branquitude, que nas palavras da escritora Cida Bento
“possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o “diferente” ameaçasse o normal, “o universal”. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele”.
Quando um caso de discriminação racial é judicializado, punir a pessoa que comete racismo parece mais grave do que o ato cometido. E essa conclusão não é nossa, mas do pesquisador Renan dos Santos, autor da melhor tese em ciências sociais em 2024, prêmio concedido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
De acordo com o autor, isso ocorre, dentre outras razões, porque, no Poder Judiciário, composto em sua maioria por pessoas brancas, é ampla a circulação das representações da branquitude e há uma hierarquização moral da branquitude internalizada pelos juristas.
Logo, deixar em segredo de justiça ou não falar em uma forma justa de anonimização contribui para que a história novamente não seja contada ou que seja contada apenas com a exposição da vítima. Ao tentar não prejudicar pessoas brancas em razão dessa hierarquia valorativa, há uma escolha em prejudicar pessoas negras
Necessidade de publicidade dos processos e anonimização dos dados pessoais
Considerando os perigos de uma história única, é necessário garantir que os atos processuais que versam sobre assuntos de relevância social sejam públicos, mas que as pessoas envolvidas tenham sua intimidade e privacidade preservada; isto é, é necessário constituir um equilíbrio entre os direitos previstos pelo art. 189, caput, do CPC e o art. 5º, X, da Constituição Federal.
No entanto, na maior parte das vezes é a empresa que requer o sigilo, usando como fundamento a Lei Gera de Proteção de Dados (LGPD), argumentando que precisa juntar documentos do agressor.
De plano, deve se ter em consideração que a decretação de segredo de justiça sob fundamento da LGPD, por si, não encontra guarida; a LGPD não inviabiliza o uso de dados pessoais em processos judiciais. Na verdade, tal lei prevê, no seu art. 7º, que haja a expressa autorização de uso de dados pessoais para fins de ação judicial[1].
Ou seja, a referida legislação traz normas que autorizam a utilização de informações pessoais nas hipóteses arroladas nos arts. 7º e 11º (quanto a dados pessoais sensíveis). As hipóteses que se aplicam no caso de uma empresa necessitar juntar documentos de um funcionário que não litiga no processo, se enquadra no inciso VI e IX.
Não poderia ser diferente, uma vez que a LGPD não é uma lei cujo intuito seja invisibilizar violadores. Nesse aspecto, é importante que se diga, foi uma conquista da sociedade civil organizada, e foi concebida para regular questões contemporâneas como uso massivo de dados por plataformas digitais e e-commerces.
Aliás, é estranho que os processos que tratam de matéria de gênero e injúria racial ou racismo sejam colocados em segredo de justiça, enquanto noutras ações, que tratam de matérias mais brandas, seja posto sigilo apenas em documentos específicos. É importante registrar que dificultar o acesso à informação justamente em relação a matérias de assédio de gênero, assédio sexual e injúria racial ou racismo é também contribuir para perpetuação dessas violências e manutenção de desigualdades estruturais.
Nesse sentido, os fundamentos principalmente usados para aplicar o segredo de justiça a processos que investigam questões sociais são passíveis de serem contornados a partir da aplicação de um protocolo de anonimização sobre os dados pessoais sensíveis em ações judiciais trabalhistas, da mesma forma como é feito nos processos criminais e de família. Desse modo, seria possível viabilizar o acesso às violações narradas, e também à ratio decidendi, sem, contudo, expor a vítima – e, antes da condenação, o indicado agressor.
O segredo de justiça aplicado a estes processos, atualmente tem significado um grande apagamento da história das mulheres e pessoas negras. Saber das violências é o primeiro passo para combatê-las. Possibilitar que a sociedade saiba das histórias – e saiba que são múltiplas – também é uma das funções do Judiciário.
[1] Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:
I – mediante o fornecimento de consentimento pelo titular;
II – para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;
[…]
VI – para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral, esse último nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem) ;
[…]
IX – quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais; ou
- Livia Prestes
Graduada em Direito pela Ritter dos Reis (2012), com especialização em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho (2015) e com curso oficial de Preparação à Magistratura do Trabalho (2015), ambos pela Fundação Escola da Magistratura do Trabalho/ RS – Femargs.
Advoga na área de Direito Trabalhista desde 2012. Presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Acesso à Justiça nos biênios 2020/2022 e 2023/2024. Membro do Conselho Fiscal na Associação Gaúcha da Advocacia Trabalhista – AGETRA no biênio 2025/202.Paula Nocchi Martins
Graduada em Direito pela UFRGS (2016), com especialização em Economia e Sindicalismo pela Escola de Ciências do Trabalho do Dieese. Mestranda em Economia do Desenvolvimento pela UFRGS.
Sócia do escritório FCN & Lacerda, atuante em demandas do mundo do trabalho com perspectiva de gênero.