PL nº 778/2025: prostituição e higienismo social em pleno século XXI

Laura Berquó
  • Laura Berquó

No dia 2 de junho comemora-se o Dia Internacional da Prostituta. Aproveito o ensejo da data para comentar o Projeto de Lei nº 778/2025, do deputado federal Kim Kataguiri (UNIÃO BRASIL/SP), que pretende tornar o “trottoir” contravenção penal. Assim dispõe o referido projeto:

“Altera o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), para prever a contravenção penal de prostituição em via pública.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º O Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte alteração:

“Art. 47. ………………………………………………

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa, de 50 a 100 dias-multa.

Prostituição em via pública

Parágrafo único. Incide na mesma pena do caput deste artigo o agente que se prostituir em via pública.” (NR)

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Embora se trate de um tipo mais leve de infração penal, a contravenção não deixa de caracterizar um ilícito penal. Muito interessante essa preocupação com as vias e a moralidade públicas. Estamos retomando o higienismo social, com uma proposta moralizante e puritana, como se estivéssemos no início do século XX.

O cronista João do Rio, em sua obra A Alma Encantadora das Ruas, publicada em 1908, traz um capítulo em que pontua “onde acaba a rua”, conduzindo, obviamente, ao sistema carcerário carioca da época. O perfil prisional feminino, desde então, não apresentou mudanças significativas: a maioria das mulheres presas era — e continua sendo — composta por mulheres negras (pretas e pardas), com raras exceções de mulheres brancas. Havia também uma homogeneidade nas práticas ilícitas atribuídas às mulheres.

Se hoje mais de 63% da população carcerária feminina é processada com base na Lei de Drogas, naquele Rio do início do século XX, práticas como mendicância, prostituição e outras formas de exposição decorrentes da exclusão social conduziam mulheres negras e pobres ao cárcere, dentro da mesma mentalidade higienista que aqui denunciamos.

Um clássico do anarcofeminismo brasileiro de 1924, intitulado Virgindade Anti-higiênica: Preconceitos e Convenções Hipócritas, de Ercília Nogueira Cobra — considerada pornográfica à época pela moralidade “higienista” — é uma crítica ainda atual à condição econômica da mulher e à sua exclusão social e sexual. A falta de acesso à capacitação profissional levava — e ainda leva — muitas mulheres à prostituição.

No caso das mulheres trans e travestis, a realidade não é diferente. Na obra Transfeminismo, da Profa. Dra. Letícia Carolina Nascimento (UFPI), é trazido o seguinte dado: “estima-se que 72% da população trans* não possui ensino médio”. A autora ainda observa que travestis e transexuais são expulsas de casa por volta dos 13 anos de idade. Sobre a prostituição dessas mulheres, afirma: “A grande questão é que, para muitas, essa é a única opção de trabalho, já que os empregos formais excluem travestis e transexuais não apenas por conta da transfobia estrutural, mas também pelo fato de não possuírem os requisitos mínimos exigidos em muitos empregos, como o ensino médio completo”.

Como tenho uma visão amoral da prostituição, não podemos esquecer que a prática nem sempre decorre da exclusão social de mulheres cis e trans, podendo também resultar da liberdade de cada mulher em fazer o uso que bem entender do seu capital erótico — termo cunhado pela socióloga inglesa Catherine Hakim. Em sua obra Capital Erótico, Hakim questiona o comportamento puritano de feministas anglo-saxônicas contrárias à prostituição e à valorização do capital erótico feminino em geral.

Ainda segundo a justificativa do Projeto de Lei nº 778/2025, o que se pretende proibir é que profissionais do sexo façam “ponto” em frente às casas de família. Segundo Kataguiri, isso impediria o direito de ir e vir dessas famílias. Pelo que concluímos, o problema para muitos seria deparar-se com a figura da prostituta, o que, supostamente, impediria a locomoção da tradicional família brasileira…

Ocorre que a prostituição, por si só, não é crime. As chamadas profissionais do sexo possuem o CBO 5198-05. Elas também têm o direito fundamental de ir e vir, o direito à liberdade de locomoção e ao exercício de sua atividade, podendo circular e ocupar os espaços públicos.

Outro ponto do referido PL nº 778/2025 é a ideia de que as profissionais do sexo seriam vetores (uso aqui esse termo a partir da perspectiva higienista e sanitarista que permeia o projeto de lei) para crimes cometidos por terceiros. Até onde se sabe, a pena no Brasil é individualizada. O princípio constitucional da intranscendência da pena não autoriza que terceiros paguem por crimes que não cometeram. Não se pode responsabilizar uma profissional do sexo por atos cometidos por cafetões e cafetinas. Caso ela cometa um crime, responderá por essa conduta específica.

É, portanto, desnecessário esse projeto de lei com viés puritano e higienista, que pretende criminalizar o “trottoir” em pleno século XXI.

  • Advogada e Professora Adjunta (UFPB).
    Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB.
    Ex-Conselheira Estadual de Direitos Humanos (Paraíba).
    Membro efetivo dos Institutos dos Advogados Brasileiros – IAB
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