Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Os Cartazes desta História. Memória gráfica da resistência à ditadura militar e da redemocratização (1964-1985). Vladimir Sacchetta (organização). José Luiz del Roio; Ricardo Carvalho. São Paulo: Instituto Vladimir Herzog/Escrituras Editora, 2012, 253 p.
Assim como um ninho de serpente, antes de que tenhamos distinguido a natureza dos ovos, e não percebamos que estão sendo chocados; ou como a cadela no cío, da imagem de Brecht, que parece grosseira, mas que se presta a ilustrar a fauce do fascismo, a conjuntura começa a nos permitir divisar a tentação e os ensaios de volta ao autoritarismo, da objeção à democracia, da intensificação dos fundamentalismos, da exteriorização dos negacionismos, da ostensividade xenófoba, racista, misógina, da discursividade intolerante, da destilação de atitudes e práticas de ódio.
Na ininteligibilidade de argumentos que se estranham, divisar os símbolos e a hermenêutica desse tempo, é menos uma disposição da razão explicativa e mais um esforço da razão intuitiva, declamatória, artística. Menos causalidade e mais holismo; menos palavras e mais imagens.
Elemento textual, estético, informativo, apelativo e sempre mobilizador, o cartaz, o affiche, o pôster, cumprem alta função político-educadora. Tangendo pela emoção é simultaneamente arte e manifesto. Na edição do volume 8, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação (https://faclivros.wordpress.com/2017/03/29/o-direito-achado-na-rua-v-8-introducao-critica-ao-direito-a-comunicacao-e-a-informacao/ ), as ilustrações, selecionadas a partir de edital, homenageiam 100 anos da Revolução Russa e da assim conhecida Gráfica Utópica Russa (1904-1942), que nesse período, conduzida por artistas como Lissitzky, Mayakovsky, Rodchemko, promoveu a grande mobilização da sociedade e a difusão dos ideais revolucionários.
A arte da capa do volume é uma montagem inspirada livremente no trabalho de Alexander Rodchenko, artista plástico, escultor, fotógrafo e designer gráfico, que foi um dos fundadores do construtivismo e design moderno russo. Sua fotografia era socialmente engajada e ele advogava pela incorporação da arte na vida diária. A capa do volume, foi elaborada a partir de imagens do fotógrafo, professor de Direito e pesquisador do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, Humberto Góes (p. 451):
Por essa condição de engajamento, os riscos, as ameaças, os atentados aos artistas, ilustradores, chargistas, mas também as campanhas de solidariedade e de salvaguarda social como a do Je suis Charlie, para apoiar e “proteger” os cartunistas do Charlie Hebdo, ou no Brasil, em solidariedade ao cartunista Renato Aroeira que se tornou alvo do ministro bolsonarista da Justiça, que ordenou à Polícia Federal a abertura de uma investigação com base na Lei de Segurança Nacional. Isso porque Aroeira publicou, no portal Brasil 247, uma charge em que transforma a cruz vermelha, símbolo da emergência dos hospitais, em uma suástica – ícone do nazismo, desenhada em analogia à declaração do presidente porque incentivou aliados a invadirem hospitais para comprovar a internação de pacientes com covid-19, tudo num crescendo de repressão que inclui o que já tem sido chamado assédio ao jornalismo e atentado à liberdade de expressão.
Com mais contundência e acuidade o caricatural é o crítico mais contundente porque irreverente, das empáfias e das hipocrisias afetadas das institucionalidades e das hierarquias, que não recebam apenas a dissecação de um Balzac (Um Caso Tenebroso, O Coronel Chabert, senão em toda A Comédia Humana), mas que realizam o desiderato proverbial contido no ridendo castigat mores, a divisa latina empregada freqüentemente nos frontispícios dos jornais pilhéricos, para o lazer e as burlas na Europa do século XIX.
Assim, Honoré-Victorien Daumier, o caricaturista, chargista, pintor e ilustrador francês, tido como o homem que ria de seu tempo. Suas caricaturas gens de justice são uma incisão na nervura de um sistema burocrático, indolente, negligente, sonolento do modo real do realizar-se da Justiça como sistema, como organicidade, como função institucional:
Se em Daumier é o artista que representa até cruelmente a desrazão do sistema e da gente da justiça, erigido nefelibaticamente à altura de racionalidade institucional, de outro lado há o próprio jurista, o cientista social e o cientista político que se apropriam do artístico para exercitar a autocrítica mais aguda do que a movida por discursividade argumentativa refratária a refutações ou contestações contra-argumentativas.
Essa dimensão sensível que se anima na subjetividade dos melhores, eu a vejo aflorar cotidianamente no meu ofício docente, já no revelar-se as jovens vocações. Mesmo no comecinho do abrir-se ao apelo pedagógico, especialmente entre os que se dedicam ao compromisso de monitores.
Em 2020, numa competição de processos de metodologias ativas, participei com meus monitores de pós-graduação (estágio docente) e de graduação, da 3ª Edição do Prêmio Esdras de Ensino do Direito, promovido pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Alcançamos Prêmio Destaque na 3ª Edição do Prêmio. Concorremos com o projeto Pesquisa em (qual) direito, eu, os pós-graduandos Eduardo Xavier Lemos e Renata Carolina Corrêa Vieira; e os graduandos/monitores Maria Antônia Melo Beraldo, Julia Caroline Taquary dos Reis, Rafael Luis Muller Santos, Juliana Vieira Machado e Lucca Dal Soccio.
A proposta consta do Banco de Materiais da FGV (https://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/portfolio/pesquisa-qual-direito). Ali se constata que no desenho da disciplina Pesquisa Jurídica (1º semestre do curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB), regida pelo professor proponente e equipe e, seguindo o roteiro programático (Programa e elementos metodológicos), se habilitam, com autonomia cognitiva, teórica e ética, “a desentranhar dos discursos teóricos e técnicos operados, as pré-compreensões neles inscritas, consciente ou inconscientemente”.
Projetada para o desempenho regular de curso, a atividade foi atingida dramaticamente pela pandemia de Covid-19. Inserida nesse contexto, a atividade passou a ter dupla finalidade: acadêmica e subjetiva. De um lado, proporcionou a/ao estudante a reflexão teórica e epistemológica sobre os fundamentos da disciplina, e de outro, favoreceu o acolhimento, na medida em que proporcionou um espaço orgânico de troca de experiências e vivências por meio da atividade “Cartas da Quarentena”, em que as e os estudantes foram convidados a refletirem criticamente a conjuntura vivenciada, compartilhando suas angústias, dores, esperanças e sentimentos sobre o momento atual. Ao escreverem cartas ao grupo, as/os estudantes foram estimulados a manterem o vínculo coletivo durante o período e não se dispersarem ou se sentirem desamparados no começo da sua vida acadêmica, tendo em vista que a disciplina Pesquisa Jurídica é ofertada no primeiro semestre do curso.
Parte desse grupo se integra à nova equipe de monitores do semestre atualmente em curso (2/2020, ano civil 2021), com a inclusão de novos integrantes. Os novos integrantes, Ana Clara Barros de Carvalho, Marco Antonio Poti de Souza Silva, Letícia Medeiros Vieira Sorrequia e Mayara Rodrigues de Sousa, trouxeram uma expansão do imaginário para inserir na plataforma fria do distanciamento imposto pela pandemia, um espaço acolhedor para o aprendizado transcorrer solidário, fraterno, sensível, lúdico.
Eles criaram espaços virtuais para debates, convertidos em torneios temáticos do campo da pesquisa jurídica, mobilizando o acervo familiar desse imaginário ao recriar a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, ou simplesmente Hogwarts, palco principal dos primeiros seis livros da série Harry Potter, de J. K. Rowling. E o fizeram com a garridice da licença literária de refazer muito melhor do que eu próprio fizera (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. No Jardim da Faculdade de Direito da UnB in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 85-86), para virtualmente situar “os animais fantásticos e onde habitam”: Agatemicus, Comensais da Olímpia, Extencanis, Ministério da Magia da Advocatta, Pombúrdia, Saruentia. A seguir dois brasões:
À criação coletiva, agrega-se o talento individual, inesperado. Letícia Medeiros Vieira Sorrequia, uma das monitoras, revela-se ela própria uma chargista de boa escola. Seu traço e estilo verruma o real maravilhoso, surreal:
Aqui a charge, diz Letícia, “faz referência ao mundo dos animes. O livro que o Bozo tá segurando é o death note, em tese, as pessoas cujos nomes foram escritos nele morreriam. Atrás é um deus da morte japonês (também referência a um anime). A representação da democracia desfalecida na frente. Ela usa as cores preto e amarelo em referência às Diretas Já. Escolhi a temática de anime pra alcançar o nicho de jovens”.
Nessa ilustração Letícia, remete a uma antiga charge de Ziraldo para falar, ela explica, “sobre a hipocrisia do Bolsonaro que tem uma postura negacionista mas que recentemente surgiu uma reportagem falando que ele ia se vacinar”.
Espero que Letícia não brilhe de modo incidental. Há outros com brilho igual e incidental. Em todo caso fulgurante.
Prestei por anos um pouco antes e depois da Constituinte de 1988, assessoria a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos de Brasil) no tema. No volume que editamos, nós da Comissão de Acompanhamento da Constituinte, pelo selo editorial das Paulinas (Estudos da CNBB 60. Participação Popular e Cidadania. A igreja no processo constituinte, 1990), Dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Entidade me faz uma dedicatória. A sua assinatura é uma ilustração de um bispo sorridente e apaziguador com seu cajado, um evidente auto-traço:
Com o traço suave, náutico, de quem encontrou a serenidade navegando em mares sem fim, Amyr Klink me pôs com ele no meio do oceano na dedicatória de seu livro, quando visitou a UnB para as aulas de inquietação com as quais, no espaço aberto do teatro de arena na praça maior do campus, fazíamos em meu reitorado o acolhimento de cada semestre letivo (https://www.youtube.com/watch?v=ILeoJpJ1Q).
Não é o caso de Fernando Lopes (LOPES, Fernando de Castro. A Arte de Ilustrar. Brasília: Edição do Autor, 2014, 240 p.). De Fernando já falei com reconhecimento em edição anterior de Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/constituinte-e-constituicao/): “Aqui o registro de apreço ao trabalho social realizado por dirigentes, jornalistas, ilustradores do Correio Braziliense (além dos já mencionados, Fernando Lopes, que viria a ilustrar o volume 2, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, com traço comprometido na temática dos direitos humanos). Cada edição bem diagramada, com documentos pertinentes, fotografias, poesias, letras de música, informações) davam consistência a matéria programática daquele número”.
Este é mestre coroado, por ofício e vocação. Não é bissexto. Dele o traço personalizado, na edição de sua obra de síntese, para mim e para minha esposa a professora Nair Bicalho:
Seja pelo modo de textualizar, seja pelo entre-estílos que a ilustração, a charge, a caricatura, o affiche, o cartaz expressam, eles acabam se constituindo suportes de fragmentos, difíceis de designar. Minha querida amiga Graça Ramos no texto de introdução ao livro de Fernando Lopes citado, fala da mistura de assombro e curiosidade que acaba servindo à construção de seres deformados.
Em relação à obra de Fernando ela destaca: “Se, nos retratos, ele busca a integridade do retratado, em grande parte de suas criações, é preciso voltar a salientar, Fernando recorre à ironia e reforça aspectos extravagantes. Mais reflexivos que expansivos, seus desenhos em crayon, guache ou nanquim apontam para o dissonante, estruturando cicatrizes, arranhando texturas, buscando realçar o que está vivo, escondido na forma. Nessas obras, capazes de induzir o espectador – também leitor – a ‘perceber e mostrar, em si e nos outros, os monstros que nos fizemos’, o desenho é gráfico, mas a expressão se faz pictórica”, fundindo arte e política” (p. 16-17).
Assim é que neste Os Cartazes desta História, ao apresentar o projeto, tenha Clarice Herzog indicando o valor de luta e de resistência que a coleção representa, uma delas, a de “recolher fragmentos da história do Brasil -, pouco visível na época”, para se tornar “um testemunho vivo de momentos bem pouco conhecidos de uma das muitas formas de combater regimes de força: a criação, produção e distribuição de cartazes que foram exibidos e colados em paredes solidárias de universidades, sindicatos, fundações e tantos outros espaços democráticos mundo afora, particularmente na Europa” (p. 5).
No livro – continua Clarice – “estão coletados 243 cartazes, muitos feitos no exterior, com uma infinidade de mensagens contra os militares brasileiros e, também, em solidariedade aos povos latino-americanos que tiveram o seu poder político usurpado por uma sequência macabra de golpes inspirados a partir do golpe dos militares brasileiros em 1964”.
O livro está dividido em sete capítulos e em alguns textos pré-textuais: A história nas paredes (Vladimir Sacchetta); Resistências; Anistia; Movimentos; Mulheres, trabalhadores e estudantes; Solidariedade; Mortos e Desaparecidos; A gráfica da ação (Chico Homem de Melo); Créditos.
No seu conjunto formam os que os autores da obra – Vladimir Sacchetta, José Luiz Del Roio e Ricardo Carvalho – designaram de “as muitas resistências”. É uma advertência para os desatinos do presente. Que saibam os seus fautores. Apesar da inconsciência ainda inapta a armar o quadro completo de seus atos de lesa pátria, lesa democracia, lesa Constituição e lesa humanidade, as resistências estão ativadas e os Fernando Lopes, Aroeira, Larte, os Carusos, Letícia Sorrequia, Glauco, Angeli, Latuf, Andreato, Sua arte política, conforme diz Sacchetta (A história nas paredes), “coloca em circulação ideias e causas, resistências e combates”. É libelo e memorial. Documenta “o passado e o presente (e por que não o futuro?) da vida política de um povo” (p. 9).
Por isso este Lido para Você, sobre essa bela obra, um projeto do Instituto Herzog, que coleciona os cartazes de um quartel (no duplo sentido de tempo e caserna) de nossa história, como memória do terror, da mentira e da barbárie e como advertência da importância da verdade, da democracia e da justiça, para a dura escovação da experiência, lembra Benjamin, que tem a intenção do nunca mais.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
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