O Estado contra os indígenas

Coluna A Advocacia Popular e as Lutas Sociais

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Foto: José Cruz/Agência Brasil

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“Estranhamente o homem branco chegou/Para construir/Para destruir/Para desbravar/E o índio cantou/O seu canto de guerra/Não se escravizou/Mas está sumindo da face da Terra” (Martinho da Vila)[1]

Desrespeito sistemático

O Brasil possui um histórico de não respeitar, de violar os direitos dos povos indígenas, isto é um fato. Quando se faz um olhar distante no tempo, muitos não confessam seus preconceitos, seu afã violador, e até lamentam tais posturas. O problema que isto continua de maneira sistemática e organizada.

A causa indígena não está encontrando refúgio em nenhum dos poderes ou funções do Estado. Historicamente, o Executivo vem, a serviço de interesses econômicos, implementando políticas, projetos, obras que realizaram e realizam um verdadeiro genocídio de comunidades indígenas. Foram estradas, barragens, terras indígenas para colonização, mineração, remoções forçadas, confinamento em reservas, torturas, etc. Até guerra se empreendeu, num passado não tão distante, como contra os Waimiri-Atroari, na década 1970, em Roraima, para a construção da rodovia BR-174. Este episódio, que envergonha o Exército Brasileiro, ainda precisa ser melhor apurado:

“[…] Doroti, iniciou um processo de alfabetização do índios. Na sala de aula, os índios eram estimulados a desenhar e a falar sobre o passado. Eles então passaram a revelar, segundo o relatório, ‘o método e as armas que os kamnã [civilizados] usaram para dizimá-los: aviões, helicópteros, bombas, metralhadoras, fios elétricos e estranhas doenças. Comunidades inteiras despareceram depois que helicópteros e de soldados sobrevoaram ou pousaram em suas aldeias’. Surgiram indícios do uso de substâncias incendiárias despejadas de aeronaves. Segundo o relatório, um indígena certa vez indagou a Egydio, em 1985: ‘O que é que civilizado  joga de avião e queima o corpo da gente por dentro?’.”[2]

Inclusive, as políticas pensadas como mitigatórias ou mesmo de “promoção” de direitos não cumpriram o que bem propagandeavam sobre si. A política de atração de indígenas isolados, por muito tempo executada pelo Estado brasileiro, exterminou tribos inteiras com doenças dos “civilizados”, além de expô-las a contatos que terminaram por desagrega-las ou chacina-las. Outro desastre foi a política de integração nacional, refletida no Estatuto do Índio, de 1973, coerente com a política de atração. Negava-se ao Brasil sua pluralidade, aos indígenas seu modo de vida e cultura, a força se queria assimilar os indígenas como mão de obra barata ao sistema capitalista, cometendo violências sem igual. Os escândalos de violações, inoperância e corrupção que fez extinguir Serviço de Proteção aos Índios- SPI, em 1967, e criar a Fundação Nacional do Índio- FUNAI, não fez a Ditadura Militar mudar a realidade de tratamento com as populações indígenas, pois estas eram tidas como “empecilhos” ao seu projeto de desenvolvimento. Mas será que esta concepção mudou, atualmente, na sociedade brasileira?

Interesses contrários

Observando o que encaminha o Legislativo, percebe-se que a concepção do indígena como “empecilho” a certos interesses não mudou. A PEC 215, que leva para o parlamento a última palavra para a demarcação de terras indígenas demonstra isto. Observando o tamanho da bancada ruralista e outras que defendem interesses contrários aos das populações indígenas, percebe-se que esta PEC vem para inviabilizar as demarcações:

“Para mostrar quais parlamentares defendem quais interesses, a Pública levantou a composição de onze das bancadas mais atuantes. Além dos ruralistas, que contam com 207 deputados, mapeamos outras gigantes da Câmara: a evangélica (197), a empresarial (208), a das empreiteiras e construtoras (226)[…] Adicionamos ainda as bancadas da mineração e da bola, respectivamente com 23 e 14 deputados federais”[3].

A CPI da FUNAI e do INCRA, neste mês de maio, pediu em seu relatório final que 67 pessoas sejam indiciadas, entre indígenas, antropólogos, integrantes de ONGs e servidores. A serviço da chamada bancada ruralista, esta CPI ataca indígenas e outros militantes que lutam pelo respeito ao território destes povos, conforme disposto na Constituição Federal (231) e Convenção 169, da OIT( art. 14).

Foto: José Cruz/Agência Brasil

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O último refúgio, já que não dá para contar com o Executivo e o Legislativo, seria o Poder Judiciário. Contudo, a adoção do marco temporal da Constituição 1988, para o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas as suas terras acaba por retirar a expectativa em mais este espaço institucional. Não obstante as constituições anteriores também estabelecerem o direito ao território; e os posicionamentos contrários a adoção deste entendimento por parte do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União.

Parece que o Estado brasileiro não supera uma visão que instrumentaliza o discurso legalista, utilizando seus marcos para violar direitos. Foi assim durante o Império, aproveitando-se da Lei de Terras (1850), que resguardava aldeamentos sesmarias, terras tradicionalmente ocupados por estes povos. Com intuito de grilar estas terras, assembleias provinciais terminaram por estabelecer que não havia mais índios por decreto[4]:

“Em sua fala, Batista menciona a Lei de Terras, um período onde a terra tornou-se mercadoria, cujos participantes de sua compra, eram pessoas que tinham poder econômico para obtê-la. Diferentemente das populações nativas, que passaram a ter a sua força de trabalho explorada pelos imigrantes europeus e muitos se afugentaram. ‘Entendo que nosso espaço vai além dos limites da aldeia. Tenho familiares no Rio Grande do Sul, no Paraná, não existe essa delimitação, temos o direito de ir e vi para qualquer lugar. Nós Kaingang quando tínhamos vontade sair do lugar para outro, saía e voltava, meses depois’.”[5]

Outros casos

O judiciário do Canadá também vem adotando um marco temporal para negar direitos aos indígenas, o que mostra uma unidade de métodos da “civilização” ocidental para violar estes povos. No caso R. vs. Van der Peet, o juiz-chefe Lamer adotou o marco da proclamação real de 1763, lei que estabelece a soberania da Coroa com a mera afirmação, como referência para análise dos direitos da população Salish[6]:

“Onde uma comunidade aborígene pode demonstrar que uma prática, costume ou tradição particular é parte integrante de sua cultura distintiva hoje, e que essa prática, costume ou tradição tem continuidade com as práticas, costumes e tradições dos tempos de pré-contato, essa comunidade terá demonstrado que a prática, costume ou tradição é um direito aborígine para os propósitos do s. 35 (1).[7]

Aqui no Brasil, recentemente, 30 de maio, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região anulou a Portaria nº 2.747/2009 do Ministério da Justiça, que demarcava aldeamento de Tarumã, localizado na região de Joinville (SC). A decisão afirmou não haver posse tradicional da etnia Guarani Mbyá. Atendeu ao pedido da empresa Karsten, observado o famigerado marco temporal, como se verifica das palavras do relator:

“[…]diferentemente do que sustentam as rés, a constatação de que uma área foi ocupada em passado remoto por indígenas não gera a incidência do art. 231 da Constituição. A aplicação dessa linha argumentativa tornaria praticamente todo o território brasileiro terra indígena, já que poucas seriam as áreas em que os indígenas, antes da ocupação pelos portugueses, não teriam estado em algum momento da história das suas tribos.[8]

Todavia, fora o dito “passado remoto” referido pelo desembargador relator, os Guarani Mbyá retomaram seu território desde a década de 90, como assevera a própria matéria do Tribunal. Mais uma vez abstrações jurídicas são utilizadas como subterfúgio para não se respeitar direitos.

Conclusão

A conjuntura de crise política parece não fragilizar os “propósitos” de instituições que não foram pensadas para atender à população da terra. Para se efetivar a democracia brasileira não se pode continuar com este tipo de práticas e expedientes. Para além disto deve se avançar numa representatividade destes povos nos espaços institucionais. Mais que nunca a parcela da sociedade que é tida como “empecilho” ou como massa a servir a propósitos econômicos de poucos precisa se organizar e se insurgir. Luta e solidariedade mostram-se como alternativas a este quadro cada vez mais violador.

Referências

[1] Samba-enredo da Escola de Samba Unidos da Vila Isabel “Aruanã Açu”, censurado pelo regime Militar, em 1974.
[2] VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue resistência indígena na ditadura. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 174
[3] Disponível em: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/conheca-as-11-bancadas-mais-poderosas-da-camara/. Acesso em : 07 de jun 2017.
[4] CORDEIRO, José. Os Índios no Siará, massacre e resistência. Fortaleza: Hoje-Assessoria em Educação, 1989, p. 123
[5] Disponível em: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=9312. Acesso em: 06 de jun 2017.
[6] Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Salish. Acesso em: 28 de maio 2017.
[7] SIMMONS, Paul Willian. Humans Rights law and marginalized other. New York: Cambridge University Press, 2011, p.200.
[8] Disponível em: http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=12891. Acesso em 06 de jun 2017.

 

Rodrigo de MedeirosRodrigo de Medeiros Silva é Articulista do Estado de Direito – formado em Direito pela Universidade de Fortaleza, especialista em Direito Civil e Processual civil, pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural (Porto Alegre-RS) e mestrando em Direito, pela Uniritter. É membro da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares-RENAP, Fórum Justiça-FJ e Articulação Justiça e Direitos Humanos-JUSDH.

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