O Direito contra os Direitos: Reconstruir e concretizar a dignidade da pessoa humana frente ao apagamento memorial e à brutalidade da reforma trabalhista no Brasil

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Bruno Louis Maurice Guérard. O Direito contra os Direitos: Reconstruir e concretizar a dignidade da pessoa humana frente ao apagamento memorial e à brutalidade da reforma trabalhista no Brasil. Dissertação apresentada à Coordenação do Programa de Mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas do Centro Universitário do Distrito Federal – UDF, sob a orientação da Professora Dra. Cristina Aguiar Ferreira da Silva. Brasília: 10/04/2023.

 

Recolho do resumo da Dissertação o roteiro para o exame da sustentação de seus pressupostos, forma de análise e conclusões base para o debate na banca nela presente também como examinadora a professora Cecília Lemos, membro interno do Programa.

De fato, diz o Autor, a partir de seu percurso existencial, de uma arqueologia do saber, de uma interdisciplinaridade, assim como da constatação de uma crise normativo-constitucional, que a sua disposição é a de analisar o seguinte problema: como e por que a dignidade da pessoa humana e os Direitos Humanos de todas as dimensões estão sendo instrumentalizados pelo Direito e a cúpula do Poder Judiciário, para reforçar uma subcidadania e um Estado Democrático de insegurança permanente. Num primeiro capítulo, com o intuito de se evitar distorções estatísticas e/ou ideológicas, construiu-se um arcabouçou fenomenológico escorado sobre elementos específicos da “Metodologia de Análise de Decisões” jurídicas. Ademais, após ter afastado possíveis críticas quanto a um idealismo e uma mistificação ligados a uma incapacidade em se corporificar conceitos jurídicos no mundo físico dos homens, revelou-se o uso do Direito contra os direitos através da apresentações de fatos reais complexos, únicos capazes de trazer à tona a naturalização da reificação da pessoa empreendida pela Ordem Neoliberal de Uniformização Cibertransumanista.

Essa disposição, ele continua, trouxe à tona a incompatibilidade existente entre o sistema econômico hodierno e a concretização da dignidade e capabilidade da pessoa, por causa da junção dos dogmas neoliberal e do management empresarial definido pelos nazistas; aos quais, sobretudo no Brasil, o Poder Judiciário submeteu-se, deixando de ser um defensor do bem comum e do equilíbrio social. No capítulo seguinte, ciente da necessidade de se repensar a história político-jurídica, não de forma linear, mas a partir da dignidade e capabilidade da pessoa, estudou-se duas decisões paradigmáticas do STF: as ADPF 153 e 324. De fato, compreendeu-se que ambas representam julgamentos fundados sobre postulados legais e extralegais de justificação de uma superestrutura de manutenção de um status quo histórico-social de subserviências, amnesia coletiva e destruição da ordem constitucional. Por último, analisou-se a atomização da pessoa sob o enfoque da reforma trabalhista e da terceirização ampla e irrestrita empreendidas no Brasil; o que revelou a existia de uma forte ligação entre o apagamento memorial, individual e coletivo, da população brasileira e as decisões em tela.

E que assim, finalmente, após ter explicado o que se entendia por brutalidade da terceirização, enquanto estrutura bio-psicopolítica, aprofundou-se três elementos: a atomização da pessoa e a sua reconstrução nos moldes da exploração e reificação atual; a servidão feliz dos dominados como solapamento da capabilidade e da dignidade; e, a corrosão dos Direitos Humanos e Fundamentais através de julgamentos insustentáveis e desmembradores do Judiciário. Nesse último ponto, graças ao estudo de 18 casos levantados em relação ao Brasil, no âmbito do sistema interamericano dos Direitos Humanos, comprovou-se que a supremocracia brasileira e o arcanum dominationis hodierno reforçavam uma subcidadania e desigualdades históricas de forma incontestável. Em conclusão, apresentou-se duas propostas de mudança de perspectiva histórico-jurídico-social que haverão de levar a uma refundação da questão laboral e trabalhista, como alicerce de uma reconstrução memorial, histórica e jurídica autonomizante, emancipadora e única capaz de garantir uma solidariedade, equidade e liberdade em prol da dignidade e capabilidade concreta das pessoas.

Note-se que o Autor aplica uma série de conceitos e categorias, singularmente recortados, que exigiram a elaboração de um glossário ao final da Dissertação, para compartilhar o sentido de seus enunciados. Desde a referência metodológica (MAD, como está no glossário), outras que são o seu acúmulo de percurso – capabilidade, bio-psicoplítica, ONUC – Ordem Neoliberal de Uniformização Cibertransumanista. Me pergunto se essa sofisticação basta para validar o seu estudo. Vale dizer, se sua análise e conclusões não poderiam ser estabelecidos também segundo outros pressupostos e modelos de análise.

Estou pensando que contribuiria para demarcar o trabalho, e essa alternativa de abordagem, o exame da dissertação de Delaíde Alves Miranda Arantes. Trabalho Decente: Uma Análise na Perspectiva dos Direitos Humanos Trabalhistas a Partir do Padrão Decisório do Tribunal Superior do Trabalho. Dissertação de Mestrado. PPGD-Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2022, como um marcador para o seu alcance interpretativo.

O estudo de Delaíde, com o acréscimo de seu manejo familiar porque ministra em exercício no Tribunal, Parte da ideia de que a pessoa humana se constitui como a centralidade do trabalho, os fundamentos da República, a elaboração e aprovação de normas de direitos humanos trabalhistas pelas Organizações Internacionais (OIT) e o Judiciário Trabalhista brasileiro buscam concretizar o objetivo de justiça social na perspectiva dos direitos humanos trabalhistas. O seu estudo toma como eixo balizador o conceito e a evolução do Trabalho Decente. E pretende aferir como o Tribunal Superior do Trabalho projeta, em seus acórdãos, as normas internacionais de direitos humanos trabalhistas, em especial a Agenda do Trabalho Decente, de 1999. Sua hipótese é a de que a dignidade da pessoa humana, alçada ao status de princípio na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e o Trabalho Decente, constante da agenda da Organização Internacional do Trabalho, acentuaram o protagonismo dos direitos humanos trabalhistas. É certo que alguns movimentos da esfera global, com reflexos em todas as nações, serviram de incentivo e pressão para as ações dos organismos internacionais. Mas constata que o crescimento do projeto neoliberal para o estabelecimento do Estado mínimo, a ofensiva do mercado impondo suas regras de precarização do trabalho e o aumento desmedido dos lucros, limitam essa possibilidade.

Também já anotei que esses temas são trabalhados em  livro objeto de resenha que publiquei em minha Coluna Lido para Você (Renata Queiroz Dutra. Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Belo Horizonte: RTM, 2021 (http://estadodedireito.com.br/direito-do-trabalho-uma-introducao-politico-juridica/)).

Temas interperlantes para que, no Brasil, a exemplo do que está a se passar em outros espaços no mundo, se organizem as forças sociais para a necessária reversão das perdas de direitos e sobretudo dos direitos trabalhistas, escopo da agenda neoliberal desdemocratizante e desconstituinte que se implantou no país. É o que, por exemplo, indica João Gabriel Lopes, advogado, coordenador da Unidade Salvador do escritório Mauro Menezes & Advogados e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB, ele escreve, “Diante do fracasso das políticas implantadas desde 2017 no Brasil, é indispensável que se pensem estratégias de reversão da perda de direitos, ampliando a participação dos trabalhadores na renda nacional” (https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/615981-a-necessaria-reversao-da-perda-dos-direitos-trabalhistas-no-brasil).

São tomadas de posição, que desde o momento constituinte brasileiro instaurado com a processo de redemocratização depois do período de exceção implantado com o Golpe de 1964, apontam para o protagonismo dos movimentos sociais, populares e sindicais que definiram o projeto de sociedade desenhado na Constituição de 1988.

Na Introdução do volume 2, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Roberto A. R. de Aguiar e eu, que o organizamos, procuramos convocar um coletivo crítico de pesquisadores e de militantes, motivados por essa perspectiva: “o Direito do Trabalho não pode ser estudado ou praticado sem a constante interligação com o todo social. Isso significa a necessidade de ser abordado de forma interdisciplinar, pois a relação de trabalho é histórica, econômica, cultural, antropológica, psicológica e sobretudo política. Sem a construção de pontes com as ciências que tratam dessas facetas do fenômeno humano corre-se o risco de um reducionismo empobrecedor, que só servirá para enfraquecer a constante busca de relações de trabalho mais livres, mais justas e socialmente mais distributivas em termos de retribuição de salário e acesso aos produtos”.

Avancei um pouco mais na problematização dessas questões, de modo interrogante, quando fui chamado a contribuir para uma obra de celebração da Constituição Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020,  com comentário ao artigo 6º da Constituição, a que dei o título de “Direitos Sociais sob Ameaça de Retrocesso?” (conferir a respeito em http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/) e constatar que Silvio de Almeida nesse momento tem a oportunidade de construir mediações protetivas desde seu lugar privilegiado de Minsitro dos Direitos Humanos e Cidadania, no governo instalado.

Num tempo de globalização econômica, de permanente revolução tecnológica, em que a criação de emprego e o próprio emprego perdem, aparentemente, o seu vínculo finalístico com o processo de criação social de riqueza, a ideia do trabalho como centralidade do sistema de produção e eixo da solidariedade democrática, passou a ser uma ideia vulnerável.

O trabalho havia sido, durante a construção da modernidade capitalista e do consenso liberal, o fator ético do próprio contrato social e a condição de acesso à cidadania e aos direitos. De fato, ao longo do século XIX e durante a segunda metade do século XX, as lutas operárias se constituíram um catalisador de conquistas sociais e o protesto operário foi, em grande parte, o garantidor da universalização de direitos civis e políticos e de conquista de novos direitos, não somente vinculados ao mundo do trabalho, mas também econômicos e sociais. Não apenas específicos para os coletivos de trabalhadores, mas universalizáveis, na sua expressão própria de direitos humanos.

Num sistema de produção e distribuição da riqueza social globalizados, com mercados livres de controles e com tecnologias que criam riquezas, mas não empregos, o trabalho entrou num nível de segmentação e de fragilização organizativa, comprimido num sistema regulatório que o fragiliza e enfraquece suas formas de organização. Estas condições, diz Boaventura de Sousa Santos, levam a uma lógica de exclusão, facilitada por mecanismos lenientes de flexibilização de garantias, levando a que, em muitos países, a maioria dos trabalhadores entrem no mercado de trabalho já desprovidos de qualquer direito.

Por essa razão, Boaventura de Sousa Santos indica que o direito e a redescoberta democrática do mundo do trabalho são fatores cruciais para a construção de novas sociabilidades, resgatando a globalização para a solidariedade e a produção da riqueza social para uma lógica de distribuição inclusiva.

É claro que essa tarefa não se realiza sem se conceber círculos amplos de alternativas e de estratégias, como por exemplo, o Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, com a realização temática neste ano de 2022, na forma de um Forum Social Mundial Justiça e Democracia, ainda com a sua projeção para um novo mundo possível. Mas não se realiza, também, sem um repensar das estratégias sindicais, mais politizadas na configuração de seus antagonismos sociais, mais conscientes do alcance internacional de suas reivindicações, mais engajadas na condição civilizatória das lutas que devam ser travadas por um mundo melhor, no qual, como diz Sousa Santos, nada que tenha a ver com a vida dos trabalhadores, mas também dos que não são trabalhadores de outros grupos ou movimentos sociais, seja deixado de fora de sua pauta de direitos.

A questão se coloca, atualmente, quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?

Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas,  quando o horizonte civilizatório sempre se moveu pela concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade.

Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.

Que tarefa! Se a Constituição não é só o texto, mas como diz Canotilho, a disputa narrativa para a sua concretização, ao fim e ao cabo, é estabelecer disposição de posicionamento crítico para que não nos deixemos enredar nas armadilhas de qualquer tipo que permeiam essa disputa, contrapondo hostes conservadoras e hostes progressistas pelo menos. No campo do Judiciário uma dessas armadilhas pode ser incidir numa inversão qual seja, tomar a perspectiva dos direitos humanos trabalhistas a partir do padrão decisório do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ao invés de circunscrever o padrão decisório a partir dos direitos humanos, ainda que balizados pelos estandares das cortes internacionais, algo que pode estar presente nos casos paradigmas examinados, mesmo nas duas ADPFs que norteam a hermenêutica da dissertação.

Em qualquer caso, é o que já se começa a constatar em rearranjos políticos que buscam frear a voragem neoliberal, conforme exorta o Papa Francisco, na sua atitude contra essa descartabilidade do humano nas relações de trabalho. Na mensagem do Papa ao IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 16 de outubro de 2021, ele afirma de modo contundente: “Este sistema, com sua lógica implacável de ganância, está escapando a todo domínio humano. É hora de frear a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que está nos levando ao abismo. Ainda estamos em tempo.” – (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-mensagem-movimentos-populares.html).

Mas também no plano político. Assim é que na Espanha, nesse começo de 2022, foi revogada a reforma trabalhista que precarizou trabalho e não criou empregos. Conforme amplamente divulgado, entre outros – https://www.brasildefato.com.br/2022/01/03/espanha-revoga-reforma-trabalhista-que-precarizou-trabalho-e-nao-criou-empregos – “a reforma trabalhista da Espanha de uma década atrás foi uma das “inspiradoras” da “reforma” feita no Brasil em 2017, sob o governo de Michel Temer. Lá como aqui, o pretexto de baratear as contratações para se criarem mais empregos fracassou. Isso porque, a principal consequência foi a precarização do trabalho e a criação de vagas mal remuneradas, com menos direitos e condições ruins de trabalho. Dez anos depois, a Espanha volta atrás. O decreto de 30 de dezembro atende ainda a um compromisso do primeiro-ministro Pedro Sánchez com a Comissão Europeia, para garantir a próxima parcela de fundos da União Europeia. Atualmente, o país conta com taxa de desemprego de 14,5%, uma das mais altas do bloco econômico. O principal objetivo da nova reforma espanhola é acabar com abuso de contratações temporárias, que hoje responde por mais de um quarto das ocupações no país. A ideia é estimular a contratação por prazo indeterminado, que dão mais segurança aos trabalhadores e, portanto, à economia. Além disso, a nova regra extingue a chamada contratação “por obra ou serviço”, equivalente ao “trabalho intermitente” da reforma de Temer”.

Voltei a me defrontar com essas interpelações quando fui chamado a participar da banca e depois, a pedido do Autor elaborar a Apresentação do livro NEOLIBERALIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL: MODO GOVERNAMENTAL DE SUBJETIVAÇÃO, DISPOSITIVO JURISDICIONAL DE EXCEÇÃO E A CONSTITUIÇÃO COMO UM CUSTO. THIAGO ARRUDA QUEIROZ LIMA. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.

Tal como está na Dissertação de Bruno, o livro de Thiago Lima também foi escrito num cenário de exceção já delineado, mas sem que se fizesse tão agudo quanto no contexto da pandemia que passou a assolar o mundo, e sem que o trabalho pudesse sequer imaginar tal cenário, o livro se abre, a partir de um conjunto de enunciados oriundos de atores pertencentes ao campo jurídico brasileiro, com a problematização acerca dos influxos que pressionam, hoje, o Poder Judiciário do país.

 O Autor admite não ser possível, diante que foi exposto ao longo do trabalho, desprezar ou ignorar o que está em jogo. Discorrendo, em meio a uma guerra epistêmica, e agora em meio a uma crise total, estão a ser, ele diz, definidos os destinos do direito nacional. O que emergirá após o cenário de crise, que já não é só política? Esse é o ponto, e é toda a nossa cultura jurídica que está em questão. A revolução jurídica que se anuncia, indissociável de uma “reforma dos juristas”, tem alcance muito maior do que eventuais mudanças legislativas. Ao se remodelar o comportamento dos que decidem quanto à própria aplicação – ou desaplicação – da lei, altera-se algo muito mais profundo e relevante, que é o modo de produção de verdades jurídicas estabelecido no país.

No fundo, me deslocando um tanto para uma outra perspectiva que não aquela focalizada pelo Autor para enquadrar a mesma ordem de problemas, o que está em causa, não é só reivindicar, a modernidade de um sistema, inclusive de acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso, o que modifica muito a percepção sobre modernidade e governamentabilidade. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema, não só aos sujeitos econômicos no mundo dos negócios, mas à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as Reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de justiça como estrutura de poder mas não o abre à participação social democrática. O tipo de acesso à justiça que tem sido debatido é ainda o “acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça (http://www.jusdh.org.br/2014/12/19/reforma-do-judiciario-precisa-de-participacao-popular/).

 É nessa linha de interpelação que se localiza, por exemplo, o trabalho Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos, estudo coordenado e redigido por Antonio Escrivão Filho (Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018).

Com efeito, na mesma linha de sua tese de Doutorado, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 – Escrivão Filho oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.

Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.

Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.

O tema, a que remete abordagens quais a de Antonio Escrivão, cuida de conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil. E de modo mais preciso, a necessidade de considerar nesse processo, não bastar compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes sem entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.

Não é difícil estimar, adverte Escrivão, um potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da Formula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao dialogo nos termos da participação e controle social.

De certo modo, eu já havia antecipado essa sobrecarga, ao examinar esse tema a partir de uma questão política que me havia sido formulada por um sindicato de servidores do judiciário como tema de um de seus congressos: é possível uma sociedade democrática com um poder judiciário conservador? Minha resposta, à altura, trilhou a mesma senda que Escrivão Filho percorre agora em seu estudo (Que Judiciário na Democracia?, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008): A resposta, obviamente, é não. Não é possível uma democratização plena da sociedade se uma de suas instituições essenciais se conserva como modelo instrumental resistente porque ele se tornará obstáculo à própria mudança. Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso pais, quando se coloca em causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que é social e teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas constitucionais de reinvenção democrática.

 Para Escrivão Filho, voltando ao texto de sua pesquisa, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo.

Eis o tamanho do desafio que se coloca para a sociedade na qual se constitui a expressão de soberania popular que deve designar o perfil do Judiciário no desenho da institucionalidade em construção.

Claro que a salvaguarda do Autor é dar-se conta de que há uma tensão entre direitos, tal como sugere o título da dissertação, mas não estou certo se há, com efeito, na sua formulação, mesmo sustentadas por uma bem postada fundamentação teórica, notadamente, no caso do jurídico, aludindo a Ost e a Catoriadis, se temos convicção desse antagonismo, que não seja uma troca de sinais entre porosidades normativas, por que não estou certo, a partir da dissertação, do que falamos quando falamos em direito, em direitos humanos e tensão entre direito e direitos.

Pense-se se isso não estará, por exemplo, tomando uma anotação entre várias, aquela que é lançada à pág. 71:

Destarte, não há como não se afirmar que as duas apontam para uma mesma direção, a desconstrução, a submissão e a instrumentalização do Direito contra os direitos, isto é, uma negatividade para com aqueles que não têm mais voz, os desaparecidos, torturados e perseguidos no caso da ADPF 153, assim como os trabalhadores sem amarras, desinformados, abandonados frente à força de um sistema mercadológico todo poderoso.

Apesar das suas especificidades e peculiaridades, o terceiro ponto de convergência entre essas duas decisões do STF deriva do fato que elas, sempre em nome de uma necessidade ‘política’, tendem a reforçar a invisibilidade dos já invisíveis a partir de uma leitura sempre favorável à superestrutura de poder político-econômicocultural que, in fine, a própria Corte representa e reforça.

Certamente que o autor percebe a movimentação em curso num social agitado, lembrando à pág. 74-75, com Castoriadis, a necessidade de dar-se conta da heteronomia que afeta instituições compostas por incidências que se sobrepõem “à ordem constitucional, [que] não consegue realizar in concreto o movimento autonomizante” que esse autor enxerga como “a sociedade em autocriação”: “Sua instituição é autocriação, até o momento ocultada. Essa auto ocultação é precisamente a característica fundamental da heteronomia das sociedades. Nas sociedades heterônomas, isto é, na maioria das sociedades que existiram até hoje – quase todas –, encontra-se, institucionalmente estabelecido e sancionado, a representação de uma fonte instituinte da sociedade que se encontraria fora da sociedade: nos deuses, em Deus, entre os ancestrais, nas leis da Natureza, nas leis da Razão, nas leis da História”.

Algo próximo às interconexões entre os grandes projetos e as qualificações que ativam os percursos de indivíduos e de coletivos, lembra Musil em O Homem sem Qualidades quando relaciona o grande projeto cívico para marcar o mundo descrito na metáfora da grande ação patriótica (o Reich?), e as incertezas que abrem vácuo na vida interior, como “ausência de formas que é a perpétua mudança de forma, lenta mas inquieta revolução, que arrasta todas as coisas no seu curso” num agir em que “quase toda a existência é feita, não só dessas ações, mas de discursos de que assimilamos o ponto de vista, as opiniões e as contra-opiniões, numa acumulação impessoal de tudo quanto sabemos ou ouvimos”.

Na Dissertação, caminhando na senda de uma aplicação estendida de um gatopardismo assimilável ao que propôs Lampedusa, para acentuar, com José Murilo de Carvalho, pág. 50 da Dissertação,  ser preciso considerar “essa ‘ambiguidade’, essa ‘relação tensa’, não é nada mais que a expressão infernal da não concretização dos conceitos, que, em tese, todos defendem, mas não aplicam de fato; da não compreensão que o importante não é o princípio em si, mas a efetividade do resultado da sua aplicação no mundo como ele é, e não como se imagina que ele poderia ser! Essas distorções são explicadas e denunciadas como “[…] um jogo de aparências, de falsas realidades, de ficção” por Murilo de Carvalho, graças a uma metáfora teatral, isto é, a imagem da sombra, que, aqui, retomou, além de Cícero, o discurso de 1882 de Ferreira Viana que denunciava um parlamento “[…] espectro, sombra de outra sombra, porque não há país constituinte nem país constituído”. Aliás, o Autor não resiste a uma paráfrase: (pág. 73) “romper sem quebrar para seguir sem mudar!”.

O certo é que, de um lado, há o limite cultural que circunscreve, em modo hegemônico, o paradigma do positivismo jurídico que está na base da formação dos operadores do Sistema (de Justiça), o que levou o então presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o brasileiro Cançado Trindade, professor aposentado da UnB, a considerá-lo o principal obstáculo à integração no direito nacional das normas cogentes de direitos humanos inscritas nas convenções e nos tratados (Caso Vllagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle, 19/11/1999), conforme anotamos Antonio Escrivão Filho e eu em nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2015, p. 199-200), texto, aliás, constante do rol da excelente bibliografia consultada pela Autora.

Do mesmo modo o projeto constituído em ítem programático do Ministro Lewandowisk para sua gestão na presidência do Supremo Tribunal, vencer o atraso de formação dos magistrados brasileiros no tema direitos humanos raramente observado nas escolas de direito e de magistratura e a espantosa ignorância de decisões de cortes internacionais de direitos humanos, conhecida por menos de 6% dos juízes brasileiros. No TST, pelo menos, sempre se notou, ao menos em diretrizes de deus mais ilustrados dirigentes, uma atenção não apenas protocolar aos ditames dos direitos humanos trabalhistas. Fico feliz em poder registrar nesse aspecto, a gestão do meu estimado amigo e primo, ao menos por afinidade derivada de sua esposa a Promotora de Justiça, a querida Tania Marinho. Refiro-me ao Ministro e ex-Presidente Francisco Fausto Paula de Medeiros, firme no enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil.

De outro lado, o difícil posicionamento do próprio sistema de justiça, quando todos os esforços funcionais de seu aparelhamento, incluindo o financiamento para reformas pensa o aparato mais como garante de negócios do que propriamente de mediadores para a expansão política dos direitos contidos entre os interesses econômicos da acumulação e a difícil afirmação das conquistas sociais por distribuição a partir dos protagonismos desencadeados desde o mundo do trabalho. Também dissemos algo a respeito disso Escrivão e eu. Mas para bem documentar as diretrizes neoliberais nesse campo, vale examinar em pormenor a tese de nossa colega Talita Rampin (Estudo sobre a Reforma da Justiça no Brasil e suas Contribuições para uma Análise Geopolítica da Justiça na América Latina. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2018), aliás, escolhida como a melhor tese da Faculdade de Direito da UnB, no período 2017/2018, conforme o comitê institucional de seleção.

Serão excessivas essas preocupações? Nos anos sombrios do período autoritário aberto em 1964, não foram incidentais as intervenções do Judiciário para legitimar uma regulação de exceção e destituintes de Direitos. Em Direito do Capital e Direito do Trabalho (Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1982, p. 41), Roberto Lyra Filho recupera voto escoteiro do Ministro Victor Nunes Leal, no Supremo, em manifestação divergente de disposição da ditadura restritiva ao direito de greve, com base em enunciados de atos institucionais e da lei de segurança nacional, para  afirmar a inexigibilidade de outra conduta própria de dirigente sindical, por não poder a lei exigir do operário ser herói ou soldado a serviço do patronato (no livro citado de Roberto Lyra Filho uma curiosidade, a dedicatória impressa “Para Jessé José Freire de Souza, discípulo dileto, com as bênçãos do velho professor”; então, o jovem ainda estudante de Direito que viria a se tornar o notável sociólogo integrante da bibliografia da Dissertação para calçar o conceito de sub-cidadania). E agora, o que se vê, em tempos de flexibilização, de precarização, de prevalência do contratado sobre o legislado?  Recente decisão do TRT do Maranhão (16ª Região) determinou a prisão de toda a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários no Estado do Maranhão (STTREMA) em virtude do não atendimento do percentual mínimo de funcionamento determinado pela Justiça do Trabalho durante o movimento grevista. Diante desse fato, os Debates REMIR-ABET nesse ano de 2022 já pautam discutir a *escalada autoritária do Poder Judiciário contra o direito de greve*, com evento marcado para o próximo dia *2/3, às 17h00*. Foram convidados para discutir o tema Marcelo Alves de Brito, Presidente do STTREMA; José Eymard Loguércio, advogado; Cristiano Paixão, professor da UnB e membro do Ministério Público do Trabalho; e Valdete Severo, professora da UFRGS e juíza do trabalho. Convidamos a REMIR e a ABET para participar da discussão, que será transmitida pelo canal da ABET no youtube, pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=P2dhNHp6Vnk.

             Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração. Acompanho, nesse passo (cf. meu artigo “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”, in REVISTA FORGES – Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa, n. Especial (2020): NÚMERO COMEMORATIVO DO 10.º ANIVERSÁRIO DA FORGES Publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8), Avelãs Nunes: Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer “paraíso perdido”, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis dessa civilização fim-da-história.

Assim como essa globalização não é um “produto técnico” deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projeto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas “leis naturais” do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores e empenhado em objetivos que o “mercado” não reconhece nem é capaz de prosseguir.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disso mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho (NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo & Direitos Humanos, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Renovar, 2003).

Ao fim e ao cabo, cuida-se, conforme identifiquei na tese de Eduardo Xavier Lemos, que orientei e que teve arguidores interpelantes como Boaventura de Sousa Santos, David Sanchez Rúbio, Maria José Fariñas-Dulce (Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023; cf. http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/).

Tudo se passa, indica Eduardo Lemos, no exercitar “o nosso papel, portanto, [que] é lutar, dialogar e aprender com os sujeitos e sujeitas que resistem cotidianamente contra as opressões do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado, mas experenciando tais lutas, porque essas sempre serão constitutivas de um pensamento de transformação social; para os coletivos insurgentes”, assim, aliás, indicou Lívia Gimenes da Fonseca de modo a realçar o sentido coletivo da construção que se inscreve no programa-compromisso do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos fundamentos teórico-metodológicos da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, orientados por O Direito Achado na Rua, sua concepção, seus projetos e sua prática. Uma mirada no apêndice, com o catálogo dessa construção, atesta a fortuna crítica do movimento estudado na Tese.

E ainda assim tendo em conta, conforme nos sugere Boaventura de Sousa Santos, em um de seus mais instigantes textos – Por que pensar-, que “pensar não é tudo”, às vezes é preciso “des-pensar”, “des-aprender”, como mostra a poesia (Manoel de Barros, A didática da invenção in O livro das ignorãças). Em Boaventura “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções, ao corpo, aos afetos, ao sentimentos. Isso também é uma grande dificuldade para o conhecimento em que fomos treinados. As ações coletivas de transformação social têm essa dupla característica de resistência e de criatividade e quer uma quer outra exige envolvimento emocional, entusiasmo e indignação. O próprio ódio é por vezes necessário, ao mesmo tempo que o amor, e a solidariedade, ou seja, elementos de sensibilidade com os quais a modernidade ocidental sempre se achou muito mal” (https://www.scielo.br/j/ln/a/CLwxcMF6Kq6Rzc9h74xt98t/?lang=pt).

Eduardo, com a metodologia lyriana de ler Marx a partir de seus paralogismos, tal como Roberto Lyra Filho em Karl, meu amigo. Diálogos com Marx sobre o Direito, notadamente no trânsito do invisível para o visível, do ausente para o emergente, do informal para o formal, do plural para o oficial, no relativo ao jurídico – direito e antidireito, direito burguês e direitos dos trabalhadores, privilégios e direitos iguais, se opera logicamente pela mediação dialética, pois só se conhece efetivamente de modo sentipensante, corazonadamente, em diálogo com o social, os sujeitos que nele se movimentam, se põem em relação, que instituem os direitos.

Eis que, referindo-me aos cuidados indicados por Schopenhauer, segue-se, ou antes, non sequitur, (não se segue que), não digo que se trate de uma falácia lógica, que a conclusão oferecida não decorra das premissas propostas. Até podem ser verdadeiras as conclusões, mas será verdadeira a premissa inicial, fora do contexto que gerou o nazismo (e o management empresarial por ele definido como propõe o Autor) em uma dada conjuntura, que pudesse admitir, tal como Umberto Eco o faz em relação ao que denomina fascismo eterno, que haja realmente uma conexão entre as premissas e a conclusão, entre a causa e o consequente (post hoc ergo propter hoc) e o antecedente?

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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