A Transmutação do Punitivismo: uma análise da política judiciária e penitenciária do Estado do Acre

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Kaio Marcellus de Oliveira Pereira. A Transmutação do Punitivismo: uma análise da política judiciária e penitenciária do Estado do Acre. Tese apresentada à Banca examinadora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília: FD/PPGD, 2024, 174 fls.

 

A Tese foi defendida em consonância com os fundamentos da Linha de Pesquisa “Sociedade, Conflito e Movimentos Sociais”, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Ela se desenvolveu sob a orientação da Professora Cristina Maria Zackseski, uma das lideranças da linha, a partir do Grupo de Pesquisa de Política Criminal.

Compus a banca examinadora, presidida pela professora Orientadora e integrada pelos professores Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth (Faculdade de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ, examinador externo; Bruno Amaral Machado, Faculdade de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), também examinador externo; e Evandro Piza Duarte, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).

A tese, de alguma maneira, dá continuidade aos estudos iniciados pelo Autor, no mestrado, realizado em programa interinstitucional entre a UnB/Faculdade de Direito e a Universidade Federal do Acre/Curso de Direito – A cultura punitiva do Poder Judiciário: uma análise jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Acre. 2017. 106 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Elementos dessa etapa são trazidos para o estudo mais avançado, agora, sob a perspectiva de um salto doutoral que pode se conter na sua proposta central – “conjunto de categorias para interpretar se uma política é ou não punitivista. Num sistema em que os discursos e práticas foram estruturados pelo racismo e colonialismo, apenas uma hermenêutica descolonizadora pode permitir novas leituras sobre as dimensões políticas e sociais do poder punitivo e novos horizontes para a reformulação de políticas judiciárias” – no contexto de enunciados que o Autor alinha no que denomina sociologia da punição, com referências indicadas no resumo do trabalho:

A presente tese analisa políticas judiciárias e penitenciárias no estado do Acre do período de janeiro de 2014 a maio de 2024 e sua relação com a população carcerária. A pesquisa buscou entender como o Poder Judiciário no Acre, por meio da criminalização secundária, gerencia o poder de punir e quais as estratégias de punição e controle, e de que forma as políticas judiciárias têm interferido na população carcerária. Nos últimos dez anos, o monitoramento eletrônico cresceu de forma exponencial no Acre, mas essa política estimulou o desencarceramento e a redução do Estado Penal na vida social? Ou aumentou de forma seletiva seu alcance para reforçar um quadro de violência institucional? Para responder essas questões, foi feita pesquisa de fluxo de 1.114 processos no Superior Tribunal de Justiça, e pesquisa documental, com análise qualitativa de 230 documentos e relatórios do Instituto de Administração Penitenciária do Acre e da Unidade de Monitoramento Eletrônico Penitenciário. O resultado revelou tendências de políticas judiciárias e penitenciárias locais que se diferenciam das estratégias de controle e punição do cenário nacional. Mas essas tendências de política são punitivistas? A falta de um consenso conceitual para definir o que é o punitivismo na literatura criminológica dificulta o trabalho de interpretação e atribuição de significados para as políticas judiciárias e penitenciárias contemporâneas. Por isso, propõe-se um conjunto de categorias para interpretar se uma política é ou não punitivista. Num sistema em que os discursos e práticas foram estruturados pelo racismo e colonialismo, apenas uma hermenêutica descolonizadora pode permitir novas leituras sobre as dimensões políticas e sociais do poder punitivo e novos horizontes para a reformulação de políticas judiciárias.

De saída, o Autor esclarece, até para demarcar a clivagem adotada no trabalho desde os estudos conduzidos a parir da pesquisa da dissertação, que “a hipótese inicial de pesquisa era que a superlotação carcerária decorria de uma cultura punitiva do TJAC, que era mantida e reforçada pelo STJ no julgamento de recursos especiais e habeas corpus, mantendo um quadro de violação de direitos num “estado de coisas inconstitucional.” Em razão disso, realizei uma pesquisa de fluxo de 1.114 processos no STJ. O resultado revelou tendências de políticas judiciárias interessantes, que podem sugerir novas pesquisas no campo da sociologia da punição”.

E que, diante disso, tendo sido feito levantamento de dados no Instituto de Administração Penitenciária do Acre (IAPEN),  “a pesquisa documental acabou revelando uma mudança radical na política judiciária, o que fez com que o objeto de pesquisa fosse redirecionado”, porque “a análise dos dados do sistema penitenciário no transcurso de 07 anos, mostrou que as decisões do Poder Judiciário não se assemelham à cultura punitiva identificada na dissertação de mestrado, pois o crescimento da taxa de aprisionamento não foi expressivo”.

Segundo o Autor, embora alguns dados indiquem que as preferências do Poder Judiciário alteraram o quadro do sistema penitenciário, como por exemplo o aumento de prisões cautelares, essa tendência de política judiciária não explica, de maneira isolada, a manutenção do quadro de superlotação carcerária. Paralelo ao aumento do uso das prisões cautelares, houve um aumentou no uso de monitoramento eletrônico. Levando a uma questão de pesquisa que balizou o manejo dos achados nela encontrados: “Por que ainda vivenciamos um quadro de superlotação carcerária?”.

De posse dos dados que arrola no protocolo de sua pesquisa, o Autor declina a reorientação de seu estudo. Ele esclarece:

Diante dessas informações, para definir os caminhos que serão trilhados na presente pesquisa, devemos levar em consideração a seguinte problemática: Como o Poder Judiciário no Acre, por meio da criminalização secundária, gerencia o poder de punir? Quais as estratégias de punição e controle, e de que forma as políticas judiciárias têm interferido no aumento da população penitenciária?

A hipótese de pesquisa é que o Poder Judiciário do Acre alterou suas estratégias punitivas para aumentar o controle social formal e gerenciar grupos de risco, em razão do déficit de vagas do sistema penitenciário. Para tanto, a pesquisa buscou responder os seguintes questionamentos, considerando o período de janeiro de 2014 a maio de 2024: 

1)            Como o Poder Judiciário no Acre tem gerenciado o poder punitivo? Quais as estratégias de punição e controle?

2)            Como o Poder Judiciário tem utilizado o monitoramento eletrônico, as audiências de custódia e a prisão cautelar no contexto da superlotação carcerária? 

3)            Como o Poder Judiciário tem utilizado o monitoramento eletrônico nos diferentes regimes de cumprimento de pena? E de que forma isso pode alterar os níveis de encarceramento?

4)            O aumento do monitoramento eletrônico se destina a controlar qual grupo de risco? Quem são os escolhidos para o uso da tornozeleira eletrônica?

5)            A monitoração eletrônica estimula o desencarceramento e reduz a intervenção do Estado Penal na vida social? Ou constitui mais uma estratégia punitiva de controle, para aumentar de forma seletiva o alcance do Estado Penal na esfera particular, reforçando um quadro de violência institucional?

6)            A monitoração eletrônica representa um avanço para a redução do fluxo penitenciário, contribuindo para o caráter ressocializador da pena? Ou apenas cria um mecanismo de vigilância e controle como alternativa para o quadro de superlotação carcerária no Acre?

No tocante a sua pesquisa, Caio utiliza como generalização, conforme ele próprio indica, alguns conceitos teóricos que possuem forte aderência na literatura da sociologia da punição, tais como, punitividade, cultura do controle, hiperpenalidade, governamentalidade. As hipóteses de pesquisa sugerem que o Poder Judiciário adota uma cultura do controle para gerenciamento de grupos sociais, considerando os resultados da pesquisa feita em dissertação de mestrado. Porém, no contexto de alta punitividade, as estratégias de controle podem ter sido deliberadamente escolhidas para aumentar o alcance do poder de punir, substituindo o cárcere pela tornozeleira eletrônica.

Quanto à interpretação dos dados, ele escolheu entre os tipos de descrição ou de explicação dos resultados obtidos adotando “o tipo de descrição como forma de interpretação de dados, pois o campo da sociologia da punição carece de pesquisas direcionadas para análises de precedentes como causas próximas para explicar o encarceramento em massa. As explicações tradicionais para o fenômeno estudado foram retratadas nos estudos sociológicos que analisaram fatores externos às práticas do Estado Penal, tais como, sociais, econômicos e políticos”.

Uma passagem ousada, principalmente quando a sua metodologia assume a disposição descritiva, penso, com a mesma pretensão que terá animado o dialético Engels, sem concessão ao positivismo sociológico de seu tempo, confiante de “a descrição verdadeira do objeto seja, simultaneamente, a sua explicação” (A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra).

Em todo caso, podemos conferir, no arranjo proposto pelo Autor. No primeiro capítulo, o Autor, a montante de suas referências quer fixar o conceito de punitividade e suas implicações para o campo da pesquisa criminológica. Faz uma leitura historicista de como o gerenciamento do poder de punir alterou as tecnologias de punição e controle mediante fortes influências dos sistemas políticos e econômicos que imperavam em seus respectivos contextos. Do castigo e suplício do Antigo Regime feudal ao uso da prisão na era moderna para atender às expectativas do capitalismo. Até alcançar a transição do Estado Social para o Estado Penal apresentada como responsável pela formação de uma sociedade excludente de “parasitas sociais” que, sem alternativas de subsistência, migram para o varejo das drogas. Esse mercado emergente é responsável pelo crescimento do Estado Penal e pela profusão de um projeto genocida.

No segundo capítulo, foca na Sociedade Disciplinar, que utiliza a prisão para disciplinar e curar o sujeito desviante, cederá lugar para a Sociedade do Controle, que utilizará políticas atuariais para controlar os riscos sociais. Essa cultura do controle terá reflexos no fluxo carcerário das sociedades complexas da pós-modernidade. Mas para entender como a cultura do controle opera no contexto brasileiro, é necessário adotar uma Criminologia do Sul, que se sustente por uma nova racionalidade epistêmica (razão cosmopolita) e que leve em consideração o racismo, o colonialismo, o imperialismo e suas relações com o poder punitivo. Na busca de uma hermenêutica descolonizadora, apresenta o fenômeno da hiperpenalidade na América Latina e como os discursos neoliberais têm buscado reduzir conquistas democráticas para fomentar políticas de recrudescimento penal. Vale-se da atual situação do sistema penitenciário do Acre, e o resultado da pesquisa de fluxo dos 1.114 processos do TJAC, e de que forma o STJ avaliou os recursos que foram interpostos e os efeitos na população carcerária.

No terceiro capítulo, se detêm no modo como o monitoramento eletrônico surgiu e se desenvolveu como estratégia punitiva do direito de punir em nível global, nacional e local, e as razões políticas que levaram sua implementação, especialmente o que os últimos estudos concluíram sob os impactos do monitoramento eletrônico no campo orçamentário, no ambiente carcerário e no aspecto utilitário da ressocialização. Para entender como o Poder Judiciário no Acre tem gerenciado o poder punitivo no período de 2014 a 2024, vamos apresentar o relatório de pesquisa. Assim, poderemos responder: A monitoração eletrônica estimula o desencarceramento e reduz a intervenção do Estado Penal ou constitui mais uma estratégia punitiva de controle, para aumentar de forma seletiva seu alcance na esfera particular? A monitoração eletrônica representa um avanço para a redução do fluxo penitenciário, contribuindo para o caráter ressocializador da pena? Ou apenas cria um mecanismo de vigilância e controle como alternativa para o quadro de superlotação carcerária no Acre?

É quando, o método descritivo se articula com o explicativo, sem perder a consistência dos dados. O Autor, se mostra confiante, ao “atribuir as causas da superlotação carcerária à uma perspectiva aritmética é desconsiderar a própria história do pensamento criminológico, valendo-se de Gabriel Ignacio Anitua. E na sequência em “autores que, por diferentes perspectivas criminológicas, atribuem causas sociais, políticas e econômicas a esse fenômeno tão intrigante para a sociologia da punição, que é o encarceramento em massa. Estudando as economias do norte, em especial os Estados Unidos, alguns autores como Löic Wacquant, Jock Young, David Garland, Jackie Wang e Roger Matthews, são importantes para compreender como fatores sociais, políticos e econômicos contribuem para a superlotação carcerária. Analisando o cenário da hiperpenalidade na América Latina e a punitividade regional, autores como Máximo Sozzo, David Fonseca, Raul Zaffaroni, Katherine Beckett e Angelina Godoy, nos ajudam a entender como a penalogia neoliberal e seus anseios punitivos afetam as economias emergentes e impactam no aumento da lotação carcerária”.

E assim, lograr estabelecer que “a crise do sistema penitenciário brasileiro é multifatorial, não havendo causa única para explicar o crescimento das taxas de aprisionamento e aumento da população carcerária nas últimas décadas, embora os anseios punitivos no corpo social e a manipulação de atores políticos em defesa de um discurso de repressão contribuem para o cenário nacional. Contudo, como explicar o atual contexto de punitividade e de superlotação carcerária no Acre?

Ao chegar às conclusões, o Autor é convincente. Para ele, retiro dessas conclusões:

Para Loïc Wacquant, a punitividade é o encarceramento em massa nos EUA. A expansão das prisões é o substituto do gueto como instituição de contenção e controle. A gestão penal da pobreza, em substituição às políticas assistencialistas, é a principal característica do punitivismo. Seguindo Wacquant, Jonathan Simon vai se referir a punitividade como uma característica da sociedade contemporânea, na qual a crueldade é um direito distribuído pelo governo, de forma desproporcional aos pobres e aos grupos étnicos minoritários. Para Stanley Cohen, a punitividade é a coerção, formalismo, moralismo, ou seja, a inflição de dor a sujeitos jurídicos individuais por terceiros. Nessa lógica, a punitividade carrega conotação de excesso, pois se houver uso de pena menos restritiva não se classifica como punitivismo. 

Para responder essas perguntas, exige-se um exercício de imaginação epistemológica. Não proponho um conceito para definir o punitivismo, mas a utilização de um conjunto de categorias para interpretar se uma política é ou não punitivista. Pretendo demonstrar que a atribuição de significado é local e não universal; é dinâmica e não estática, é parcial e não neutra, é epistêmica e não ontológica.

A seletividade do sistema de justiça criminal, que se dirige contra jovens, negros e pobres, exige uma interpretação parcial da percepção de punitividade. O poder de punir decorre de um exercício de direito, que sofre constantes alterações e influências de discursos autoritaristas cool das elites conservadoras, que buscam reduzir conquistas democráticas da clientela do sistema de justiça criminal. A forma como esse jus puniendi é interpretado por seus destinatários interfere na própria percepção de punitividade. A colonialidade e o racismo do sistema sofrem constante atualizações da razão indolente das sociabilidades metropolitanas, interferindo diretamente na formação e execução de estratégias de punição e controle. 

O modo de interpretar é epistêmico, pois o punitivismo não pode ser percebido como um elemento pré-constituído do poder de punir, ou um dado ontológico de definição acabada e insuscetível de alteração. A percepção sobre o que vem a ser punitivismo é construída, e não constituída. Sua definição é uma construção social (está sendo percebida) e não uma constituição semântica (é percebida). Por uma hermenêutica descolonizadora, dar significado ao punitivismo depende de um modo de raciocinar, articular, categorizar e interpretar os problemas locais sem desperdiçar as experiências e vozes que foram silenciadas por um longo processo de opressão e produção de não-existência de subjetividades.

Além das categorias de interpretação para definição do que é (ser) o punitivismo (local, dinâmica, parcial e epistêmica), devemos levar em consideração alguns elementos de précompreensão de como se desenvolve e se manifesta (estar) o punitivismo.

O punitivismo pode se manifestar pela:

(i)            Expansão, densificação e padronização do Estado Penal (FONSECA, 2021);

(ii)          Falsa percepção de redução da tutela do direito penal, algumas reformas legais buscaram reduzir o encarceramento, como a lei dos crimes de menor potencial ofensivo, mas aumentaram a ingerência do Direito Penal na esfera particular (ZACKSESKI, 2021);

(iii)         Discursos cool de recrudescimento penal em favor das vítimas (ZAFFARONI, 2014);

(iv)          Transnacionalização do controle social punitivo (ZACKSESKI, 2021), mediante a importação de estratégias punitivas do Norte hegemônico; 

(v)           Exclusão de direitos pela redução de conquistas democráticas pelas elites conservadoras (BECKETT e GODOY, 2021), a aprovação da lei nº 14.843/2024 pode impedir a liberdade condicional desassistida; 

(vi)          Seletividade do sistema de justiça criminal contra a população negra (FLAUZINA, 2006), reconhecendo o racismo e o colonialismo como elementos estruturantes dos discursos e práticas dos órgãos de controle social (DUARTE; QUEIROZ; COSTA, 2016).

Mas afinal as tendências de política judiciária e penitenciária no Acre são punitivistas? O que acontece no Acre é diferente do que ocorre no Brasil. O punitivismo no Brasil é diferente do punitivismo no Acre. É a transmutação do punitivismo.

Por não possuir uma definição pré-constituída, o punitivismo não pode ser conceituado, categorizado ou rotulado, mas sim interpretado, pois as percepções sociais sobre as estratégias de controle e punição do Estado Penal variam de acordo com o tempo e lugar. A atribuição de significado às políticas judiciárias e penitenciárias não é uma tarefa exclusiva do pensamento crítico da academia. Atores endógenos e exógenos do sistema de justiça criminal podem utilizar as categorias de uma hermenêutica descolonizadora para dar significado ao punitivismo de forma local, dinâmica, parcial e epistêmica. 

De modo local, enquanto no Brasil, o crescimento do monitoramento eletrônico acompanhou a redução da população carcerária, no Acre a tornozeleira se tornou complementar ao cárcere. A cultura punitiva de encarceramento no Acre (PEREIRA, 2017) se transmutou para estratégias locais de controle e monitoramento. De forma dinâmica, enquanto no período de 2014 a 2016, o cárcere foi a principal estratégia punitiva, do período de 2016 a 2024, o monitoramento eletrônico veio contribuir para o aumento da população penitenciária em razão do déficit carcerário. A importação de políticas norte-americanas de controle do crime, de maneira epistêmica, representa a estratégia colonizadora do poder de punir da parcial atuação do sistema de justiça criminal no Acre, para encarcerar e monitorar a população jovem, negra e pobre. 

É necessário um processo de imaginação epistemológica, para raciocinar, articular, categorizar e interpretar os problemas locais sem desperdiçar as experiências e vozes que foram silenciadas por um longo processo de opressão e produção de não-existência de subjetividades. 

Pensando nisso, o abolicionismo penal pós-metafísico pode consistir numa ferramenta de imaginação epistemológica, e permitir a reformulação de políticas judiciárias, e definir o que é o monitoramento eletrônico, não pelo conceito imperialista do discurso hegemônico das sociabilidades metropolitanas, mas sim pelo que a tornozeleira representa num sistema de justiça de raízes colonial e racial.

Não se trata de um simples método de controle e vigilância. Políticos de esquerda podem classificar como uma alternativa ao encarceramento, como se fosse uma política penal humanizada. Políticos de direita podem classificar como um “benefício”.

Mas, afinal, o que é o monitoramento eletrônico? Para lei, liberdade vigiada; para ciência, um aparato tecnológico; para política neoliberal, uma redução de custo; para políticos populistas, um benefício; para a sociedade, um estigma; para o egresso, uma oportunidade; para o apenado, um livramento; para o reincidente, uma chance perdida; para o abolicionismo penal pós-metafísico, uma crueldade.

Num contexto de alta punitividade, pensar numa sociedade mais justa, igualitária, fraterna e cristã exige um esforço contínuo na negação da crueldade. A tornozeleira eletrônica pode ser utilizada como instrumento provisório para abolir a pena de prisão e acabar com a crueldade da superlotação carcerária, mas isso não afasta sua natureza de crueldade. Seu uso imoderado, seletivo e racial causa dor e sofrimento à população jovem, negra e pobre. Para aqueles que se dizem civilizados, intelectuais e homens de bem, que defendem a trinca de valores neoliberais (Deus, Pátria e Família) negar a crueldade é o único caminho para seguir uma vida cristã.

 Retenho das conclusões a afirmação desafiadora, sobre a exigência político-epistemológica de descortinar: “um processo de imaginação epistemológica, para raciocinar, articular, categorizar e interpretar os problemas locais sem desperdiçar as experiências e vozes que foram silenciadas por um longo processo de opressão e produção de não-existência de subjetividades”.

Não foi outro o intuito de nós, organizadores -https://estadodedireito.com.br/criminologia-dialetica-50-anos-um-dialogo-com-o-legado-de-roberto-lyra-filho/ – da obra comemorativa Criminologia Dialética, 50 Anos: Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho. Autores Co-organizadores: José Geraldo de Sousa Júnior, José Carlos Moreira da Silva Filho e Salo de Carvalho. Autores: Carvalho, Salo de , Sousa Junior, José Geraldo de , Costa, Alexandre Bernardino , Cerqueira Filho, Gisálio , Castilho, Ela Wiecko Volkmer de , Lemos, Eduardo Xavier , Dornelles, João Ricardo W. , Rubio, David Sánchez , Pandolfo, Alexandre Costi , Adeodato, João Maurício , Silva Filho, José Carlos Morei , Ferreira, André da Rocha , Anitua, Gabriel Ignacio , Neder, Gizlene , Coelho, Inocêncio Mártires , Santos, Juarez Cirino dos , Oliveira, Lair Gomes de , Santos, Lorena Silva , Souza, Marcel Soares de , Dinis, Marcia , Noleto, Mauro Almeida , Souza Júnior, Ney Fayet de , Andrade, Vera Regina Pereira de , Capeller, Wanda. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022.

Com esse pugilato intelectual regressamos a um trabalho que, a título de explicação pessoal, abrindo a edição de 1972, da Borsoi, da Criminologia Dialética, o próprio Lyra Filho indicava com o seu o livro, o intuito de que pudesse assinalar um movimento de reconstrução intelectual, cuja autenticidade parece evidente. Certamente não se continha numa autorreflexidade como balanço de percurso, mas como esboço de um programa de uma virada político-epistemológica que assinalasse uma convocatória para um trânsito paradigmático; na política, com a intensificação de um paroxismo autoritário; no campo penal para o controle seletivo de condutas, notadamente em relação às subjetividades ativas que resistiam à exceção, abrindo mobilizações para o protesto social. O ano é 1972. Tempo cruento. No plano epistemológico, a abertura de uma passagem da dogmática penal positivista pela interpelação do social em movimento, sugerindo leituras que se inspirassem em esforços de sociologização do delito.

De certo modo, percorrer essa abertura e enveredar por essa passagem da dogmática penal positivista pela interpelação do social em movimento, é o que me deu horizonte de sentido para me situar em debate que colocava armadilhas de um paroxismo autoritário na modelagem punitivista ainda em curso no país.

Numa conjuntura de lawfare, com táticas jurídicas no contexto de guerras híbridas, penso que um tanto desse apelo ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo, explica o esgarçamento institucional em curso no Brasil e em outros lugares do mundo. Esse desvio esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).

Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB), comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo  é uma leitura de um sentido civilizatório., cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva,  revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão.  Em texto precioso, ele  traz para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial  para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente: “Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão”.

O Autor está atento a essas armadilhas. Diz ele fechando a sua tese:

Pensando nisso, o abolicionismo penal pós-metafísico pode consistir numa ferramenta de imaginação epistemológica, e permitir a reformulação de políticas judiciárias, e definir o que é o monitoramento eletrônico, não pelo conceito imperialista do discurso hegemônico das sociabilidades metropolitanas, mas sim pelo que a tornozeleira representa num sistema de justiça de raízes colonial e racial.

Não se trata de um simples método de controle e vigilância. Políticos de esquerda podem classificar como uma alternativa ao encarceramento, como se fosse uma política penal humanizada. Políticos de direita podem classificar como um “benefício”.

Mas, afinal, o que é o monitoramento eletrônico? Para lei, liberdade vigiada; para ciência, um aparato tecnológico; para política neoliberal, uma redução de custo; para políticos populistas, um benefício; para a sociedade, um estigma; para o egresso, uma oportunidade; para o apenado, um livramento; para o reincidente, uma chance perdida; para o abolicionismo penal pós-metafísico, uma crueldade.

Num contexto de alta punitividade, pensar numa sociedade mais justa, igualitária, fraterna e cristã exige um esforço contínuo na negação da crueldade. A tornozeleira eletrônica pode ser utilizada como instrumento provisório para abolir a pena de prisão e acabar com a crueldade da superlotação carcerária, mas isso não afasta sua natureza de crueldade. Seu uso imoderado, seletivo e racial causa dor e sofrimento à população jovem, negra e pobre. Para aqueles que se dizem civilizados, intelectuais e homens de bem, que defendem a trinca de valores neoliberais (Deus, Pátria e Família) negar a crueldade é o único caminho para seguir uma vida cristã.

 Citei lá atrás, Roberto Lyra Filho e a sua Criminologia Dialética, não só porque ele é uma voz fundante do pensamento criminológico crítico contemporâneo, mas também da inserção na planta epistemológica da Faculdade de Direito, da criminologia crítica. Mas, sobretudo que é de seu pensamento que se pode inferir o enlace dialético que permitirá a Kaio Marcellus de Oliveira Pereira, ultrapassar os riscos redutores de uma articulação descritivo-explicativa como um possível limite metodológico. Aliás, a citação se presta também para buscar um outro Gabriel Ignacio Anitua, o autor de Roberto Lyra Filho y los Antecedentes de una Criminología Crítica Latinoamericana: Dialéctica, Integralidad y Pluridisciplinariedad en los Comienzos de los Años Setenta, p. 129-149, da obra citada (Criminologia Dialética, 50 Anos), quando convoca “el esfuerzo pluridisciplinario de Lyra (Roberto Lyra Filho) – que –  busca outro tipo de integración, que en la dialéctica tampoco pueda fosilizarse. Esa integración de datos criminológicos y del uso de uma ciencia penal ‘no normativa’ – que – debe hacerse con el recurso especialmente de la ética y del compromiso (desde los bastidores y no desde el palco) com la filosofia y la política criminales”.

Penso, nesse sentido, em Karl Marx, que não se deixasse enredar na preocupação de ordenação do caos dos fenômenos, para poder, assim, em um texto seu quase desapercebido – Benefícios secundários do crime (Tradução por Diego Marques e Marcelo Di Marchi. Enfrentamento, ano 7, n. 12, Goiânia: agosto/dezembro de 2012), lembrar-nos cautela e atenção, pois:

Um filósofo produz as ideias, um poeta produz os versos, um curandeiro produz os sermões, um professor produz compêndios, etc. Um criminoso produz a criminalidade. Mas se os laços entre esse ramo dito criminal da produção e toda atividade produtiva da sociedade são examinados anteriormente, somos forçados a abandonar certo número de preconceitos. O criminoso produz não somente a criminalidade, mas, também, a lei criminal; ele produz o professor de direito, também os cursos de análise da lei criminal, da criminalidade e assim o inevitável livro sobre o qual o professor apresenta suas ideias, que é mais uma mercadoria no mercado. Ele resulta num crescimento dos bens materiais, sem contar o lucro que o autor retira do dito livro .

No mais, o criminoso produz todo aparelho policial, assim como, a administração da justiça, detetives, juízes, júri, etc. todas essas profissões diferentes, que do mesmo modo constituem categorias na divisão social do trabalho, desenvolvendo as habilidades diversas do espírito humano, criando novas necessidades e novos meios de satisfazê-las. A tortura, por exemplo, permite a invenção de técnicas muito engenhosas, empregando uma multidão de honestos trabalhadores na produção desses instrumentos.

 Voltando a Anitua e com ele também a Roberto Lyra Filho e a Marx, o que nessa franja de elementos não reduzidos a dados, ou obscurecidos pelas muitas cifras que os ocultam (negra, dourada), materializam uma realidade não objetificada para se fazer descritível, aferível desde os bastidores e não desde o palco, igualmente seletiva, neocolonizada, tão ou mais letal, que produz a criminalidade, a lei criminal, o professor de direito, os compêndios, as algemas, as tornozeleiras, os autos de resistência, as editorias dos jornais, as guerras entre quadrilhas, as execuções sob estrito cumprimento do dever legal, o sistema penal e o sistema de justiça, em suma, o controle criminal e o processo de criminalização?

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

 

 

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